Doador
com gene cancerígeno gerou 197 filhos na Europa
Em toda
a Europa, pelo menos 197 crianças foram concebidas com o sêmen de um doador que
é portador de uma rara mutação genética no gene TP53, que suprime o crescimento
de células cancerígenas , mostrou uma investigação da DW e de várias outras
emissoras públicas europeias.
Essa
mutação está ligada a um risco elevado e permanente de desenvolver vários tipos
de câncer , muitos dos quais podem surgir em idade muito precoce.
A
investigação revelou que, durante mais de 15 anos, famílias compraram o esperma
do doador de número 7069 do Banco Europeu de Sêmen (ESB, em inglês), que tem
sede em Copenhague, na Dinamarca, por intermédio de clínicas de fertilidade.
Assim, uma mutação genética rara e potencialmente fatal foi vendida a mulheres
em pelo menos 14 países da Europa e de outros lugares.
É
possível que o número seja muito maior, pois o ESB ainda não divulgou o total
de crianças concebidas com o sêmen do doador 7069, que foi vendido a 67
clínicas.
Algumas
dessas crianças já desenvolveram câncer , de dois tipos; outras já morreram,
disse a bióloga especializada em predisposições genéticas ao câncer Edwige
Kasper, que está aconselhando algumas das famílias afetadas.
Legalmente,
o banco de esperma tem a obrigação de alertar todas as clínicas de fertilidade
para as quais exportou gametas sobre quaisquer anomalias genéticas que surjam.
As clínicas, por sua vez, informam os pais.
No
entanto, a DW e suas parceiras da Rede de Jornalismo Investigativo da EBU
tomaram conhecimento de vários casos de famílias que nunca foram oficialmente
informadas de que seus filhos poderiam ser portadores da mutação genética.
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"Foi um choque"
A
equipe de jornalismo investigativo da EBU entrevistou uma mãe que comprou o
sêmen do doador 7069. Ela contou que, quando o seu telefone começou a tocar
numa manhã de junho, não imaginava que a notícia que receberia a lançaria,
junto com sua filha adolescente, numa espiral de consultas médicas, exames e
medo.
Do
outro lado da linha, disse a mãe, estava o chefe do departamento de fertilidade
de uma clínica belga que ela havia visitado em 2011 para fazer um tratamento de
fertilidade que, na época, não estava disponível para mães solteiras na França.
Ela disse que a clínica não havia mais se manifestado depois da concepção da
filha.
A
pessoa que ligou disse que o doador do sêmen que ela usara para conceber sua
filha era portador de uma rara mutação genética do gene TP53 e que sua filha
tinha 50% de chance de herdar a mutação, para a qual não há cura ou tratamento.
Ela contou ter sido informada de que era urgente que ela fizesse um exame de
triagem em sua filha para detectar a mutação. "Foi um choque", disse
a mulher, que pediu para permanecer anônima. "Não entendi nada."
Ela
logo descobriria que sua filha realmente carregava a mutação genética.
Após o
Banco Europeu de Sêmen detectar a mutação em suas amostras, o doador foi
permanentemente bloqueado, em outubro de 2023. Embora a clínica belga afirme
que contatou a mulher "assim que possível", ela alega ter sido
informada um ano e meio depois de o ESB descobrir a mutação porque a clínica
havia migrado seu sistema de informática e inicialmente perdido seus dados de
contato.
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"Uma grande frustração"
A mãe
solteira Dorte Kellermann, que vive na Dinamarca, disse que soube do caso em
novembro de 2023 por meio de outro pessoa que havia usado o sêmen do doador.
Ela contou à DW e suas parceiras que não havia sido contatada nem pelo banco de
esperma nem pela clínica de fertilidade que havia utilizado.
Ela
disse ainda que sabe de outras mães solteiras que usaram o mesmo doador e que
elas se conectam por meio de um grupo privado no Facebook. O ex-diretor da
clínica que Kellermann utilizou disse que não poderia comentar casos
individuais.
Embora
a DW não possa verificar cada uma das contas do grupo do Facebook, os relatos
lidos conferem com os de médicos e com os relatórios emitidos por autoridades
de saúde em toda a Europa.
A
médica Svetlana Lagercrantz, especialista em cânceres hereditários, disse à
emissora pública dinamarquesa DR, que várias de suas pacientes na Suécia nunca
foram contatadas. Ela contou que elas só descobriram sobre a mutação por meio
da imprensa. Foi, segundo ela, "uma grande frustração".
A
dimensão do problema só se tornou clara num encontro de especialistas em câncer
hereditário em 2024. Segundo Lagercrantz, um colega francês estava falando
sobre pacientes que haviam herdado a mutação TP53 de seu doador de sêmen.
De
repente, disse ela, médicos de toda a Europa perceberam que os casos que eles
presumiam que fossem isolados eram na verdade todos provenientes de um único
doador e abrangiam todo o continente. Lagercrantz disse que ficou em estado de
choque.
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Exames por toda a vida
O ESB
se recusou a fornecer o número exato de crianças concebidas com o sêmen do
doador 7069, argumentando com o direito à privacidade dos envolvidos.
"Como
não sabemos quantas mulheres têm filhos com o doador, ficamos pensando: 'Será
que existe mais uma criança?'", disse Lagercrantz. Para ela e seus
colegas, é "difícil se livrar desse pensamento".
Pessoas
que descobrem ser portadoras da mutação precisam se submeter a exames regulares
por toda a vida. Quanto mais cedo o câncer for detectado, maiores serão as
chances de cura. Como câncer é uma doença rara em crianças, os sintomas podem
ser ignorados ou interpretados erroneamente quando os médicos não estão cientes
da mutação.
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Sinais de alerta já em 2020
O site
do ESB se assemelha a um site de relacionamentos e permite que potenciais
clientes naveguem pelos perfis dos doadores e, mediante uma taxa extra, ouçam
entrevistas em áudio e vejam fotos da infância.
Os
clientes podem desembolsar quase 1.000 euros (R$ 6.300) por um teste genético
mais abrangente do que os testes de rotina aos quais o sêmen é submetido na
Dinamarca.
O
doador 7069 se apresentou como estudante de mestrado em economia, foi pago pela
sua doação e doou pela primeira vez em 2005. Ele recebeu o pseudônimo de Kjeld
e é um homem branco alto, com cabelo castanho claro e olhos castanhos. O perfil
dele é de 2007.
O
primeiro alerta surgiu em 2020, segundo o ESB, quando o banco recebeu uma
notificação de que uma criança concebida com o sêmen de Kjeld havia sido
diagnosticada com a mutação TP53. O sêmen dele foi colocado em quarentena até
que novos testes genéticos fossem realizados. Os resultados foram negativos, já
que a rara mutação ocorre apenas em alguns espermatozoides do doador. O próprio
doador jamais apresentou sintomas. E seu sêmen retornou ao mercado.
Em
2023, o ESB foi informado sobre outra criança portadora da mutação TP53. Uma
nova rodada de testes confirmou a presença da mutação numa parte do material
doado, apesar de ele mesmo desconhecer isso e ser saudável. A confirmação levou
à proibição permanente, e a telefonemas para pais em toda a Europa.
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Regras variam de um país para o outro
Com
sede em Copenhague, o ESB se tornou um importante nome no mercado global de
serviços de fertilidade e diz exportar sêmen para países em toda a Europa e até
mesmo para lugares distantes, como Afeganistão e Bolívia.
Em
2023, o ESB, que pertence à empresa Perwyn, obteve um lucro de mais de 60
milhões de coroas dinamarquesas, ou cerca de R$ 51 milhões, um aumento
significativo em relação às 35 milhões de coroas dinamarquesas do ano anterior.
O negócio é lucrativo e está crescendo rapidamente, à medida que mais
procedimentos médicos se tornam disponíveis e as mulheres optam por ter filhos
mais tarde na vida, às vezes sozinhas ou com outras mulheres.
As
regras do setor variam de país a país . Alguns impõem um limite de idade aos
tratamentos ou os permitem apenas para casais heterossexuais casados. Alguns
permitem procedimentos que são proibidos em outros países. Alguns permitem
doações anônimas de sêmen e óvulos, que outros proíbem. Pacientes alemães, por
exemplo, podem viajar para a Espanha para doações de óvulos, que são ilegais em
seu país de origem.
Alguns
países impõem limites legais ao número de filhos nascidos de um único doador.
Outros, como a Alemanha, não o fazem, mas os bancos tendem a seguir as
diretrizes do setor, de 15 famílias por doador.
Embora
a União Europeia (UE) tenha aprovado novos regulamentos sobre reprodução
assistida e substâncias de origem humana em 2024, eles não incluem um limite em
todo o bloco para o número de filhos nascidos de um único doador. Também não
existe um banco de dados internacional que rastreie doadores e os impeça de
vender sêmen para vários bancos.
Os
potenciais doadores passam por extensos testes médicos e apenas uma pequena
porcentagem é aprovada. O processo não inclui a triagem para mutações genéticas
raras, como a TP53. Tendo investido muito num doador, os bancos de esperma têm
um incentivo econômico para maximizar o lucro vendendo o sêmen de cada doador
para várias famílias.
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Limites para o número de filhos
Em seu
site, o ESB afirma ter um limite autoimposto para o número de famílias por
doador: "A maioria dos nossos doadores tem um limite de 75 famílias, mas
em mercados selecionados (Reino Unido, Irlanda, Austrália e Holanda) também
oferecemos doadores com um limite mundial de 25 famílias." Por uma taxa
extra é possível limitar o número de famílias. Por 39 mil euros pode-se comprar
exclusividade.
Mas as
pelo menos 197 crianças concebidas com o sêmen do doador 7069 excedem muito o
limite declarado do próprio ESB, bem como os limites nacionais em alguns casos.
Somente na Bélgica, 53 crianças foram concebidas usando o sêmen do doador,
apesar de leis nacionais que estabelecem um limite de seis mulheres por doador.
Isso levou a uma investigação pelas autoridades belgas.
Diante
das revelações, o ESB afirmou: "Nos sentimos profundamente afetados pelo
caso e pelo impacto que a rara mutação TP53 tem sobre várias famílias, crianças
e o doador. Eles têm nossa mais profunda solidariedade."
"Infelizmente",
escreveu o ESB em seu comunicado, "identificamos que os limites de quantas
famílias um doador pode beneficiar foram excedidos em alguns países, tanto no
caso específico do TP53 quanto em outros casos. Isso se deve, em parte, à
notificação inadequada das clínicas, a sistemas pouco robustos e ao turismo de
fertilidade."
Pessoas
que foram concebidas com sêmen doado e os pais delas estão reivindicando
limites para o número de crianças nascidas de um mesmo doador. A Spenderkinder,
uma associação de crianças concebidas por doação na Alemanha, defende um limite
global de seis famílias por doador, bem como um registro global de doadores, o
que facilitaria a localização e o contato com as famílias em tempo hábil, caso
os bancos de esperma tomem conhecimento de doenças e mutações.
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"Sinto uma culpa enorme"
A mãe
na França que recebeu a ligação em junho descobriu que sua filha, agora
adolescente, herdou a mutação. Meses depois, ela e a filha continuam a lidar
com o que o diagnóstico significa: uma vida inteira de exames regulares e o
medo constante do que eles possam revelar.
Ela
disse que não guarda "absolutamente nenhum ressentimento" pelo doador
7069. Afinal, ele não sabia que era portador da mutação. "Ele não tem
culpa." Ela, porém, sente "uma culpa enorme" por saber que, por
ter escolhido conceber dessa forma, transmitiu algo que é potencialmente fatal
para sua filha. "Isso é muito, muito duro."
Fonte:
DW Brasil

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