sexta-feira, 12 de dezembro de 2025

Geografias do terror: de Curitiba ao Rio, o rastro da violência policial nas periferias

A chacina decorrente da “Operação Contenção” no Rio de Janeiro (RJ), em 28 de outubro, e a violência crônica que assola o bairro Parolin, em Curitiba (PR), não são aberrações ou falhas isoladas na política de segurança pública brasileira. Pelo contrário, representam manifestações agudas e lógicas de uma doutrina de Estado profundamente enraizada, sendo os resultados práticos de um projeto necropolítico. Conforme análises de organizações como a Anistia Internacional, essa política é justificada ideologicamente pela “guerra às drogas” e operacionalizada por um aparato policial militarizado que mira, de forma seletiva, populações racializadas e empobrecidas. Comparando o espetáculo de macroviolência do massacre no Rio de Janeiro com a microviolência normalizada e sistêmica de Curitiba, é possível revelar uma “gramática da repressão” consistente que une os dois cenários, mesmo que se manifestem em escalas e com visibilidades distintas.

Oficialmente, a “Operação Contenção” foi enquadrada como uma ação necessária contra a expansão territorial da facção criminosa Comando Vermelho (CV) e a ameaça iminente do “narcoterrorismo”, apresentada pelo governo do estado como a “maior operação da história do Rio de Janeiro”.

Os resultados oficiais iniciais — a prisão de 81 indivíduos e a apreensão de 93 fuzis — foram usados para construir a imagem de uma intervenção bem-sucedida. Essa narrativa, contudo, desmoronou quase que imediatamente. O número oficial de mortos foi rapidamente contestado por ativistas e pela Defensoria Pública, que apontaram para um total que ultrapassa 120 vítimas fatais, transformando a ação na mais letal da história do Brasil.

Três das quatro operações mais violentas da história do Rio ocorreram na gestão de Cláudio Castro, evidenciando um endosso político a este modelo. A declaração de “sucesso” revela que o espetáculo do massacre, para uma base eleitoral que legitima essa violência, é a própria medida do êxito. Ademais, a ação representou um desafio direto à autoridade do Supremo Tribunal Federal (STF), desrespeitando flagrantemente a decisão proferida na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 635, que impôs restrições a operações policiais em favelas. Em resposta, o Ministério Público do Rio de Janeiro (MPRJ) instaurou uma investigação independente para cada uma das mortes, e o STF convocou o governador para prestar esclarecimentos.

Se no Rio a violência foi um espetáculo agudo, em Curitiba ela assume a forma de um conflito crônico e de baixa visibilidade no bairro Parolin, um microcosmo da violência de Estado normalizada. A região é frequentemente descrita como um “território em guerra”, marcado pela letalidade policial, sistematicamente justificada pela narrativa do “confronto”, e por disputas violentas entre facções como a local “Turma do Meio” e grupos externos do bairro Uberaba. A atuação estatal, focada no confronto, paradoxalmente alimenta o ciclo de violência, pois a morte de um membro de facção pela polícia desestabiliza o poder local, incitando retaliações. A narrativa do “confronto” é consistentemente desafiada por moradores que relatam execuções de indivíduos rendidos. Casos como o de Yago Gabriel Pires de Oliveira, de 20 anos, morto dentro de casa em outubro deste ano (2025) com mais de dez tiros e cujo corpo foi arrastado por policiais em um vídeo que circulou nas redes sociais, ilustram essa brutalidade cotidiana.

Outro caso emblemático foi a morte de quatro jovens em 2019; apesar de fortes evidências de execução — a viatura não tinha marcas de tiros e os agentes dispararam 36 vezes —, os policiais foram absolvidos sob a alegação de legítima defesa, com o apoio do próprio Ministério Público. Essa impunidade institucionalizada permite a perpetuação da violência. Em resposta, os moradores se organizaram na “Rede Nenhuma Vida a Menos”, que promove protestos e cria espaços de memória, como o “Memorial de Vítimas de Violência Policial”, resistindo à violência e à estigmatização do bairro.

Para compreender a fundo esses eventos, é preciso recorrer a conceitos que explicam essa violência não como anomalia, mas como a expressão de uma lógica de governança. O conceito de necropolítica, do filósofo Achille Mbembe, refere-se ao poder soberano do Estado de determinar quem pode viver e quem deve morrer, designando certas populações como “matáveis”. No Brasil, isso se aplica diretamente à forma como o Estado age em favelas e periferias, onde as vidas de jovens negros e pobres são consideradas dispensáveis. A “guerra às drogas” fornece a justificativa ideológica para essas práticas, construindo a figura de um inimigo desumanizado — o traficante, majoritariamente associado ao homem jovem, negro e pobre. Estatísticas do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e da Human Rights Watch confirmam que indivíduos negros compõem mais de 80% das vítimas de violência policial, tornando a “guerra às drogas” uma continuação de práticas históricas de controle social racializado. Por fim, a militarização da segurança pública, um legado direto da ditadura militar, estrutura as Polícias Militares como forças de guerra, treinadas para o “combate ao inimigo interno”. A linguagem bélica utilizada pelas autoridades reflete essa doutrina. Esses três pilares — necropolítica, “guerra às drogas” e militarização — formam um sistema coeso que produz tanto os massacres espetaculares quanto a violência crônica.

Apesar das diferenças de escala, a análise comparativa revela uma lógica de atuação estatal surpreendentemente similar. As organizações criminosas no Rio são de grande porte e altamente estruturadas, enquanto no Parolin o conflito parece ser mais localizado. Contudo, os fios comuns são evidentes: o álibi do “confronto” é usado para legitimar a força letal em ambos os cenários; a impunidade é sistêmica; o alvo é racial e territorial, concentrado em comunidades empobrecidas e negras; e, em ambas as cidades, a violência estatal é confrontada por uma resistência comunitária organizada.

O custo humano desta política é devastador. Viver sob a ameaça constante de violência letal causa impactos profundos na saúde. Estudos como a pesquisa “Saúde na Linha de Tiro”, do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC), demonstram taxas significativamente mais altas de ansiedade, depressão e estresse pós-traumático em comunidades submetidas a operações policiais. O levantamento revelou que, em áreas mais afetadas por tiroteios, a prevalência de depressão quase dobrou, saltando de 15,7% para 29,6%. A violência interrompe todos os aspectos da vida cotidiana, forçando o fechamento de escolas e postos de saúde e restringindo severamente a mobilidade, suspendendo, na prática, os direitos de cidadania dos residentes.

A superação deste modelo exige uma reestruturação profunda da segurança pública, incluindo a desmilitarização da polícia, o fortalecimento de órgãos de controle externo para quebrar o ciclo de impunidade, a nacionalização dos princípios estabelecidos pelo STF na ADPF 635 e uma mudança de paradigma na política de drogas, abandonando o modelo punitivo em favor de uma abordagem de saúde pública. A violência no Rio, em Curitiba e em tantas outras cidades não é uma falha, mas sim a implementação bem-sucedida de uma doutrina de segurança necropolítica. O caminho a seguir exige uma reorientação fundamental, construindo um novo pacto social baseado no valor inegociável de cada vida humana e na compreensão de que a verdadeira segurança não se constrói com extermínio, mas com justiça, igualdade e a presença de um Estado que serve e protege, em vez de matar.

 

Fonte: Por Robert de Almeida Marques, Julia Moro Bonnet, Iolanda Geronimo Del Roio e Gab da Silveira Muller, em Br Cidades

 

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