Mulheres
em luta. A cada 90 minutos um feminicídio
Começo
o dia nublado, grudento e quente em Porto Alegre, ainda em êxtase pela vitória
colorada, logo murcha ao ouvir a diligente notícia das competentes forças
policiais gaúchas: a Polícia Civil do Rio Grande do Sul e a Secretaria Nacional
de Segurança Pública (Senasp), identificaram uma rede de criminosos que
“estimula” a realização de abortos mediante pagamento.
Às 8
horas da manhã tórrida e úmida estavam sendo cumpridos 23 mandados judiciais de
busca e apreensão, em oito diferentes estados, para desarticular essa
“organização criminosa interestadual, especializada no tráfico de medicamentos
controlados”. Sim, senhores: a turma que vende Cytotec pela internet, o
Misoprasol, que a bem da verdade tem salvado muitas vidas ao oferecer uma
alternativa mais segura que os outrora açougueiros de clínicas clandestinas.
Nesta
mesma manhã de investida contra o tal crime do aborto, na primeira hora do
cumprimento de busca e apreensão, pelas estimativas mais recentes da Agência
Brasil (2022) com dados do “Relógios da violência”, oito mulheres por minuto
estavam sofrendo algum tipo de agressão. Os esforços policiais e a coordenação
das autoridades estão, no mínimo, fora de sintonia com o medo e o sofrimento
que se espalha. Ao final da operação, pelo menos uma mulher terá sido morta.
Sim, a
cada 90 minutos uma mulher é assassinada no Brasil, segundo a Defensoria
Pública. As manchetes estão aí, as estatísticas não mentem (Ministério da
Saúde, Fórum Brasileiro de Segurança Pública, IPEA, TJMG, Agência Brasil, etc.)
e a percepção pública não se equivoca: a cada 10 mulheres no nosso país, três
já sofreram violência doméstica. A quem pedir ajuda?
A
polícia é a terceira opção: 58% recorreram à família, 53% à igreja e 28%
procuraram Delegacias da Mulher. Entre as que solicitaram medida protetiva,
quase metade relatou descumprimento. Esses são dados da 11ª Pesquisa Nacional
de Violência contra a Mulher, realizada em 2025 e que entrevistou 21.641
brasileiras com 16 anos ou mais, em todos os estados e DF, entre maio e julho.
A percepção social permanece preocupante.
Segundo
a pesquisa do DataSenado,79% das entrevistadas acreditam que a violência contra
a mulher aumentou no último ano. Perguntadas se as mulheres são tratadas com
respeito, a resposta é de 47% para as vezes e 46% para não. Questionadas se
alguma amiga, familiar ou conhecida já sofreu violência, 67% respondem que sim.
São
números alarmantes sobre violência física e situações limite. Mas há outros,
muitos, elementos sobre uma cultura, um imaginário, uma mentalidade que torna
tudo muito mais grave e não só aqui. Isso tem autoria, tem fomento, tem método.
A extrema direita age com uma combinação iníqua de discurso político, ataques a
instituições e direitos e desmantelamento de políticas públicas.
É
concreto. É fácil de levantar e identificar. Padecemos de manipulações
discursivas, monetização de discursos misóginos, desmonte de políticas,
alteração de legislações que protegem direitos, censura e violência na
educação. Isso começa cedo. Há um ataque sistemático às mulheres e à infância.
A proteção às crianças ou à família é sorrateiramente empunhada como uma
bandeira moral em jogos de cena políticos para ocultar domínios e opressões.
Crianças
tornam-se alvo de discursos patriotas e a manipulação inescrupulosa para fins
políticos, mas na prática, a extrema direita recusa controle do ambiente
digital (alegando liberdade), ataca educação nas escolas (insultando nossa
inteligência com a tal ideologia de gênero), restringe o acesso à saúde física
e mental (com medidas que impedem a atenção e a proteção para crianças
abusadas).
O
aborto é esse tema de dupla moral que se traveste de defesa da vida,
criminaliza meninas e mulheres pobres, e é acionado como estratégia política
baseada em hipocrisia e apelo moralista. Um assunto doloroso, imbricado em
teias jurídicas, morais, religiosas, sanitárias. Defender a escolha, não é
defender a morte. Ninguém defende o aborto. Se defende a liberdade e a
proteção.
Mundo
afora, no entanto, essa mobilização é acionada, sensível que é, para
arregimentar forças que garantam retrocessos totalitários. O foco da opressão
se localiza, via de regra, no corpo feminino. Esses corpos vilipendiados,
arrastados, incendiados, consumidos. E claro, violados em todas as formas
possíveis. Inclusive, algumas consideradas já consagradas. E para isso a
Internet é ambiente perfeito.
Nos
Estados Unidos, nos últimos meses, o lema “Repeal the 19th” viralizou nos
espaços da extrema direita, onde alguns líderes religiosos e comunicadores
sustentam que as mulheres não deveriam participar da política ou votar! O
movimento começou a ganhar força depois da vitória do candidato democrata
Zohran Mandani à prefeitura de Nova Iorque com 80% dos votos femininos.
As
redes foram inundadas com mensagens misóginas que alcançaram o Trend Topic na
plataforma X. A ideia seria proteger as mulheres de si mesmas. Perfis como Joel
Webbon que declarou que as mulheres não estão destinadas a fazer política ou do
pastor Dale Partirdge que disse que não é contra as mulheres, mas que seria
necessário proteger a nação da empatia suicida feminina.
É
ainda, logicamente um movimento minoritário, mas tem eco nas redes e apoio
explícito de figuras próximas do poder, como o Secretário da Guerra Pete
Hegseth. É só ruído, um perigo real ou um sinal de alerta sobre como são
frágeis os direitos fundamentais das mulheres?
Essa
erosão de direitos tem uma dimensão concreta, jurídica e política. Mas tem
sobretudo, uma dimensão simbólica. Nesse terreno, sobejam espaços, perfis e
discursos que alcançam fama e dinheiro disseminando ódio, propondo manuais,
vendendo cursos e ideias amplamente consumidas de submissão feminina,
hierarquia de gênero e culto a um certo tipo de masculinidade.
Esse
abrigo para jovens confusos com o próprio papel na sociedade e a sua necessária
convivência com mulheres que exigem igualdade, é cada vez mais rentável e mais
letal. Às vezes, no entanto, ocorre de ruir a performance diante da vulgar e
dura realidade. O case do Calvo do Campari, apelido de Thiago da Cruz Schoba,
coach de masculinidade, acusado de agressão e estupro pela ex-namorada gerou
uma crise de imagem corporativa sem precedentes.
A
empresa Campari nunca patrocinou – e em 2023 repudiou falas misóginas do ícone
do movimento Red Pill – mas teve sua reputação arrastada no escândalo de
misoginia. O retrato digital do estrago é feio. A reputação online está numa
pontuação de 3.9 em um ranking que vai até 10 (segundo dados da empresa
Claritor).
Uma
crise noticiada no canal Info Money, (com 18 mil views por menção), ou seja,
viral, mais do que volumosa ou expressiva. O sentimento negativo associado à
marca domina as conversas, portanto, gera mais engajamento. Das 55 menções
totais, 377 são negativas, quase 70 % da conversa. Mais de um milhão de
engajamento tóxico demonstra que o público está decidido em condenar a
associação e não reconhece que a marca não tem a ver com o problema.
No
Twitter onde se concentram 70 % das menções, o número de visualizações alcança
3,6 milhões, maior parte dominada pelo sentimento negativo. É inequívoco que
houve uma condenação pública e isso é algo positivo. Como a Campari vai
desinfetar seu nome, veremos. Como as mulheres seguirão tendo que tratar de
sobreviver é o mais urgente.
Como a
política se transforma a partir disso, é o relevante nesta quadra histórica de
um capitalismo em crise comandado por espíritos prenhes de megalomania, fracos
e covardes, sejam eles do gênero que for. Não vamos esquecer que tem por aí
mulher “comandante” portadora do pior e mais patético autoritarismo.
Mas,
nestes dias de incandescência nos termômetros e na paciência das mulheres
gaúchas, teve marcha e teve construção, com a doçura e a meticulosidade das
colmeias. O movimento MEL, Mulheres em Luta, tomou as ruas da cidade como
enxame e como força polinizadora. É uma boa ideia para o hoje e para o amanhã.
E assim, cantamos: “você sabe explicar, você sabe entender tudo bem, você está,
você é, você faz, você quer, você tem!”
Fonte:
Por Sandra Bitencourt, em A Terra é Redonda

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