Ministério
da Agricultura tenta remover menção a agrotóxicos do Plano Clima
Documento
com o pedido inclui críticas a trechos sobre desmatamento e conflitos
socioambientais e teria sido redigido em conjunto com a Frente Parlamentar da
Agropecuária e o Instituto Pensar Agro, braço da bancada ruralista; texto foi
enviado aos responsáveis pelo Plano Clima semanas antes de o governo adiar seu
anúncio durante a COP30 após pressão do próprio ministério...
O MAPA
(Ministério da Agricultura e Pecuária) pediu a retirada de referências a
agrotóxicos, desmatamento e conflitos socioambientais do Plano Clima,
documento-guia das ações de enfrentamento à crise climática no Brasil até 2035.
As
menções no texto questionadas pela pasta são listadas como fatores que agravam
a insegurança alimentar. Para o ministério, elas seriam “ideológicas” e
“nocivas à imagem do agro”.
O
pedido, obtido com exclusividade pela Repórter Brasil, foi enviado ao grupo
responsável pelo capítulo de adaptação do plano em meados de outubro, semanas
antes de o governo adiar seu anúncio durante a COP30 após pressão do próprio
Mapa. O texto original foi submetido à consulta pública em abril deste ano.
A
reportagem apurou, ainda, que a solicitação teria sido redigida “a seis mãos”:
Mapa, FPA (Frente Parlamentar da Agropecuária) e IPA (Instituto Pensar Agro).
Braço ideológico, técnico e financeiro da bancada ruralista, o IPA é financiado
por grandes entidades empresariais, como a Abia (Associação Brasileira da
Indústria de Alimentos), e pela Croplife, associação que representa
multinacionais fabricantes de agrotóxicos.
No
pedido, o Ministério da Agricultura afirma que a agropecuária é retratada no
Plano Clima como “atividade próxima a práticas ilícitas” e, por isso, pede a
supressão ou reescrita de ao menos oito trechos que mencionam problemas ligados
à produção de alimentos em larga escala — do uso de agrotóxicos ao
desmatamento, passando por conflitos com comunidades tradicionais e pela
crítica aos sistemas alimentares hegemônicos e à produção de ultraprocessados.
“O
documento necessita de ajustes substanciais em seu Capítulo 2, sob pena de
configurar instrumento institucionalizado de ataque infundado à produção
agropecuária nacional, caracterizando desvio de finalidade e tentativa de
difusão de ideologias”, afirma a pasta na solicitação.
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Governo não informa se sugestões do Mapa foram incorporadas
Para
Inês Rugani, coordenadora do ObservaCOI (Observatório Brasileiro de Conflitos
de Interesse em Alimentação e Nutrição), a pressão do Mapa deixa explícita uma
tentativa de controlar o conteúdo das políticas públicas que possam impactar o
setor que representa. “O Ministério da Agricultura tem sido porta-voz do setor
produtivo hegemônico, e não um defensor do interesse público”, afirma.
Procurados,
o Ministério da Agricultura, o IPA e a FPA não haviam retornado até a
publicação desta reportagem.
Questionado
se as observações do Mapa foram incorporadas, total ou parcialmente, o MMA
(Ministério de Meio Ambiente e Mudança do Clima) afirmou que a parte de
adaptação do Plano Clima e seus 16 planos setoriais “já foram avaliados e
aprovados pelo Subcomitê-Executivo do Conselho Interministerial sobre Mudança
do Clima (CIM), que deverá referendar o conteúdo integral dessa política nas
próximas semanas”.
Disse,
também, que a elaboração dos 16 eixos temáticos do capítulo de adaptação do
plano está sob responsabilidade dos ministérios “pertinentes a cada tema,
cabendo a cada um deles acolher, total ou parcialmente, as sugestões advindas
da sociedade e de colaborações interministeriais”. Segundo a pasta, no caso do
plano setorial de segurança alimentar e nutricional, “essa tarefa coube
exclusivamente ao Ministério do Desenvolvimento Social (MDS)”.
Também
procurado pela Repórter Brasil, o MDS não retornou até a publicação desta
reportagem. O espaço segue aberto a manifestações.
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Agronegócio pede remoção de menções a agrotóxicos, desmatamento e conflitos
socioambientais
Um dos
trechos que o Mapa exige remover do Plano Clima é a afirmação de que “o uso de
agrotóxicos no Brasil é extremamente alarmante, sendo o Brasil um dos maiores
consumidores de pesticidas do mundo”. Para a pasta, essa formulação levaria a
“conclusões de grave impacto reputacional” e repetiria “discurso do Norte
global”, concorrente à agricultura brasileira.
“O
texto é impreciso, não agrega, gera interpretações erradas que maculam a
atividade agropecuária nacional, faz uma comunicação de risco completamente
rasa e errada e, portanto, deve ser excluído de um programa oficial do governo
brasileiro”, afirma o ministério no pedido enviado ao grupo responsável pelo
capítulo de adaptação do plano.
O Mapa
contesta o uso de números absolutos e argumenta que a análise deveria
considerar o consumo por hectare cultivado. “Se isso tivesse sido feito, o
Brasil não configuraria entre os países com o maior uso por hectare”, diz a
solicitação.
Dados
recentes da FAO (Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura),
no entanto, revelam que o Brasil foi o maior consumidor mundial de agrotóxicos
em 2023, com 801 mil toneladas de ingredientes ativos aplicados na agricultura
— 86% a mais que os Estados Unidos, segundo colocado. No ranking por área
cultivada, o Brasil aparece em segundo lugar, atrás apenas do Vietnã.
O
Ministério da Agricultura também pede a exclusão de trechos que associam a
expansão de monocultivos a conflitos ambientais, alegando que a relação
apresentada no Plano Clima é “desconexa”, ignora outras causas e prejudica a
imagem do país.
Em
relação ao desmatamento, a pasta critica a recomendação de acabar com qualquer
tipo de supressão vegetal — legal ou ilegal — para fins de produção de
alimentos. Para o Mapa, essa é uma
“polêmica desnecessária”, já que o Código Florestal autoriza desmates legais:
“Se o governo constituído entende que não deva haver mais desmatamento legal,
deve trabalhar para mudança da lei do País e não se manifestar em plano
oficial”.
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Estudos demonstram papel da produção industrial de alimentos na crise climática
Na
avaliação de Rugani, do ObservaCOI, caso os pedidos do Mapa sejam acatados e o
Plano Clima não descreva com clareza a contribuição dos sistemas alimentares
para a crise climática, o governo corre o risco de entregar um documento apenas
paliativo, comprometendo seu objetivo. “Um plano mais recuado significa não
efetividade. A gente não tem tempo para respostas frágeis diante do colapso
climático.”
Estudos
científicos têm demonstrado o papel dos sistemas alimentares na crise
climática. No Brasil, a agropecuária respondeu por 70% das emissões de gases de
efeito estufa em 2024, segundo o Seeg, plataforma do Observatório do Clima.
Globalmente,
a produção de alimentos em larga escala é responsável por cerca de 30% das
emissões e pressiona cinco dos nove limites planetários, segundo relatório da
Comissão EAT-Lancet. O estudo alerta que, mesmo se o mundo zerar as emissões do
setor energético, a forma atual de produzir e consumir comida já seria
suficiente para ultrapassar a meta de 1,5°C do Acordo de Paris.
Mesmo
diante dessa realidade, o setor agropecuário brasileiro demonstrou seu peso
político ao conseguir adiar o anúncio do Plano Clima, previsto para acontecer
durante a COP30.
O
documento é a principal ferramenta para tirar do papel as metas climáticas
assumidas pelo Brasil na sua NDC (Contribuição Nacionalmente Determinada)
apresentada em novembro de 2024 na COP29, em Baku, no Azerbaijão. Ele define as
ações de mitigação e adaptação necessárias para a redução substancial das
emissões de gases de efeito estufa até 2035 e para a preparação diante dos
impactos da crise climática.
“O
Plano Clima vai detalhar como o Brasil pretende cumprir essa trajetória”,
explica Marta Salomon, especialista sênior do Instituto Talanoa. Para ela,
aprovar o plano é essencial para garantir uma política climática funcional:
“Qual é o risco de não ter? Impediria o Brasil de ter uma política detalhada
como raríssimos países têm”.
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Agronegócio quer ‘consenso’ entre setor produtivo e governo
Representantes
do agronegócio deixaram a conferência do clima da ONU, em Belém (PA),
comemorando o adiamento do anúncio do plano. “Depois de uma análise técnica,
vimos que houve avanços, mas ainda tínhamos muitos problemas. O IPA [Instituto
Pensar Agro] formalizou aos ministérios um apelo para que não houvesse nenhum
anúncio do plano durante a COP30”, afirmou a presidente do instituto, Tânia
Zanella, em reunião da Frente Parlamentar da Agropecuária em 25 de novembro,
poucos dias depois do fim do evento.
No
mesmo encontro, ela disse que o Mapa sinalizou a criação de um grupo de
trabalho com participação do setor para revisar o plano antes de sua publicação
final.
Em
entrevista coletiva durante a conferência, o ministro da Agricultura Carlos
Fávaro minimizou a necessidade de anunciar o documento em Belém: “Não chegamos
ainda a um consenso entre o setor produtivo e o governo, mas também não há
necessidade alguma de que seja anunciado dentro da COP”. Questionado pela
Repórter Brasil sobre um possível risco de o plano ficar para 2026, ano
eleitoral, ele afirmou: “O tempo de acontecer é o tempo do consenso, e eu posso
lhe garantir que não está longe”.
A
posição foi reforçada por Roberto Rodrigues, enviado especial da agricultura
para a conferência e ex-ministro da Agricultura do primeiro governo Lula. “Tem
que haver um acerto de opiniões entre o governo e o setor privado para que todo
mundo fique satisfeito, e por enquanto não há essa felicidade ainda. Falta esse
acerto”, disse.
Para
especialistas, a reação do setor tenta deslocar a agropecuária da posição de
principal emissora para a de injustiçada. “Evitar dizer que a agropecuária é
vilã do clima é uma mentira. É o setor que mais emite gases de efeito estufa e
também o mais vulnerável às mudanças climáticas”, afirma Salomon, do Instituto
Talanoa. “Não reconhecer a fonte do problema impede qualquer solução.”
Samanta
Fabris, pesquisadora do programa de Alimentação Saudável e Sustentável do Idec
(Instituto de Defesa de Consumidores), alerta para os riscos de se
eventualmente incorporar os pedidos do setor agropecuário na versão final do
Plano Clima: “Quando se cede um plano tão importante aos interesses de um
setor, desbalanceia-se tudo. A gente desmerece a urgência da crise climática,
especialmente na adaptação, que chega na vida real de pequenos agricultores,
povos tradicionais e populações periféricas”, diz.
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Íntegra da resposta do Ministério do Meio Ambiente
• 1. As observações do Mapa foram
incorporadas, total ou parcialmente, ao capítulo sobre segurança alimentar e
nutricional, mesmo sendo enviadas após o prazo de contribuições? Em caso
afirmativo, que trechos foram alterados, atenuados ou suprimidos em função
dessas contribuições?
A
elaboração do Plano Clima Adaptação e seus 16 planos setoriais – incluindo
segurança alimentar e nutricional – envolveu mais de duas dezenas de
ministérios num processo transversal coordenado pela Casa Civil, Ministério do
Meio Ambiente e Mudança do Clima (MMA) e Ministério da Ciência, Tecnologia e
Inovação (MCTI) que começou em 2023. As estratégias e ações desses 16 eixos
temáticos de adaptação foram elaboradas pelos respectivos ministérios
pertinentes a cada tema, cabendo a cada um deles acolher, total ou
parcialmente, as sugestões advindas da sociedade e de colaborações
interministeriais. No caso do plano setorial de segurança alimentar e
nutricional, essa tarefa coube exclusivamente ao Ministério do Desenvolvimento
Social (MDS).
• 2. Houve retirada ou suavização de
menções à relação entre expansão da agropecuária e questões como conflitos
fundiários, uso de agrotóxicos, ou impactos sobre inflação de alimentos e
consumo de alimentos in natura, por serem consideradas potencialmente prejudiciais
à imagem do setor?
Não
coube às equipes do MMA interferir nos impactos que eventuais medidas de
adaptação possam causar na cadeia produtiva em questão. Ao Meio Ambiente foi
atribuída a missão de coordenar, junto com Casa Civil e MCTI, os processos de
elaboração dos diversos planos setoriais que compõem o Plano Clima Adaptação.
Vale lembrar que o Plano Clima Adaptação e seus 16 planos setoriais já foram
avaliados e aprovados pelo Subcomitê-executivo do Conselho Interministerial
sobre Mudança do Clima (CIM), que deverá referendar o conteúdo integral dessa
política nas próximas semanas. Vale lembrar, também, que o processo de
construção foi feito de forma multissetorial e transversal, com ampla
participação da sociedade por meio de oficinas, webinários e consultas
públicas.
• 3. As divergências e pressão do Mapa
interferiram no cronograma de finalização do Plano Clima, que seria anunciado
durante a COP30? Qual é hoje o status do plano? E qual a previsão de aprovação
e divulgação?
Não. O
Plano Clima Adaptação e seus 16 planos setoriais foram concluídos e aprovados
pelo Subcomitê-executivo do Conselho Interministerial sobre Mudança do Clima
(CIM) no prazo estabelecido.
• 4. Na avaliação do ministério, quais são
os impactos de um eventual adiamento da publicação do plano, inclusive a
possibilidade de que a versão final seja concluída apenas em 2026, ano
eleitoral? Há risco de que o plano deixe de se consolidar como uma política de
Estado?
O Plano
Clima é uma política de Estado, não de governo. Portanto, não está atrelado a
qualquer calendário eleitoral. As negociações que envolvem os planos setoriais
de mitigação, ainda em debate, bem com as cinco estratégias transversais que
compõem o plano, serão concluídas no prazo possível, para que contemplem as
demandas dos ministérios envolvidos de forma justa e adequada.
Fonte:
Repórter Brasil

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