O
que implica transitar à agroecologia?
A
propriedade agrícola agroecológica pode ser compreendida como uma unidade
ecológica de manejo inserida em um território municipal, na qual solo, água,
biodiversidade, trabalho humano e cultura local são organizados de forma
integrada para produzir alimentos e serviços ambientais.
Não se
trata apenas de substituir insumos químicos por insumos “orgânicos”, mas de
redesenhar relações: entre áreas de produção e áreas de proteção, entre campo e
cidade, entre decisões privadas e responsabilidades coletivas. Nessa
perspectiva, a transição agroecológica deixa de ser uma decisão isolada do
agricultor e passa a ser também uma política pública de fomento ao
desenvolvimento ambiental do território.
Em uma
propriedade agroecológica madura, o solo raramente está exposto. A cobertura
vegetal permanente, a ciclagem de resíduos orgânicos, a diversificação de
espécies e o manejo cuidadoso da água criam um ambiente em que a fertilidade
deixa de depender de correções pontuais e passa a ser função da própria
biologia do agroecossistema.
Áreas
de produção, de proteção, de circulação, de construções e de recarga hídrica
são pensadas como partes de um organismo territorial, e não como compartimentos
desconectados. Essa lógica difere radicalmente do modelo convencional, centrado
na maximização de produtividade de curto prazo em parcelas específicas,
frequentemente à custa da erosão, da contaminação da água e da simplificação
biológica da paisagem.
Ao
mesmo tempo, a propriedade agroecológica é um espaço social e econômico. Ela
preserva a centralidade da família agricultora, a qualidade do trabalho, a
autonomia decisória e a capacidade de transmitir conhecimentos entre gerações.
A diversificação produtiva, em cultivos, criações, processamento artesanal e
serviços como turismo de base comunitária, reduz a vulnerabilidade a crises de
mercado e climáticas. Nesse sentido, a qualidade ecológica do manejo é também
estratégia de desenvolvimento local, pois sustenta renda, reduz dependência de
insumos externos e fortalece redes de cooperação entre agricultores,
consumidores e poder público.
Entretanto,
quase nenhuma propriedade nasce “agroecológica”. O que existe é um processo de
transição, muitas vezes longo, cheio de idas e vindas, marcado por
experimentos, erros, ajustes e aprendizados. A transição agroecológica implica
alterar arranjos produtivos, práticas de manejo, fluxos de energia e
nutrientes, relações de trabalho e formas de inserção no mercado. Esse
movimento exige tempo: tempo ecológico para que o solo se recupere, para que as
espécies se estabeleçam, para que a biota do solo retome sua complexidade; e
tempo social para que o agricultor se aproprie das novas lógicas, reorganize
sua economia e se sinta seguro para depender menos de pacotes prontos.
É
justamente aqui que a transição deixa de ser um gesto privado e passa a ser
campo privilegiado de política pública municipal. Quando um município reconhece
a importância de propriedades agrícolas agroecológicas para a conservação da
água, para a redução de riscos de desastres, para a proteção da biodiversidade
e para a segurança alimentar da população, ele passa a ter razões claras para
estruturar instrumentos de fomento. A lógica muda: a propriedade agroecológica
não é apenas “alguém produzindo diferente”, mas uma peça estratégica na
infraestrutura ecológica do território.
Uma
política municipal de incentivo à transição agroecológica pode atuar em
diversas frentes articuladas. A primeira é a assistência técnica e extensão
rural orientada por princípios agroecológicos. Não se trata de levar “receitas
verdes” para substituir “receitas químicas”, mas de construir, junto com as
famílias, diagnósticos ecológicos das propriedades, mapas de áreas frágeis,
planos de manejo do solo e da água, roteiros de diversificação produtiva e
estratégias de comercialização territorializada. A propriedade torna-se um
“campo-escola”, onde se experimenta o manejo de cobertura do solo, o uso de
bioinsumos, a implantação de sistemas agroflorestais, o manejo de bacias de
contenção e terraços vivos, entre outras práticas.
Uma
segunda frente diz respeito aos instrumentos econômicos e regulatórios. O
município pode articular incentivos fiscais, programas de compras públicas da
agricultura familiar, editais de apoio a infraestruturas ecológicas (como
pátios de compostagem, viveiros de mudas, pequenas barraginhas, terraços e
cercamentos de APPs), bem como orientar o Plano Diretor e a legislação de uso e
ocupação do solo para proteger áreas estratégicas de recarga hídrica e produção
de alimentos. Nesse contexto, a propriedade agroecológica é vista como parceira
do município na produção de serviços ecossistêmicos; ao reconhecer isso, a
política pública precisa também assumir parte dos custos de transição, que não
podem recair exclusivamente sobre o agricultor.
Uma
terceira frente é a governança territorial. A transição agroecológica em escala
de município não se constrói apenas com leis e programas, mas com espaços de
diálogo entre agricultores, técnicos, gestores, conselhos municipais e
organizações da sociedade civil. Planos Municipais de Meio Ambiente, de
Agricultura, de Saneamento e de Desenvolvimento Rural podem incorporar metas
explícitas de ampliação de áreas sob manejo agroecológico, corredores
ecológicos articulando propriedades, recuperação de nascentes em parceria com
produtores, entre outras ações. Cada propriedade agroecológica passa, então, a
ser vista como “nó” de uma teia maior de regeneração ecológica do território.
Do
ponto de vista ambiental, a ampliação do número de propriedades em transição
agroecológica tende a produzir efeitos acumulativos sobre a paisagem: redução
da erosão e do assoreamento de cursos d’água, maior infiltração de água de
chuva, aumento da conectividade entre fragmentos de vegetação nativa,
enriquecimento da biota do solo, diminuição da contaminação por agrotóxicos e
melhoria da qualidade ambiental de áreas rurais e periurbanas. Esses
resultados, por sua vez, têm reflexos diretos na cidade: menor risco de
inundações e deslizamentos, menor custo de tratamento de água, oferta de
alimentos mais saudáveis e fortalecimento da identidade local ligada ao campo.
Por
outro lado, a transição agroecológica também explicita desafios. Muitos
agricultores carregam dívidas, contratos de fornecimento de insumos,
compromissos com culturas de alto risco ambiental e econômico. A assistência
técnica convencional costuma estar organizada para apoiar modelos padronizados,
e não processos singulares de redesenho de sistemas complexos. Além disso, a
burocracia de programas públicos pode ser incompatível com o ritmo de adaptação
que a transição exige. Reconhecer esses obstáculos é parte do processo: uma
política municipal consistente precisa ser gradual, realista e dialogada,
oferecendo apoio técnico, financeiro e institucional em etapas.
Em
síntese, a propriedade agrícola agroecológica representa, ao mesmo tempo, um
horizonte e um instrumento de política pública. Horizonte, porque materializa,
no espaço concreto da paisagem rural, a possibilidade de produzir cuidando da
água, do solo, da biodiversidade e das pessoas. Instrumento, porque cada
propriedade em transição contribui, de forma mensurável, para objetivos mais
amplos de desenvolvimento ambiental do território municipal. Ao apoiar e
induzir esse processo, o município deixa de tratar a agricultura apenas como
setor econômico e passa a reconhecê-la como infraestrutura ecológica
estratégica para o futuro.
Assumir
a transição agroecológica como política pública é, em última instância, assumir
que o desenvolvimento ambiental do território não se fará apenas por obras,
normas e planos, mas pelo rearranjo profundo das relações entre sociedade e
natureza no cotidiano das propriedades agrícolas. É nesse cotidiano, na decisão
de cobrir o solo, de proteger a nascente, de diversificar o pomar, de testar um
novo consórcio, de registrar o manejo, de dialogar com o vizinho, que a
propriedade agroecológica se torna um núcleo de transformação. E é conectando
muitos desses núcleos, com apoio consistente do poder público, que os
municípios podem reconstruir, de forma viva e participativa, a base ecológica
do seu próprio desenvolvimento.
Fonte:
Por Afonso Peche Filho, no EcoDebate

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