Crime
organizado ameaça serviços essenciais para a população
Facções
ampliam exploração de infraestrutura, como redes elétrica e de internet,
extorquindo moradores e até impedindo empresas regulares de atuar em certas
regiões...
A
expansão do crime organizado em mercados ilegais é bastante documentada, mas,
com maiores domínios territoriais, os grupos passaram a explorar mais serviços
essenciais. Energia e internet estão na mira dos criminosos, que obrigam
moradores a pagar pela sua oferta e até impedem que empresas regulares atuem
nestas regiões. Com uma rotina que depende cada vez mais destas estruturas, o
poder nas mãos do crime representa uma série de riscos.
"Os
grupos aproveitam a ausência de fiscalização e controle, assim ampliam a
presença em negócios muito lucrativos”, afirma o pesquisador Daniel Hirata,
coordenador do Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos da Universidade Federal
Fluminense (UFF).
"Em
uma comunidade, quantas pessoas consumirão drogas? E quantas usarão internet?”,
compara, em uma lógica que explica a atratividade destes serviços cada vez mais
onipresentes. Em 2024, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)
apontou que 74,9 milhões de domicílios no país possuíam acesso à internet, o
que representa 93,6% do total.
"Quem
começou a operar estes serviços de formas mais sistemática foram as milícias.
Recentemente, algumas facções tem entrado com relevância, especialmente no ramo
de internet”, pontua Hirata.
Muitas
vezes, os grupos não começam propriamente oferecendo o serviço, mas cobrando
por proteção para que as empresas do setor operem em regiões sob seu domínio.
Com o passar do tempo, certas facções acabaram preferindo tomar conta do
negócio por completo, se apropriando das estruturas formais. "Há uma
tendência monopolística. Os moradores destes lugares normalmente não têm opções
de buscar outras empresas”, explica Hirata.
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CVNet: a "internet do Comando Vermelho"
A
Secretaria de Segurança Pública do Rio de Janeiro aponta que atualmente mais de
80% dos provedores de internet em comunidades da cidade estão ligados a
facções. O cenário levou à consolidação do que ficou conhecido como
"CVnet”, denominação para os serviços de conexão oferecidos pelo Comando
Vermelho (CV).
A
estratégia foi a mesma utilizada pelo grupo no Ceará, estado que em março deste
ano enfrentou consequências graves da expansão criminosa na infraestrutura.
Provedoras oficiais tiveram sua estrutura atacada, incluindo rompimento de fios
e até carros de prestadores de serviços queimados.
Algumas
empresas, como a GPX Telecom, chegaram a fechar permanentemente por não
conseguirem lidar com os danos. Outras, caso da Brisanet, passaram a operar com
esquemas reforçados de segurança. Em Caridade, no interior do Ceará, 90% dos
consumidores ficaram dias sem acesso à internet.
"As
facções foram encontrando oportunidades em uma atividade legal que foi se
popularizando. Para muitas pessoas, foi interessante”, comenta Luiz Fábio
Paiva. Professor da Universidade Federal do Ceará e pesquisador do Laboratório
de Estudos da Violência (LEV).
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Gatonet
Ele
lembra que a oferta ilegal de internet barata e diversos serviços de streaming,
conhecidos popularmente como "gatonet”, foram bem vistas, chegando a
atrair até mesmo bairros de classe média de Fortaleza. Em alguns casos, o
serviço mensal de acesso à internet custava apenas R$ 20. "Houve a ideia
de que era legítimo este tipo de serviço, o que ajudou para que se
disseminasse”, pontua.
No
entanto, ele ressalta que a atuação contribuiu para o avanço da exploração
territorial em outros ramos no Ceará. Atualmente, a extorsão de comerciantes
vem sendo uma fonte de renda comum das facções no estado, e casos de moradores
expulsos de suas casas para que os criminosos aluguem as habitações por conta
própria vem sendo recorrentes.
Além
disso, a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) aponta que, como em
qualquer área da economia, a atuação criminosa no setor de telecomunicações
pode gerar riscos à integridade das redes, de equipamentos e de funcionários
das prestadoras. Desta forma, empresas podem evitar investimentos em
determinadas áreas, o que pode comprometer a expansão da conectividade e
prejudicar a população local.
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Custo para todos
No Rio
de Janeiro, a situação é emblemática no caso da eletricidade. Segundo a
prestadora de serviços de energia no estado, a Light, a cada 100 clientes
regulares atendidos, 40 furtam o serviço. Em certas localidades, a estimativa é
de mais de 80% da população estejam consumindo energia de forma irregular.
O
prejuízo anual para a Light é de aproximadamente R$ 1,3 bilhão. "Como o
setor elétrico funciona em modelo regulado, parte dessas perdas é absorvida
pela distribuidora e parte entra nos mecanismos tarifários definidos pela
Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel). Assim, todos os consumidores
acabam afetados de alguma forma”, afirma a companhia.
O
diretor-geral da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), Sandoval
Feitosa, avalia que, no Rio de Janeiro, as distribuidoras de energia têm um
ônus muito alto, pois "é muito difícil prestar o serviço em uma região
conflagrada pelo crime organizado”.
As
ligações clandestinas sobrecarregam a rede elétrica e, em consequência,
superaquecem os transformadores, o que aumenta o risco de incêndios, acidentes
e de falta de energia, afetando toda a comunidade. Entre dezembro de 2024 e
abril de 2025, 1.320 transformadores queimaram por causa da sobrecarga gerada
pelo furto, impactando cerca de 400 mil clientes no Rio de Janeiro, segundo a
Light.
Hirata
lembra que os chamados "gatos” são comuns em uma série de processos de
urbanização pelo mundo, mas a presença do crime dá outro contexto para o caso
fluminense. "O que é mais grave é quando os criminosos estão envolvidos, o
que acaba aprofundando o problema, especialmente em lugares de difícil acesso e
quando operadores são ameaçados”, afirma.
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Luz no fim do túnel?
No caso
da Anatel, há uma busca por maior regularização dos pequenos prestadores de
serviços de internet, algo que disparou no Brasil nos últimos anos. "A
exigência de outorga passou a ser um eixo central do Plano de Ação”, aponta.
Uma resolução da associação neste ano determinou a suspensão de uma regra de
dispensa de outorga – ou seja, da licença da Anatel – , impondo às empresas que
atuavam sob esse regime a obrigação de obter autorização formal.
O
regime sob o qual vários pequenos operadores vinham sendo dispensados de
outorga é visto como uma facilidade para a atuação de grupos ilegais neste
setor. A expectativa é de que
centenas
de pequenos provedores sejam obrigados a se regularizar, combatendo aqueles que
operem de forma ilegal.
Dados
da Anatel mostram que em todo o estado do Rio de Janeiro constam 1.734 empresas
prestadoras de serviços de internet, sendo 822 com outorga e 912 com dispensa
de outorga. Somente na capital fluminense, há 638 prestadoras de serviço de
internet, 305 com outorga e 333 com dispensa de outorga.
Além
disso, a Anatel destaca medidas complementares, como a notificação de
provedores de infraestrutura para interromper fornecimento a empresas não
autorizadas e a exigência de atualização cadastral e envio de informações
setoriais.
Já a
Light aponta para o programa Light Controle, cuja ideia é criar um modelo de
cobrança mais previsível e acessível, que ajude as famílias a manterem suas
contas em dia, calculadas de acordo com a capacidade de pagamento de cada uma.
Na
visão de Paiva, é preciso pensar o crime por todas "as dimensões que o
levem a acontecer, incluindo a demanda social”. Neste caso, a busca pelos
serviços oferecidos de forma irregular pode prosseguir, fazendo com que eles
voltem a ser ofertados apesar da repressão. "Os agentes voltam assim que
podem, são pessoas com conhecimento. É necessário tomar ações para a
dissuasão”, conclui.
• Senado aprova PL Antifacção e dobra
penas para líderes do crime organizado
O
Senado Federal aprovou, por unanimidade (64 a 0), nesta quarta-feira (10), o
novo marco legal de enfrentamento ao crime organizado no país. Conhecido como
“PL Antifacção“, o projeto endurece penas, amplia instrumentos de investigação,
cria fontes de financiamento e reforça o cerco às facções criminosas e milícias
privadas que dominam territórios. Como houve mudanças significativas, o texto
retorna à Câmara dos Deputados.
O
relator, senador Alessandro Vieira (MDB-SE), reformulou a proposta aprovada
pelos deputados. Em vez de criar uma lei paralela, ele optou por atualizar a
Lei das Organizações Criminosas (Lei nº 12.850/2013), uma escolha que, segundo
ele, evita insegurança jurídica e a possibilidade de “beneficiar condenados”.
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Endurecimento das penas
O
coração do projeto é o agravamento das punições, especialmente contra chefes de
facções e milícias. O texto define como facção criminosa qualquer organização
que dispute ou controle territórios ou atue em mais de um estado.
As
penas passam a ser:
• 15 a 30 anos para quem integrar ou
financiar facções e milícias;
• Até 60 anos, com a pena dobrada, para
quem ocupar posição de comando;
• Em casos agravados, líderes podem chegar
a 120 anos de condenação, superando os 80 anos aprovados pela Câmara;
• 20 a 40 anos para homicídios cometidos
por integrantes de facções.
Além
disso, chefes de organizações criminosas terão cumprimento obrigatório de pena
em presídios federais de segurança máxima.
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Progressão de regime mais rígida
O
Senado também elevou o tempo obrigatório de prisão antes da progressão de
regime:
• Condenados por crimes hediondos: mínimo
de 70% da pena em regime fechado.
• Integrantes de facções ou milícias: 75%
a 85%, dependendo do caso.
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Financiamento: criação da Cide-Bets
Entre
as mudanças mais estruturais está a criação da Cide-Bets, uma Contribuição de
Intervenção no Domínio Econômico aplicada sobre plataformas de apostas online.
• Alíquota de 15% sobre transferências de
pessoas físicas.
• Vigência temporária, até a plena
implantação do Imposto Seletivo da reforma tributária.
• Arrecadação estimada: R$ 30 bilhões
anuais destinados ao Fundo Nacional de Segurança Pública.
• 60% dos recursos devem ir diretamente
aos fundos estaduais de segurança, em subcontas específicas para o combate ao
crime organizado.
O texto
ainda prevê responsabilização solidária de empresas de pagamento e instituições
financeiras que facilitarem a operação de bets clandestinas. Para o relator,
“uma bet ilegal só funciona porque alguém patrocina sua publicidade e porque
alguma instituição permite o pagamento”.
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Novos instrumentos de investigação
O
projeto moderniza mecanismos de investigação e vigilância:
• Uso de escutas ambientais e softwares
especiais de monitoramento, mediante autorização judicial;
• Acesso acelerado a dados e
interceptações telefônicas em situações de risco à vida;
• Criação de um cadastro nacional de
integrantes e empresas ligadas a organizações criminosas;
• Monitoramento de conversas e visitas a
presos vinculados a facções, preservando a inviolabilidade entre advogado e
cliente;
• Fim da visita íntima para condenados
pela Lei de Organizações Criminosas.
A
proposta também restabelece a possibilidade de delatores atuarem como
infiltrados, item original do Executivo.
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Debate sobre terrorismo: Senado rejeita equiparação
Durante
a votação, senadores da oposição, como Eduardo Girão (Novo-CE) e Carlos
Portinho (PL-RJ), tentaram classificar facções e milícias como organizações
terroristas. A emenda foi rejeitada.
Alessandro
Vieira justificou: “Por mais que a sensação de terror seja uma consequência
natural da ação das organizações criminosas, isso não as faz organizações
terroristas. Não há nenhum benefício para o Brasil em reconhecer o Comando
Vermelho, o PCC ou qualquer outra facção como terrorista.”
O
relator ainda removeu o crime de “domínio social estruturado”, incluído pela
Câmara, por considerá-lo impreciso.
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Responsabilização de agentes e proteção de vítimas
O texto
endurece o cerco contra agentes públicos que colaborarem com facções:
• Servidores que atuarem em benefício dos
grupos criminosos poderão perder o cargo imediatamente;
• Condenados por integrar, apoiar ou
liderar facções ficam inelegíveis por oito anos, mesmo antes do trânsito em
julgado;
• Homicídios ligados ao crime organizado
permanecem sob competência do Tribunal do Júri, com medidas especiais de
proteção a jurados e testemunhas.
Em seu
discurso, Vieira fez referência ao grupo mais vulnerável no debate:
“O
lobby que não teve acesso a esta Casa, sob o ponto de vista estruturado, foi o
das vítimas, foi o da população que fica diuturnamente à mercê do domínio de
facções e milícias. É em homenagem a essas, que não podem aqui acionar lobbies,
que a gente faz o trabalho que faz aqui.”
Com a
aprovação no Senado, o projeto volta agora para a Câmara, que decidirá se
mantém ou modifica as mudanças introduzidas pelos senadores.
Fonte:
DW Brasil

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