Tarcísio,
a modernidade de papelão
Há algo
que me irrita profundamente no debate público: a naturalidade com que se vende
Tarcísio de Freitas como novidade. A facilidade com que se atribui a ele a
imagem de gestor moderno, técnico, quase redentor. Não que eu tenha qualquer
ilusão com os pruridos da mídia liberal e com os profissionais da higienização
do discurso. Mas a coreografia em torno de Tarcísio é explícita e caricata
demais: uma operação de marketing político que depende de amnésia coletiva e da
viralização da cartilha liberal. A falta de memória reposiciona a continuidade
da “Ponte para o Futuro — Parte 2” como se ela não tivesse mostrado seu
esgotamento e falência na vida cotidiana, e como se o país não tivesse
aprendido o preço de um Estado reduzido ao papel de fiador de interesses
privados.
O que
hoje se chama de modernização não passa da atualização de uma engrenagem
antiga. Mas ela não retorna idêntica. A gestão Tarcísio em São Paulo deixa isso
evidente. Ela vem acelerada pela ansiedade do capitalismo pós-crise de 2008 —
esse período descrito pelo filósofo italiano Franco “Bifo” Berardi, referência
central da crítica à aceleração, como o momento em que o sistema “sobrevive
como uma boca aberta que mastiga o presente”. A aceleração imediatista —
exaustiva, saturada, incapaz de planejar — deu nova vida ao patrimonialismo
brasileiro: agora com jargão corporativo, linguagem de compliance, consultorias
onipresentes e fundos de investimento ditando prioridades. A lógica é devorar o
Estado, não estruturá-lo — fingir um Estado mínimo só para maximizar o domínio
de quem se serve dele.
É
dentro desse clima que Tarcísio se torna funcional. Menos por sua suposta
competência técnica — do que por sua plasticidade política. Com o perdão da
aberração estética. Ele se adapta aos caprichos da plutocracia, oferece
previsibilidade ao mercado e opera como gerente disciplinado de interesses que
preferem o Estado fraco, velhos contratos blindados e políticas públicas
condicionadas a tabelas de retorno privado. Mistura patrimonialismo clássico
com o imediatismo faminto do capitalismo financeirizado e com os tiques do
gerencialismo pós-moderno. É a fraude perfeita: concessões improvisadas,
privatizações tratadas como panaceia, contratos de longo prazo sem risco real
para concessionárias e projetos territoriais moldados pela lógica tarifária,
não pelo interesse nacional. Não há ali visão de país. Há manejo de ativos e
captura de lucros rápidos.
O mito
da eficiência nasce do contraste com o caos bolsonarista. Em meio àquela
desordem, qualquer administrador minimamente sanitizado parecia exceção
virtuosa. Mas basta retirar o pano de fundo para ver o que sobra: um operador
limitado, servil, sem horizonte estratégico, repetindo o receituário que
estagnou a economia, aprofundou desigualdades e desmontou a capacidade estatal.
A imagem de modernidade funciona como embalagem; o conteúdo é o mesmo lote de
sempre, com a marca antiga relançada para consumo rápido.
Essa
aceitação ampla só existe porque parte importante das elites brasileiras —
econômica, midiática, jurídica — precisa desse tipo de figura pública. Ele
garante contratos longos, regulações confortáveis, ausência de conflito e um
Estado convertível em plataforma de negócios. É o homem certo para um país
educado, desde 2016, a desconfiar de política de desenvolvimento, a considerar
soberania sinônimo de excesso e a medir o sucesso nacional pela estabilidade
tarifária de setores regulados. Para essas elites, Tarcísio oferece silêncio,
disciplina e previsibilidade.
Há
ainda um ponto central: o modelo Tarcísio não destrói as instituições; ele as
esvazia. Mantém estruturas, mas reduz sua função. Secretarias viram balcão,
agências viram carimbo, conselhos viram formalidade. O Estado opera, mas não
governa. A fachada permanece; a substância evapora. É a versão brasileira da
tendência global pós-2008: sistemas estatais que simulam normalidade enquanto
entregam suas funções centrais ao mercado. O ritmo frenético de editais
substitui o planejamento; o mantra da eficiência substitui o debate sobre
prioridades nacionais.
Esse
cenário ganha nitidez quando comparado ao que o governo Lula executou entre
2025 e agora. Não se trata de enaltecimento acrítico. O lulismo tem limites
sérios: não altera a estrutura tributária regressiva, não enfrenta a hegemonia
financeira, não redesenha o pacto federativo. Mas recoloca o país em movimento.
Reabre investimento público, devolve função ao BNDES (ainda com prudência
excessiva), reativa setores industriais, organiza obras territoriais sob
coordenação estatal, oferece oxigênio fiscal a municípios e reabre a arena
institucional sufocada nos anos anteriores. Os indicadores respondem: renda
real em alta, emprego formal crescendo, inflação sob controle, ambiente
político menos inflamado.
É
insuficiente para transformar a estrutura, mas suficiente para romper o cerco
que o liberalismo patrimonialista tentou impor: um país reduzido a gestor de
contratos e sem horizonte estratégico. Lula não resolve a equação, mas devolve
ao país o direito de disputar o que vem depois. E isso é precisamente o que o
modelo Tarcísio tenta impedir: o retorno da política ao campo das decisões
estruturais, onde desenvolvimento, soberania e integração territorial voltam a
ter lugar.
Lula
não pode ser banalizado como um dublê do receituário liberal. Essa leitura
virou um conforto retórico para parte da esquerda: uma crítica estridente que
prefere a caricatura ao trabalho paciente de interpretar o que está em disputa.
Ela ignora que o que existe hoje não é uma conversão ao liberalismo, mas um
processo diário, conflituoso, cheio de tensões internas, no qual o governo
tenta reconstituir margens de ação num Estado corroído. Não há virada repentina
— há fricção constante. E é justamente essa fricção, incômoda e imperfeita, que
reabre o terreno onde prioridades podem ser reorganizadas e onde projetos —
ainda frágeis — voltam a ter chance de existir.
A
ironia é que, enquanto Tarcísio se apresenta como futuro, é sob Lula que o país
começou a recuperar a capacidade mínima de imaginar algum futuro. Não o futuro
desejável, mas o futuro possível. Um Estado que se preste a coordenar políticas
públicas, que ensaia reorganizar sua engenharia e que respira
institucionalmente cria campo de disputa. O modelo Tarcísio não quer campo;
quer consenso gerencial e plutocrático.
No
final das contas, o que Tarcísio representa não é a modernidade, nem gestão
eficiente, nem técnica. Ele é a forma brasileira da fase ansiosa do capitalismo
global, na qual uma ideia de eficiência se confunde com velocidade e
planejamento se resume a concessão. Um híbrido de patrimonialismo histórico com
o imediatismo financeiro de um mundo exaurido. E aqui o crítico cultural
britânico Mark Fisher, autor de Realismo Capitalista, oferece o diagnóstico
preciso: Tarcísio é o operador ideal de um sistema que, para continuar
existindo, precisa devorar o próprio futuro. Sem lirismo antropofágico, sem
ponte alguma.
• Flávio Bolsonaro deu o
"preço"; Faria Lima e Centrão pagaram por Tarcísio, explica deputado
Em
entrevista à TV Record no domingo (7), Flávio Bolsonaro (PL-RJ) afirmou que
havia um "preço" para desistir da anunciada candidatura à Presidência
e abrir caminho para o projeto, costurado desde o início do ano, pela terceira
via - consórcio que une Centrão, Faria Lima e mídia liberal.
"A
única forma disso [desistência] acontecer é se Bolsonaro estiver livre, nas
urnas, caminhando com seus netos, filhos de Eduardo Bolsonaro, pelas ruas de
todo o Brasil. Esse é meu preço", afirmou.
Rapidamente,
interlocutores de banqueiros e do sistema financeiro acionaram seus lobistas no
mundo político para o pagamento da fatura, feito na madrugada desta
quarta-feira (10), após a negociata acertada pelo filho "01" de Jair
Bolsonaro (PL) em jantar com os presidentes partidários Ciro Nogueira (PP),
Antônio Rueda (União) e Valdemar da Costa Neto (PL).
"O
Flávio e o bolsonarismo estão vendendo. Quem vai comprar é a Faria Lima com o
Tarcísio e o Centrão. Esses é que estão pagando o preço e que fizeram o
trabalho sujo para compensar isso", afirmou o vice-líder do PT, Rogério
Correia (PT-MG), ao Fórum Café.
O
deputado mineiro, que tentou impedir a agressão covarde da polícia legislativa
a Glauber Braga a mando de Motta, lembra ainda que o PL foi relatado por
Paulinho da Força (Solidariedade-SP), que transformou a "anistia" em
"dosimetria" para enganar as pessoas em reunião com Aécio Neves
(PSDB) e Michel Temer (MDB), que propôs a chamada "Ponte para o
Futuro" no golpe contra Dilma Rousseff (PT) em 2016.
"Era
a ponte que acabava com todas as os direitos constitucionais, congelava por 20
anos recursos de saúde, educação, ia liquidando com tudo que é público,
passando para o privado, coordenado pela Faria Lima, pelos bilionários desse
país. Tem aí uma outra pitada, né, que antigamente não era tão nítida, agora é,
que é também entrega para o Trump e os interesses da extrema direita
internacional", afirmou, ressaltando os achaques de Donald Trump
especialmente sobre as chamadas terras raras e o petróleo brasileiro.
"Vamos
lembrar disso e a implantação no Brasil de um projeto ultra neoliberal de perda
de direitos que foi tão radical que levou a vitória depois de Jair
Bolsonaro", disse Rogério.
Após
lembrar ainda de Eduardo Cunha (Republicanos-MG), que após conduzir o golpe em
2016 foi preso e agora tenta se candidatar a deputado por Minas Gerais, Correia
diz que o grupo político é o mesmo, com novos atores do Centrão, como Ciro
Nogueira, que ascenderam com o bolsonarismo.
"O
Ciro Nogueira que estava por trás disso tudo. E o presidente Hugo Mota,
seguindo a cabeça dele, construiu essa coisa horrorosa que foi reprimir,
retirar à força o Glauber, tratar a gente com violência. Tudo para colocar em
prática o acordo que está sendo costurado, que envolve o Flávio Bolsonaro
fingindo ser candidato a presidente para colocar à venda os pontos de Jair
Bolsonaro, que nada mais é do que ele ficar preso em regime de prisão
domiciliar alegando as doenças dele e a partir dali ele diminuía a pena".
Fonte:
Ricardo Queiroz Pinnheiro, em Opera Mundi/Fórum

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