A
indústria do dano moral coletivo racial e a ausência de mudanças institucionais
A
expressão “indústria do dano moral coletivo racial” não possui estatuto
dogmático nem encontra suporte formal na tradição jurídica brasileira. Trata-se
de um jargão crítico, empregado para descrever um fenômeno que se tornou
visível para operadores do direito, magistrados, empresas e, sobretudo, para as
próprias vítimas: a proliferação de ações civis públicas que têm se mostrado
incapazes de produzir qualquer transformação institucional efetiva,
convertendo-se, na prática, em um ritual de compensação financeira repetitivo e
desconectado da realidade que gera o dano. O termo funciona como diagnóstico,
não como categoria. E o diagnóstico revela a falha estrutural mais profunda do
sistema: a incapacidade do direito brasileiro de enfrentar os vínculos entre racismo
e vieses institucionais, precisamente a camada invisível que dá origem aos
episódios que depois se tentará reparar judicialmente.
Os
casos de discriminação racial que chegam ao Judiciário raramente são fruto de
atos voluntários, conscientes ou deliberados. Em sua esmagadora maioria,
resultam de percepções automáticas, julgamentos intuitivos, hábitos
operacionais não examinados, lógicas internas de suspeição, padrões de
vigilância seletiva e rotinas decisórias que respondem de forma diferenciada a
indivíduos com determinados marcadores raciais. O racismo institucional
brasileiro é um fenômeno de viés, não de intenção. Opera nas margens da
consciência, reproduz-se nos procedimentos, infiltra-se no cotidiano
administrativo e se manifesta nos resultados, não nas declarações. Ele não está
nos discursos explícitos das instituições, mas nas engrenagens silenciosas que
condicionam sua atuação.
Apesar
disso, a arquitetura da tutela coletiva brasileira continua orientada para um
paradigma de responsabilização volitiva, centrado em culpa, dolo, culpa grave
ou negligência manifesta. Nessa moldura, a discriminação racial é tratada como
colisão episódica entre indivíduos, enquanto a realidade demonstra que ela é
produzida por mecanismos internos e automatizados. A consequência dessa
dissonância é direta: o sistema jurídico intervém no episódio final, mas não na
estrutura que o produz, e por isso a reincidência se torna regra e não exceção.
É esse
descompasso que explica a ineficácia das indenizações por dano moral coletivo.
Embora socialmente celebradas e muitas vezes numericamente expressivas, tais
condenações não enfrentam o problema real. A elas se somam Termos de
Ajustamento de Conduta que, em vez de incidirem sobre fluxos operacionais,
padrões de suspeição ou critérios de risco, limitam-se a compromissos
genéricos, campanhas de conscientização, treinamentos superficiais e
declarações institucionais sem lastro verificável. Não se exige revisão de
protocolos; não se demanda auditoria externa; não se produzem métricas de
redução de incidentes; não se estabelece supervisão continuada. O resultado é
inevitável: a instituição permanece operando exatamente como antes. E, se opera
como antes, repetirá os danos de antes.
Há
ainda um elemento que intensifica o problema e precisa ser nomeado com
precisão: a opacidade e a baixa accountability dos fundos de reparação formados
a partir das condenações por dano moral coletivo. Esses fundos têm movimentado
recursos relevantes, mas raramente apresentam governança clara, demonstrativos
públicos de destinação, auditorias independentes ou indicadores que permitam
aferir se a verba aplicada produziu qualquer impacto na redução de incidentes
discriminatórios. Não raro tornam-se caixas-pretas legitimadas pela moralidade
da causa, mas esvaziadas de funcionalidade. A ausência de transparência
converte o mecanismo de reparação em instrumento retórico, e não em instrumento
de transformação. Assim, o dinheiro circula, mas o viés permanece. A estrutura
que produz o dano segue intacta e, portanto, segue produzindo novos casos.
A esse
quadro soma-se uma questão delicada, mas incontornável: a captura econômica da
litigância racial por determinadas entidades, que passaram a se financiar por
meio da proposição reiterada de ações coletivas. O sofrimento de indivíduos
concretos transforma-se em ativo financeiro institucional. A pauta racial, de
altíssima relevância social, é apropriada por incentivos econômicos, e a
energia que deveria ser direcionada à modificação das instituições converte-se
em fluxo de receita. Quando o centro da tutela coletiva se desloca da prevenção
para a arrecadação, perde-se o sentido constitucional da ação coletiva. A
pergunta deixa de ser “como a instituição deve ser reorganizada para evitar
novos danos?” e passa a ser “qual será o valor da condenação?”. A consequência
é conhecida: casos se repetem, ações se repetem, condenações se repetem,
repasses financeiros se repetem, e nada muda. A indústria, portanto, é de
vítimas e de ineficácia.
A
Constituição de 1988 não autoriza esse modelo. Os artigos 1º, III (dignidade da
pessoa humana), 3º, IV (promoção do bem sem discriminação) e 5º, XLI
(criminalização do racismo) exigem uma leitura funcional da tutela coletiva.
Tais dispositivos apontam para um modelo que identifica o racismo como falha
institucional, impõe deveres positivos de prevenção e determina que a resposta
jurídica atue sobre a realidade que produz o problema, não apenas sobre seus
efeitos periféricos. A tutela coletiva, para ser constitucional, precisa
produzir redução de incidência, e não somente compensações financeiras.
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Disparate impact
É nesse
ponto que o direito comparado oferece lições valiosas. O sistema
norte-americano, especialmente a partir da decisão Griggs v. Duke Power Co.
(1971)¹, formulou a doutrina do disparate impact, reconhecendo que práticas
organizacionais aparentemente neutras podem produzir discriminação quando seus
efeitos recaem desproporcionalmente sobre grupos racialmente identificáveis,
mesmo sem intenção discriminatória. Essa virada deslocou o eixo da
responsabilidade: o foco passou a ser a estrutura institucional, e não a
intenção subjetiva. O Congresso consolidou essa orientação no Civil Rights Act
de 1991², que exige das instituições justificativas objetivas para práticas com
impacto desigual e a adoção de alternativas menos discriminatórias sempre que
disponíveis.
As
consequências dessa abordagem são profundas. O disparate impact não é apenas
uma teoria jurídica, é um método de reorganização institucional. Quando
identificada uma disparidade racial significativa, desencadeia-se um processo
de revisão estrutural. Adaptações de protocolos, mudanças em fluxos de decisão,
elaboração de relatórios públicos, implementação de auditorias externas,
supervisão contínua e definição de metas verificáveis de redução de
disparidades. O dinheiro deixa de ser a finalidade e passa a ser apenas um
instrumento subordinado à transformação institucional. A reparação se mede por
mudança e não por quantia.
O
modelo brasileiro segue caminho oposto. Repasses financeiros se multiplicam,
mas instituições permanecem iguais. Fundos são criados, mas sua governança é
opaca. TACs são assinados, mas seus efeitos práticos são inexistentes.
Protocolos de suspeição racializada continuam vigentes; fluxos operacionais
permanecem os mesmos; padrões de atendimento não são revisados; vieses
automáticos seguem atuantes. O sistema jurídico produz decisões moralizadas,
porém estruturalmente estéreis. A consequência é clara: o racismo institucional
continua operando sob as mesmas lógicas, e o país continua respondendo aos
efeitos sem tocar nas causas.
O
debate necessário, portanto, não é sobre extinguir ou reduzir ações civis
públicas, mas sobre reorganizá-las para que cumpram sua finalidade
constitucional. A funcionalidade da tutela coletiva — e não sua retórica — deve
ser o norte. Esse redesenho exige enfrentar os vieses institucionais e impor às
organizações deveres contínuos de revisão, mensuração, transparência e
accountability. Exige também que os fundos de reparação sejam submetidos a
controle público efetivo, com auditorias independentes, relatórios periódicos e
indicadores rigorosos de impacto. Sem isso, qualquer condenação será apenas um
número, não um mecanismo de transformação.
Enquanto
o sistema continuar administrando a dor sem corrigir o mecanismo que a produz,
o racismo institucional se perpetuará sob a aparência de combate. O país vive
uma indústria de soluções inócuas, que converte sofrimento em valor, mas não
converte valores em mudança. O direito brasileiro, se deseja ser instrumento de
justiça, precisa sair da moralização e entrar na funcionalidade. Precisa parar
de diagnosticar e começar a transformar. E isso somente ocorrerá quando as
ações coletivas forem capazes de alcançar, medir e reconfigurar o ponto exato
onde o racismo nasce: na estrutura invisível dos vieses institucionais que
moldam o funcionamento diário das organizações
Fonte:
Por Marcio Machado Valêncio, na Conjur

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