Brasil,
lar dos idosos precarizados?
Em
2024, parcela da população com 60+ ocupada bate recorde. Maioria é de
informais. Enfrentam, com recursos limitados, as incertezas de uma velhice com
baixa proteção social. Drama atinge em especial mulheres e negros e expõe
desafios urgentes às políticas públicas...
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A experiência do trabalho para além dos números: idosos, gênero e raça
Os
indicadores recentes sobre o mercado de trabalho brasileiro revelam mais do que
meras estatísticas: desvelam experiências vividas por milhões de trabalhadores
e trabalhadoras que, cotidianamente, confrontam estruturas de dominação e
precarização.
A
Síntese de Indicadores Sociais 2025, divulgada pelo IBGE, aponta que 24,4% das
pessoas com 60 anos ou mais estavam ocupadas em 2024, o maior nível histórico
registrado. Longe de representar simplesmente uma “conquista” econômica, esse
dado exige uma leitura atenta às condições materiais e simbólicas que impelem
idosos e idosas a permanecerem ou retornarem ao mundo do trabalho. A baixa taxa
de desemprego nessa faixa etária — apenas 2,9% — não pode ser dissociada do
fato de que 55,7% dessas ocupações são informais, o que sugere menos uma
escolha autônoma e mais uma imposição estrutural para a sobrevivência.
A
dimensão de gênero atravessa essa realidade de maneira contundente. Conforme
aponta o levantamento do G1 sobre a pesquisa do IBGE, apenas 49,1% das mulheres
brasileiras encontravam-se ocupadas em 2024, contra 68,8% dos homens. Essa
disparidade, que se mantém praticamente estável desde 2012, não resulta de
diferenças naturais ou de uma suposta menor aptidão feminina, mas de uma
divisão sexual do trabalho historicamente construída que sobrecarrega as
mulheres com responsabilidades domésticas e de cuidado não remuneradas. As
mulheres dedicam quase o dobro do tempo que os homens aos afazeres domésticos,
o que limita objetivamente suas possibilidades de inserção e permanência no
mercado formal. Essa sobrecarga, longe de ser um dado imutável da condição
feminina, é produto de relações sociais que podem e devem ser transformadas.
A
intersecção entre gênero e raça aprofunda ainda mais as desigualdades. As
mulheres pretas e pardas apresentam as maiores taxas de subutilização e os
menores rendimentos entre todos os grupos analisados.
Os
dados de 2024 confirmam essa análise: enquanto homens idosos brancos recebiam
R$ 33,10 por hora, idosos pretos ou pardos obtinham R$ 17,90 — uma diferença de
85,6%. Entre as mulheres, o rendimento médio foi de R$ 2.718, contra R$ 4.071
dos homens na mesma faixa etária. Essas disparidades não são anomalias do
sistema, mas expressões concretas de uma estrutura social que hierarquiza
corpos e experiências desde o período escravista.
A
discriminação assume um perfil “elitista”, intensificando-se nos estratos mais
altos da distribuição de renda, o que evidencia que mesmo a qualificação
educacional não elimina as barreiras impostas pela cor da pele. Os trabalhos de
Eunice Lea de Moraes (2006), publicados na revista Ciência e Cultura da SBPC,
já alertavam que as desigualdades de gênero e raça no Brasil não são fenômenos
relativos a minorias, mas dizem respeito às grandes maiorias da população:
mulheres representam 43% e negros 46% da População Economicamente Ativa,
somando aproximadamente 70% — cerca de 60 milhões de pessoas.
A
compreensão dessas desigualdades exige uma perspectiva que considere os
trabalhadores e trabalhadoras como sujeitos ativos de sua própria história, e
não como receptáculos passivos de políticas econômicas ou vítimas inertes de
estruturas opressoras. Os idosos que permanecem no mercado de trabalho
informal, as mulheres que conciliam jornadas duplas e triplas, os trabalhadores
negros que enfrentam barreiras invisíveis de ascensão profissional — todos
esses grupos desenvolvem estratégias de resistência e adaptação que conformam
experiências de classe específicas. Ignorar essa agência é reduzir a análise a
um economicismo que obscurece as dimensões culturais, afetivas e morais do
trabalho.
Tabela
1 – Principais desigualdades no mercado de trabalho brasileiro (2024)
Indicador Idosos (60+) Mulheres Negros
Taxa de
ocupação 24,4% 49,1% –
Taxa de
desocupação 2,9% 20,4% subutiliz. 9,5%
Informalidade 55,7% Maior
precarização 61,2% (P/P)
Rendimento
médio R$ 3.561 78,6% do masc. 48,7%
do branco
Rend.
por hora (60+) R$ 25,60 R$ 21,60 R$
17,90
Fonte:
IBGE, Síntese de Indicadores Sociais 2025. Elaboração própria.
Nota:
Os dados apresentados nesta seção baseiam-se na Síntese de Indicadores Sociais
2025 (IBGE), em reportagens do portal G1 e O Globo publicadas em 03/12/2025, e
nos estudos de DRUCK, Graça (Cad. CRH, v. 24, n. 61, 2011), PAIXÃO, Marcelo;
CARVANO, Luiz M. (Rev. Econ. Pol., v. 28, n. 4, 2008) e MORAES, Eunice Lea
(Ciência e Cultura, v. 58, n. 4, 2006).
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Precarização estrutural e as armadilhas da analise econômica convencional
O mês
de outubro de 2025 registrou o pior desempenho para o período desde 2020, com a
criação de apenas 85.147 vagas formais de trabalho, segundo dados do Novo CAGED
divulgados pelo Ministério do Trabalho. A queda de aproximadamente 35% em
relação ao mesmo mês de 2024 evidencia uma desaceleração preocupante no ritmo
de formalização do emprego, mesmo em um contexto de recuperação econômica
pós-pandemia.
O
ministro Luiz Marinho atribuiu o resultado à política de juros elevados
praticada pelo Banco Central, com a taxa Selic em 15% ao ano. No entanto, essa
explicação, embora parcialmente válida, não esgota a complexidade do fenômeno.
A taxa de juros é apenas uma das variáveis que compõem um cenário mais amplo de
transformações estruturais no mundo do trabalho.
A
análise econômica convencional tende a tratar o mercado de trabalho como um
mecanismo autorregulado, no qual a oferta e a demanda de mão de obra
encontrariam naturalmente um ponto de equilíbrio caso não fossem perturbadas
por intervenções estatais ou “rigidez” salarial. Essa perspectiva, predominante
nos diagnósticos que embasaram a Reforma Trabalhista de 2017 e a Reforma da
Previdência de 2019, pressupõe que a flexibilização das relações de trabalho
conduziria automaticamente à geração de empregos e à redução da informalidade.
A
precarização do trabalho renova e reconfigura a precarização histórica e
estrutural do trabalho no Brasil. O conteúdo dessa nova precarização está dado
pela condição de instabilidade, insegurança, adaptabilidade e fragmentação dos
coletivos de trabalhadores. Os setores de indústria e agropecuária, que em
outubro de 2025 destruíram cerca de 20 mil empregos, exemplificam como a
volatilidade econômica afeta desproporcionalmente trabalhadores em posições já
fragilizadas. Enquanto isso, os setores de serviços e comércio, que lideraram a
criação de vagas, são justamente aqueles marcados por maior rotatividade e
menor proteção social.
A
participação sem precedentes de trabalhadores informais na economia não pode
ser celebrada como expressão de empreendedorismo ou autonomia. A informalidade,
nesse contexto, não representa uma escolha racional por flexibilidade, mas uma
imposição decorrente da ausência de alternativas dignas. O trabalhador informal
brasileiro, especialmente o negro e periférico, encontra-se exposto a riscos
laborais, ausência de proteção em períodos de inatividade e falta de segurança
financeira — uma condição que reproduz, sob novas formas, padrões de exploração
sedimentados ao longo de séculos.
A
economia, quando abstraída das relações sociais concretas que a constituem,
converte-se em ideologia. Os modelos econométricos que explicam diferenciais
salariais por raça e gênero a partir de “defasagens de capital humano” ou
“preferências individuais” obscurecem os mecanismos de discriminação e exclusão
que operam no cotidiano das relações de trabalho. A pesquisa de desigualdades
salariais entre raças, realizada por Campante, Crespo e Leite na Revista
Brasileira de Economia, demonstrou que, mesmo controlando variáveis como
escolaridade e experiência, persiste um componente de discriminação que afeta
especialmente os trabalhadores negros nos estratos superiores da distribuição
de renda. A meritocracia, tão celebrada pelo discurso liberal, revela-se uma ficção
quando confrontada com a realidade da reprodução intergeracional das
desigualdades.
Tabela
2 – Contribuições conceituais para a análise do mercado de trabalho
Conceito Definição operacional Implicação analítica
Precarização
estrutural Institucionalização da
instabilidade e insegurança como norma das relações laborais Supera a dicotomia formal/informal; revela
continuidades históricas
Divisão
sexual do trabalho Distribuição desigual
de tarefas reprodutivas e produtivas por gênero Explica
disparidades de ocupação e rendimento entre homens e mulheres
Discriminação
elitista Intensificação da
discriminação racial nos estratos superiores de renda Demonstra que qualificação não elimina barreiras raciais
Informalidade
de subsistência Trabalho informal
motivado por necessidade, não escolha Contesta
narrativa do empreendedorismo como liberdade
Subutilização
da forca de trabalho Trabalhadores que
desejam mais horas mas não conseguem Amplia
conceito de desemprego; revela precariedade oculta
Fonte:
Elaboração própria com base em DRUCK (2011), PAIXAO; CARVANO (2008), CAMPANTE;
CRESPO; LEITE (2004), COCKELL (2014).
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Para além das estatísticas: a experiência vivida do trabalho
Os
números apresentados nas seções anteriores adquirem significado apenas quando
situados no contexto das experiências concretas de trabalhadores e
trabalhadoras que, diariamente, enfrentam as contradições do mercado de
trabalho brasileiro. Uma idosa de 65 anos que trabalha como autônoma vendendo
produtos em sua comunidade não está simplesmente ocupando uma vaga na categoria
“conta própria” das estatísticas do IBGE; ela está mobilizando saberes
acumulados ao longo de décadas, construindo redes de solidariedade vicinal, e
enfrentando, com recursos limitados, as incertezas de uma velhice sem proteção
social adequada. Sua experiência de trabalho é, simultaneamente, expressão de
vulnerabilidade e de resistência.
A
informalidade, nesse sentido, não pode ser reduzida a uma categoria residual ou
a um problema a ser “resolvido” pela formalização compulsória. Para milhões de
brasileiros e brasileiras, o trabalho informal constitui a única via possível
de inserção econômica em um contexto de desemprego estrutural e de erosão dos
empregos protegidos. Isso não significa romantizar a precariedade ou negar a
importância da proteção social; significa reconhecer que as pessoas
desenvolvem, no interior de condições adversas, formas próprias de organização
do trabalho, de divisão de tarefas familiares e de construção de identidades
profissionais. Essas formas não são meros desvios de uma norma salarial
idealizada, mas expressões legítimas de uma classe trabalhadora plural e heterogênea.
A
questão de gênero ilustra com clareza essa complexidade. As mulheres
brasileiras não apenas enfrentam barreiras objetivas de acesso ao mercado de
trabalho — como a escassez de creches públicas e a expectativa social de que
assumam os cuidados domésticos —, mas também desenvolvem estratégias de
conciliação, negociação e, por vezes, subversão dessas expectativas. A
trabalhadora que opta por um emprego de tempo parcial para cuidar dos filhos
não está necessariamente “escolhendo” a precariedade; está respondendo a um
constrangimento estrutural com os recursos disponíveis. Ao mesmo tempo, sua
decisão pode representar uma forma de preservar laços afetivos e comunitários
que o trabalho formal em tempo integral frequentemente ameaça.
O
recorte racial das desigualdades revela, por sua vez, a persistência de uma
estrutura de dominação que antecede o próprio capitalismo industrial
brasileiro. A população negra, que passou da escravidão à “liberdade” sem
qualquer medida de reparação ou integração, permanece até hoje
sobrerrepresentada nos trabalhos mais precários, perigosos e mal remunerados.
Os dados sobre informalidade entre idosos pretos e pardos — 61,2%, contra a
média já elevada de 55,7% — não são apenas números: são a expressão estatística
de uma exclusão que se reproduz de geração em geração. A luta contra o racismo
no mercado de trabalho não pode, portanto, limitar-se a políticas focalizadas;
exige uma transformação profunda das estruturas econômicas e sociais que
sustentam a hierarquização racial.
O
cenário atual, marcado pela desaceleração na criação de empregos formais e pela
manutenção de elevados níveis de informalidade, impõe desafios urgentes às
políticas públicas. Não se trata apenas de estimular o crescimento econômico ou
de ajustar a taxa de juros — medidas necessárias, porém insuficientes. É
preciso enfrentar a precariedade em suas múltiplas dimensões: garantir proteção
social aos trabalhadores informais, ampliar a oferta de serviços públicos que
permitam às mulheres conciliar trabalho e cuidado, combater ativamente a
discriminação racial nas contratações e promoções, e valorizar as formas de
trabalho que, embora não se encaixem no modelo do emprego assalariado clássico,
sustentam a reprodução social de milhões de famílias.
A
análise aqui apresentada buscou demonstrar que o mercado de trabalho brasileiro
não pode ser compreendido apenas por meio de indicadores agregados ou modelos
econométricos abstratos. Cada taxa de desemprego, cada diferencial de
rendimento, cada percentual de informalidade condensa experiências vividas por
sujeitos concretos que, longe de serem meros portadores de força de trabalho,
são produtores de cultura, de solidariedade e de resistência. Reconhecer essa
dimensão não implica abandonar a análise estrutural, mas enriquecê-la com a
atenção às formas pelas quais as pessoas comuns — idosos, mulheres, negros,
trabalhadores informais — fazem e refazem sua história no interior de condições
que não escolheram. É nessa tensão entre estrutura e agência, entre determinação
e liberdade, que se situa o desafio de pensar um mundo do trabalho mais justo e
mais humano.
Fonte:
Por Erik Chiconelli Gomes, em Outras Palavras

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