quinta-feira, 11 de dezembro de 2025

A indústria do dano moral coletivo racial e a ausência de mudanças institucionais

A expressão “indústria do dano moral coletivo racial” não possui estatuto dogmático nem encontra suporte formal na tradição jurídica brasileira. Trata-se de um jargão crítico, empregado para descrever um fenômeno que se tornou visível para operadores do direito, magistrados, empresas e, sobretudo, para as próprias vítimas: a proliferação de ações civis públicas que têm se mostrado incapazes de produzir qualquer transformação institucional efetiva, convertendo-se, na prática, em um ritual de compensação financeira repetitivo e desconectado da realidade que gera o dano. O termo funciona como diagnóstico, não como categoria. E o diagnóstico revela a falha estrutural mais profunda do sistema: a incapacidade do direito brasileiro de enfrentar os vínculos entre racismo e vieses institucionais, precisamente a camada invisível que dá origem aos episódios que depois se tentará reparar judicialmente.

Os casos de discriminação racial que chegam ao Judiciário raramente são fruto de atos voluntários, conscientes ou deliberados. Em sua esmagadora maioria, resultam de percepções automáticas, julgamentos intuitivos, hábitos operacionais não examinados, lógicas internas de suspeição, padrões de vigilância seletiva e rotinas decisórias que respondem de forma diferenciada a indivíduos com determinados marcadores raciais. O racismo institucional brasileiro é um fenômeno de viés, não de intenção. Opera nas margens da consciência, reproduz-se nos procedimentos, infiltra-se no cotidiano administrativo e se manifesta nos resultados, não nas declarações. Ele não está nos discursos explícitos das instituições, mas nas engrenagens silenciosas que condicionam sua atuação.

Apesar disso, a arquitetura da tutela coletiva brasileira continua orientada para um paradigma de responsabilização volitiva, centrado em culpa, dolo, culpa grave ou negligência manifesta. Nessa moldura, a discriminação racial é tratada como colisão episódica entre indivíduos, enquanto a realidade demonstra que ela é produzida por mecanismos internos e automatizados. A consequência dessa dissonância é direta: o sistema jurídico intervém no episódio final, mas não na estrutura que o produz, e por isso a reincidência se torna regra e não exceção.

É esse descompasso que explica a ineficácia das indenizações por dano moral coletivo. Embora socialmente celebradas e muitas vezes numericamente expressivas, tais condenações não enfrentam o problema real. A elas se somam Termos de Ajustamento de Conduta que, em vez de incidirem sobre fluxos operacionais, padrões de suspeição ou critérios de risco, limitam-se a compromissos genéricos, campanhas de conscientização, treinamentos superficiais e declarações institucionais sem lastro verificável. Não se exige revisão de protocolos; não se demanda auditoria externa; não se produzem métricas de redução de incidentes; não se estabelece supervisão continuada. O resultado é inevitável: a instituição permanece operando exatamente como antes. E, se opera como antes, repetirá os danos de antes.

Há ainda um elemento que intensifica o problema e precisa ser nomeado com precisão: a opacidade e a baixa accountability dos fundos de reparação formados a partir das condenações por dano moral coletivo. Esses fundos têm movimentado recursos relevantes, mas raramente apresentam governança clara, demonstrativos públicos de destinação, auditorias independentes ou indicadores que permitam aferir se a verba aplicada produziu qualquer impacto na redução de incidentes discriminatórios. Não raro tornam-se caixas-pretas legitimadas pela moralidade da causa, mas esvaziadas de funcionalidade. A ausência de transparência converte o mecanismo de reparação em instrumento retórico, e não em instrumento de transformação. Assim, o dinheiro circula, mas o viés permanece. A estrutura que produz o dano segue intacta e, portanto, segue produzindo novos casos.

A esse quadro soma-se uma questão delicada, mas incontornável: a captura econômica da litigância racial por determinadas entidades, que passaram a se financiar por meio da proposição reiterada de ações coletivas. O sofrimento de indivíduos concretos transforma-se em ativo financeiro institucional. A pauta racial, de altíssima relevância social, é apropriada por incentivos econômicos, e a energia que deveria ser direcionada à modificação das instituições converte-se em fluxo de receita. Quando o centro da tutela coletiva se desloca da prevenção para a arrecadação, perde-se o sentido constitucional da ação coletiva. A pergunta deixa de ser “como a instituição deve ser reorganizada para evitar novos danos?” e passa a ser “qual será o valor da condenação?”. A consequência é conhecida: casos se repetem, ações se repetem, condenações se repetem, repasses financeiros se repetem, e nada muda. A indústria, portanto, é de vítimas e de ineficácia.

A Constituição de 1988 não autoriza esse modelo. Os artigos 1º, III (dignidade da pessoa humana), 3º, IV (promoção do bem sem discriminação) e 5º, XLI (criminalização do racismo) exigem uma leitura funcional da tutela coletiva. Tais dispositivos apontam para um modelo que identifica o racismo como falha institucional, impõe deveres positivos de prevenção e determina que a resposta jurídica atue sobre a realidade que produz o problema, não apenas sobre seus efeitos periféricos. A tutela coletiva, para ser constitucional, precisa produzir redução de incidência, e não somente compensações financeiras.

<><> Disparate impact

É nesse ponto que o direito comparado oferece lições valiosas. O sistema norte-americano, especialmente a partir da decisão Griggs v. Duke Power Co. (1971)¹, formulou a doutrina do disparate impact, reconhecendo que práticas organizacionais aparentemente neutras podem produzir discriminação quando seus efeitos recaem desproporcionalmente sobre grupos racialmente identificáveis, mesmo sem intenção discriminatória. Essa virada deslocou o eixo da responsabilidade: o foco passou a ser a estrutura institucional, e não a intenção subjetiva. O Congresso consolidou essa orientação no Civil Rights Act de 1991², que exige das instituições justificativas objetivas para práticas com impacto desigual e a adoção de alternativas menos discriminatórias sempre que disponíveis.

As consequências dessa abordagem são profundas. O disparate impact não é apenas uma teoria jurídica, é um método de reorganização institucional. Quando identificada uma disparidade racial significativa, desencadeia-se um processo de revisão estrutural. Adaptações de protocolos, mudanças em fluxos de decisão, elaboração de relatórios públicos, implementação de auditorias externas, supervisão contínua e definição de metas verificáveis de redução de disparidades. O dinheiro deixa de ser a finalidade e passa a ser apenas um instrumento subordinado à transformação institucional. A reparação se mede por mudança e não por quantia.

O modelo brasileiro segue caminho oposto. Repasses financeiros se multiplicam, mas instituições permanecem iguais. Fundos são criados, mas sua governança é opaca. TACs são assinados, mas seus efeitos práticos são inexistentes. Protocolos de suspeição racializada continuam vigentes; fluxos operacionais permanecem os mesmos; padrões de atendimento não são revisados; vieses automáticos seguem atuantes. O sistema jurídico produz decisões moralizadas, porém estruturalmente estéreis. A consequência é clara: o racismo institucional continua operando sob as mesmas lógicas, e o país continua respondendo aos efeitos sem tocar nas causas.

O debate necessário, portanto, não é sobre extinguir ou reduzir ações civis públicas, mas sobre reorganizá-las para que cumpram sua finalidade constitucional. A funcionalidade da tutela coletiva — e não sua retórica — deve ser o norte. Esse redesenho exige enfrentar os vieses institucionais e impor às organizações deveres contínuos de revisão, mensuração, transparência e accountability. Exige também que os fundos de reparação sejam submetidos a controle público efetivo, com auditorias independentes, relatórios periódicos e indicadores rigorosos de impacto. Sem isso, qualquer condenação será apenas um número, não um mecanismo de transformação.

Enquanto o sistema continuar administrando a dor sem corrigir o mecanismo que a produz, o racismo institucional se perpetuará sob a aparência de combate. O país vive uma indústria de soluções inócuas, que converte sofrimento em valor, mas não converte valores em mudança. O direito brasileiro, se deseja ser instrumento de justiça, precisa sair da moralização e entrar na funcionalidade. Precisa parar de diagnosticar e começar a transformar. E isso somente ocorrerá quando as ações coletivas forem capazes de alcançar, medir e reconfigurar o ponto exato onde o racismo nasce: na estrutura invisível dos vieses institucionais que moldam o funcionamento diário das organizações

 

Fonte: Por Marcio Machado Valêncio, na Conjur

 

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