A
armadilha da austeridade permanente
Enquanto
o Brasil se debate nos limites do arcabouço fiscal, a rivalidade sino-americana
abre uma janela histórica para a reindustrialização – que não poderemos
atravessar sem reformar as amarras da austeridade
Fui
recentemente desafiado a pensar sobre os desafios estruturais que um programa
desenvolvimentista enfrenta no Brasil contemporâneo. Minha contribuição aqui
busca articular duas dimensões desse desafio: primeiro, as restrições
domésticas impostas pelo arcabouço fiscal à execução de uma política econômica
desenvolvimentista; segundo, as oportunidades abertas pela reconfiguração
geopolítica global, particularmente a rivalidade sino-americana, que criam
condições históricas para uma estratégia de autonomia tecnológica e
reindustrialização.
Meu
argumento central é que essas duas dimensões estão intrinsecamente conectadas:
sem reformar as amarras fiscais que inviabilizam investimentos públicos
estratégicos, o Brasil permanecerá incapaz de aproveitar a janela geopolítica
que se abre.
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A armadilha da austeridade permanente
O
chamado “arcabouço fiscal” ou “regime fiscal sustentável” representa a
continuidade, sob nova roupagem, da lógica da austeridade que domina a política
econômica brasileira pelo menos desde 2015. Embora apresentado como mais
flexível que o teto de gastos de Michel Temer, o novo regime mantém o
essencial: a subordinação da política fiscal a metas de resultado primário e a
limitação do crescimento das despesas primárias a um teto móvel vinculado à 70%
do crescimento da receita, com crescimento real máximo de 2,5% ao ano.
As
consequências dessa arquitetura institucional são evidentes. Primeiro, ela
perpetua a compressão dos investimentos públicos, que caíram de 3,5% do PIB em
2010 para menos de 1% atualmente. Segundo, ela impõe uma contenção permanente
dos gastos sociais justamente quando o país deveria expandir sua rede de
proteção e seus serviços públicos. Terceiro, e crucialmente para o argumento
que desenvolvo aqui, ela inviabiliza a capitalização de empresas estatais e os
investimentos em infraestrutura necessários para viabilizar um projeto
desenvolvimentista.
O
problema não é meramente técnico ou contábil. Trata-se de uma escolha política
que prioriza a rentabilidade dos títulos públicos e a tranquilidade dos
mercados financeiros em detrimento da capacidade do Estado de induzir o
desenvolvimento econômico.
Como
demonstrei em análises anteriores, essa escolha reflete um condomínio
hegemônico entre o capital estrangeiro e o grande capital financeiro doméstico
que se consolidou após o golpe de 2016 e que resiste a qualquer projeto que
ameace suas estratégias de acumulação que integra a economia brasileira de modo
dependente no capitalismo mundial.
A
recuperação do gasto público, seja na infraestrutura social seja na econômica,
ao contrário, é fundamental para ativar um modelo de crescimento econômico que
combine apoio popular e investimentos públicos e privados orientados para
atendimento das necessidades da população brasileira.
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Reforma fiscal estratégica – exclusões necessárias
Diante
desse impasse, o ideal seria propormos a superação do arcabouço. Se não
tivermos força política para tanto, pelo menos devemos obter duas exclusões
fundamentais do cálculo dos gastos limitados pelo arcabouço fiscal.
Primeira:
exclusão dos gastos em educação e saúde. A racionalidade dessa proposta é
evidente. Educação e saúde são investimentos de longo prazo na capacidade
produtiva da nação, não gastos de consumo. Tratá-los como despesas ordinárias
que devem ser contidas é condenar o país ao subdesenvolvimento permanente.
Mais
ainda, em um momento histórico em que a competição econômica global se desloca
crescentemente para setores intensivos em conhecimento – inteligência
artificial, biotecnologia, transição energética, entre outros –, comprimir
investimentos em educação, ciência e tecnologia é renunciar antecipadamente a
qualquer possibilidade de inserção soberana na economia mundial.
Segunda:
exclusão dos gastos com capitalização de empresas estatais e investimentos em
infraestrutura realizados pela administração direta e unidades federadas. Esta
exclusão é ainda mais crucial para o argumento que desenvolvo aqui. Sem
capacidade de capitalizar empresas como Petrobras, Eletrobras (onde o Estado
ainda mantém participação minoritária), BNDES e outros bancos públicos, o
Estado brasileiro fica desarmado para implementar políticas industriais
substantivas.
Contudo,
tal capitalização, incluída no teto do arcabouço fiscal, é financeiramente
inviável. Contudo, sem poder investir em infraestrutura logística, energética e
digital fora do teto de gastos, o país permanece prisioneiro de gargalos
estruturais que inviabilizam qualquer estratégia de desenvolvimento.
Um
pequeno sinal disso é que, em 05/12, a LDO de 2026 aprovada pelo Congresso
Nacional retirou algo como R$ 10 bilhões do teto do arcabouço para auxiliar na
recuperação financeira dos Correios, viabilizando a continuidade de um serviço
essencial para integrar a nação.
Meritória
em si, a exclusão deste gasto do teto do arcabouço e da meta fiscal levanta uma
pergunta óbvia: por que só atender a necessidades urgentes de investimento
público – como os Correios ou a reconstrução de infraestruturas destruídas por
desastres climáticos – ao invés de viabilizar a expansão planejada do
investimento público orientado para restaurar o desenvolvimento econômico e
social?
Essas
exclusões não representam irresponsabilidade fiscal, mas sim uma compreensão
mais sofisticada do que significa “sustentabilidade” em política econômica.
Sustentável não é aquilo que agrada aos mercados financeiros no curto prazo,
mas sim aquilo que constrói capacidades produtivas de longo prazo. Países
desenvolvidos jamais impuseram a si mesmos as amarras que o Brasil se
autoinflige.
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A janela geopolítica sino-americana
Enquanto
o Brasil se paralisa em debates sobre décimos de ponto percentual no resultado
primário, o mundo passa por uma reconfiguração geopolítica de magnitude
histórica. A ascensão da China como potência tecnológica e industrial, e a
resposta estadunidense na forma de contenção e “desacoplamento”, criam
oportunidades sem precedentes para países de desenvolvimento intermediário que
souberem aproveitar as contradições dessa nova guerra fria.
Os
dados são eloquentes. A participação da China no comércio exterior brasileiro
saltou de meros 2% no ano 2000 para 31,3% em 2023, tornando-se nosso principal
parceiro comercial. Simultaneamente, a participação dos Estados Unidos caiu de
23,9% para 10,3% no mesmo período. Essa reorientação comercial não é mero
acidente estatístico, mas expressão de uma transformação estrutural na economia
mundial.
Mais
significativo ainda: essa transformação não se limita ao comércio. Empresas
chinesas tornaram-se protagonistas em setores estratégicos da infraestrutura
brasileira. Na geração de energia elétrica, empresas chinesas controlam 13% da
capacidade instalada do país. Na transmissão, controlam 18% das linhas. Em
telecomunicações, a Huawei consolidou-se como fornecedora fundamental, apesar
das pressões estadunidenses para sua exclusão das redes 5G.
O
segundo governo de Donald Trump, com sua ênfase em unilateralismo e
protecionismo, tende a aprofundar essa tendência. Enquanto Washington impõe
tarifas, restrições tecnológicas e exige subordinação geopolítica de seus
parceiros, Beijing oferece financiamento, transferência tecnológica e parcerias
sem condicionalidades políticas explícitas.
Esta é
a janela histórica que se abre: aproveitar a competição sino-americana para
negociar transferências tecnológicas substantivas e construir capacidades
produtivas autônomas. Mas – e aqui retorno ao primeiro argumento – essa janela
só pode ser aproveitada se o Estado brasileiro tiver capacidade fiscal e
institucional para ser um parceiro relevante, não um mero receptor passivo de
investimentos.
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Parcerias estratégicas: transição energética, Inteligência artificial e
semicondutores
Proponho
três eixos concretos de parcerias estratégicas com capital estatal chinês,
todos dependentes da reforma fiscal que defendo.
Primeiro
eixo: transição energética e transferência tecnológica. O Brasil possui
vantagens comparativas evidentes em energia renovável – hidroelétrica, eólica,
solar, biomassa. Mas nossa inserção nesse setor tem sido predominantemente como
fornecedor de matérias-primas e receptor de tecnologias já maduras.
A
proposta é estabelecer joint ventures entre empresas estatais brasileiras
(Petrobras, eventualmente uma nova empresa focada apenas em energias
sustentáveis) e grupos estatais chineses líderes em tecnologias de transição
energética – painéis solares de alta eficiência, turbinas eólicas offshore,
baterias de armazenamento, hidrogênio verde.
O
objetivo não é apenas atrair investimentos, mas estabelecer contratos de joint
venture que incluam cláusulas explícitas de transferência tecnológica e
produção local de componentes de alta intensidade tecnológica. A China possui
tanto o interesse estratégico (diversificar cadeias produtivas diante de
pressões ocidentais) quanto a capacidade tecnológica para viabilizar esse tipo
de parceria. Mas isso exige contrapartida brasileira: capacidade de
co-investimento via capitalização de estatais, algo impossível sob o atual
arcabouço fiscal.
Segundo
eixo: inteligência artificial e economia digital. A corrida pela supremacia em
Inteligência artificial é o front central da competição tecnológica global. O
Brasil não tem capacidade de competir diretamente com Estados Unidos ou China
nesse campo, mas pode buscar uma inserção qualificada.
Proponho
parcerias para desenvolvimento de aplicações de Inteligência artificial
voltadas para especificidades brasileiras – agricultura de precisão tropical,
gestão de biomas complexos como Amazônia e Cerrado, sistemas de saúde pública
em escala continental, educação adaptativa para país de dimensões continentais
e desigualdades regionais extremas.
Empresas
chinesas de Inteligência artificial enfrentam crescente fechamento de mercados
ocidentais. O Brasil pode oferecer não apenas um mercado de 215 milhões de
habitantes, mas também dados e problemas únicos que enriqueceriam o
desenvolvimento dessas tecnologias. Em contrapartida, exigimos transferência
tecnológica, formação de quadros brasileiros e desenvolvimento de capacidades
computacionais nacionais – data centers soberanos, processamento em território
nacional, segurança de dados.
Terceiro
eixo: semicondutores e autonomia tecnológica. A dependência brasileira de
semicondutores importados é quase absoluta, tornado o país vulnerável tanto a
choques de oferta (como vimos na pandemia) quanto a pressões geopolíticas. A
China investiu centenas de bilhões de dólares na última década para reduzir sua
própria dependência de chips ocidentais, especialmente diante das restrições
impostas pelos EUA.
Proponho
negociar com grupos chineses do setor a instalação no Brasil de plantas de
fabricação de semicondutores de gerações anteriores (não necessariamente os
chips mais avançados de 3 ou 5 nanômetros, mas chips de 28nm ou superiores que
atendem 90% das aplicações industriais, automotivas e de infraestrutura).
Em
troca, oferecemos mercado garantido via compras públicas, incentivos fiscais e,
crucialmente, uma localização geográfica que oferece alguma proteção contra
pressões geopolíticas estadunidenses.
Esses
três eixos, por sua vez, devem estar conectados a projetos coordenados pelo
Estado de expansão da infra-estrutura econômica e social orientada para um
modelo de crescimento que combine redução de desigualdades, sustentabilidade
ecológica e atendimento de necessidades reconhecidas da população brasileira.
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Síntese – reforma fiscal como pré-condição geopolítica
Retorno
ao argumento central: essas parcerias estratégicas não são viáveis sem a
reforma fiscal que proponho. Joint ventures substantivas exigem que o parceiro
brasileiro entre com capital, não apenas com território e mão-de-obra barata.
Transferência tecnológica genuína só ocorre quando o receptor demonstra
capacidade de absorção, o que exige investimentos massivos em educação,
pesquisa e desenvolvimento institucional. Autonomia tecnológica não se
conquista com passividade fiscal.
O
momento é agora. A janela geopolítica aberta pela rivalidade sino-americana não
permanecerá aberta indefinidamente. Se o Brasil não aproveitar a atual
conjuntura para negociar parcerias substantivas, voltaremos à condição de
receptores passivos de investimentos em setores de baixo valor agregado.
As
eleições de 2026 devem ser disputadas em torno dessa escolha civilizatória:
continuar prisioneiros de uma austeridade que nos condena ao subdesenvolvimento
permanente, ou realizar as reformas institucionais – começando pela fiscal –
que viabilizam uma estratégia soberana de inserção na economia mundial do
século XXI.
A
pergunta que coloco para debate não é se podemos fazer isso, mas se teremos a
coragem política de fazê-lo.
Fonte:
Por Pedro Paulo Zahluth Bastos, em A Terra é Redonda

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