Geografias
do terror: de Curitiba ao Rio, o rastro da violência policial nas periferias
A
chacina decorrente da “Operação Contenção” no Rio de Janeiro (RJ), em 28 de
outubro, e a violência crônica que assola o bairro Parolin, em Curitiba (PR),
não são aberrações ou falhas isoladas na política de segurança pública
brasileira. Pelo contrário, representam manifestações agudas e lógicas de uma
doutrina de Estado profundamente enraizada, sendo os resultados práticos de um
projeto necropolítico. Conforme análises de organizações como a Anistia
Internacional, essa política é justificada ideologicamente pela “guerra às
drogas” e operacionalizada por um aparato policial militarizado que mira, de
forma seletiva, populações racializadas e empobrecidas. Comparando o espetáculo
de macroviolência do massacre no Rio de Janeiro com a microviolência normalizada
e sistêmica de Curitiba, é possível revelar uma “gramática da repressão”
consistente que une os dois cenários, mesmo que se manifestem em escalas e com
visibilidades distintas.
Oficialmente,
a “Operação Contenção” foi enquadrada como uma ação necessária contra a
expansão territorial da facção criminosa Comando Vermelho (CV) e a ameaça
iminente do “narcoterrorismo”, apresentada pelo governo do estado como a “maior
operação da história do Rio de Janeiro”.
Os
resultados oficiais iniciais — a prisão de 81 indivíduos e a apreensão de 93
fuzis — foram usados para construir a imagem de uma intervenção bem-sucedida.
Essa narrativa, contudo, desmoronou quase que imediatamente. O número oficial
de mortos foi rapidamente contestado por ativistas e pela Defensoria Pública,
que apontaram para um total que ultrapassa 120 vítimas fatais, transformando a
ação na mais letal da história do Brasil.
Três
das quatro operações mais violentas da história do Rio ocorreram na gestão de
Cláudio Castro, evidenciando um endosso político a este modelo. A declaração de
“sucesso” revela que o espetáculo do massacre, para uma base eleitoral que
legitima essa violência, é a própria medida do êxito. Ademais, a ação
representou um desafio direto à autoridade do Supremo Tribunal Federal (STF),
desrespeitando flagrantemente a decisão proferida na Arguição de Descumprimento
de Preceito Fundamental (ADPF) 635, que impôs restrições a operações policiais
em favelas. Em resposta, o Ministério Público do Rio de Janeiro (MPRJ)
instaurou uma investigação independente para cada uma das mortes, e o STF
convocou o governador para prestar esclarecimentos.
Se no
Rio a violência foi um espetáculo agudo, em Curitiba ela assume a forma de um
conflito crônico e de baixa visibilidade no bairro Parolin, um microcosmo da
violência de Estado normalizada. A região é frequentemente descrita como um
“território em guerra”, marcado pela letalidade policial, sistematicamente
justificada pela narrativa do “confronto”, e por disputas violentas entre
facções como a local “Turma do Meio” e grupos externos do bairro Uberaba. A
atuação estatal, focada no confronto, paradoxalmente alimenta o ciclo de
violência, pois a morte de um membro de facção pela polícia desestabiliza o
poder local, incitando retaliações. A narrativa do “confronto” é
consistentemente desafiada por moradores que relatam execuções de indivíduos
rendidos. Casos como o de Yago Gabriel Pires de Oliveira, de 20 anos, morto
dentro de casa em outubro deste ano (2025) com mais de dez tiros e cujo corpo
foi arrastado por policiais em um vídeo que circulou nas redes sociais,
ilustram essa brutalidade cotidiana.
Outro
caso emblemático foi a morte de quatro jovens em 2019; apesar de fortes
evidências de execução — a viatura não tinha marcas de tiros e os agentes
dispararam 36 vezes —, os policiais foram absolvidos sob a alegação de legítima
defesa, com o apoio do próprio Ministério Público. Essa impunidade
institucionalizada permite a perpetuação da violência. Em resposta, os
moradores se organizaram na “Rede Nenhuma Vida a Menos”, que promove protestos
e cria espaços de memória, como o “Memorial de Vítimas de Violência Policial”,
resistindo à violência e à estigmatização do bairro.
Para
compreender a fundo esses eventos, é preciso recorrer a conceitos que explicam
essa violência não como anomalia, mas como a expressão de uma lógica de
governança. O conceito de necropolítica, do filósofo Achille Mbembe, refere-se
ao poder soberano do Estado de determinar quem pode viver e quem deve morrer,
designando certas populações como “matáveis”. No Brasil, isso se aplica
diretamente à forma como o Estado age em favelas e periferias, onde as vidas de
jovens negros e pobres são consideradas dispensáveis. A “guerra às drogas”
fornece a justificativa ideológica para essas práticas, construindo a figura de
um inimigo desumanizado — o traficante, majoritariamente associado ao homem
jovem, negro e pobre. Estatísticas do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e
da Human Rights Watch confirmam que indivíduos negros compõem mais de 80% das
vítimas de violência policial, tornando a “guerra às drogas” uma continuação de
práticas históricas de controle social racializado. Por fim, a militarização da
segurança pública, um legado direto da ditadura militar, estrutura as Polícias
Militares como forças de guerra, treinadas para o “combate ao inimigo interno”.
A linguagem bélica utilizada pelas autoridades reflete essa doutrina. Esses
três pilares — necropolítica, “guerra às drogas” e militarização — formam um
sistema coeso que produz tanto os massacres espetaculares quanto a violência
crônica.
Apesar
das diferenças de escala, a análise comparativa revela uma lógica de atuação
estatal surpreendentemente similar. As organizações criminosas no Rio são de
grande porte e altamente estruturadas, enquanto no Parolin o conflito parece
ser mais localizado. Contudo, os fios comuns são evidentes: o álibi do
“confronto” é usado para legitimar a força letal em ambos os cenários; a
impunidade é sistêmica; o alvo é racial e territorial, concentrado em
comunidades empobrecidas e negras; e, em ambas as cidades, a violência estatal
é confrontada por uma resistência comunitária organizada.
O custo
humano desta política é devastador. Viver sob a ameaça constante de violência
letal causa impactos profundos na saúde. Estudos como a pesquisa “Saúde na
Linha de Tiro”, do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC),
demonstram taxas significativamente mais altas de ansiedade, depressão e
estresse pós-traumático em comunidades submetidas a operações policiais. O
levantamento revelou que, em áreas mais afetadas por tiroteios, a prevalência
de depressão quase dobrou, saltando de 15,7% para 29,6%. A violência interrompe
todos os aspectos da vida cotidiana, forçando o fechamento de escolas e postos
de saúde e restringindo severamente a mobilidade, suspendendo, na prática, os
direitos de cidadania dos residentes.
A
superação deste modelo exige uma reestruturação profunda da segurança pública,
incluindo a desmilitarização da polícia, o fortalecimento de órgãos de controle
externo para quebrar o ciclo de impunidade, a nacionalização dos princípios
estabelecidos pelo STF na ADPF 635 e uma mudança de paradigma na política de
drogas, abandonando o modelo punitivo em favor de uma abordagem de saúde
pública. A violência no Rio, em Curitiba e em tantas outras cidades não é uma
falha, mas sim a implementação bem-sucedida de uma doutrina de segurança
necropolítica. O caminho a seguir exige uma reorientação fundamental,
construindo um novo pacto social baseado no valor inegociável de cada vida
humana e na compreensão de que a verdadeira segurança não se constrói com
extermínio, mas com justiça, igualdade e a presença de um Estado que serve e
protege, em vez de matar.
Fonte:
Por Robert de Almeida Marques, Julia Moro Bonnet, Iolanda Geronimo Del Roio e
Gab da Silveira Muller, em Br Cidades

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