Feminicídios:
o desamor que virou arma
A cada
nova notícia de misoginia destas semanas, a brutalidade se torna mais explícita
e o espanto, mais silencioso. É nesse cenário que se impõe a necessidade de
enfrentar a fragmentação dos afetos e compreender o lugar que o ressentimento
masculino ocupa hoje nas formas de envolvimento emocional e sexual com
mulheres. A precarização dos vínculos, somada à politização da feminilidade,
intensifica a corrosão entre subculturas violentas de masculinidade, nas quais
gênero, desejo e status de poder se convertem em arenas de tensão permanente.
Antes
de tudo, convém registrar que não se trata de enxergar esse tema com falsos
moralismos. Ao contrário: o culto aos moralismos e, sobretudo, a exploração
política da masculinidade, engessa o debate justamente por estar no cerne de um
problema mal discutido. Não é possível compreender a escalada da violência
contra as mulheres sem observar o ambiente ideológico e os fundamentos que
sustentam a órbita dessa dominância masculina, frequentemente reforçados por
discursos identitários de ódio às minorias e alimentados pelo neoliberalismo.
Nesse sentido, é urgente pensar como o campo afetivo e relacional vai sendo
esvaziado à medida que conquistas sociais importantes retrocedem.
Se, por
um lado, mulheres da geração Z são menos conservadoras e mais conscientes de
políticas feministas, homens da mesma faixa — entre 18 e 30 anos — se mostram
expressivamente mais conservadores. E essa dicotomia não se restringe ao
Brasil. A trend no TikTok das “esposas-troféu” e a celebração da “energia
feminina” por certos influenciadores são indícios de uma tentativa discursiva
de docilizar a autenticidade das mulheres para que cedam a um modelo patriarcal
mais palatável.
A
fantasia em torno do “homem provedor” que assume responsabilidades financeiras
evidencia, na verdade, uma profunda frustração de gênero. O modelo do provedor
é uma antiga farsa burguesa: insuficiente para sustentar qualquer padrão de
realização social amparado no salário-mínimo. E é também uma fraude porque,
além de nada resolver, ainda cobra dívidas simbólicas: que contribuição,
afinal, se espera das mulheres que são troféus nessas equações?
A
precariedade atual compromete a formação de vínculos saudáveis e transforma em
concorrência espaços sociais tensionados pela autonomia feminina. Homens se
ausentam; mulheres rejeitam espaços afetivos contaminados por vínculos frágeis
e apegos inseguros. A indisponibilidade, associada a essas demandas
relacionais, funciona como um investimento psíquico enorme, e sua sustentação
aprofunda polarizações tóxicas.
Aceleramos
a intimidade sem compromisso, sem envolvimento real — e isso, paradoxalmente,
emociona mais. Impacta mais. É viciante. Só que o rebote vem: ao evitarmos o
encontro verdadeiro e priorizarmos relações breves, enfraquecemos também a
própria capacidade de nos relacionarmos. Surge então uma regressividade
relacional: voltamos a formas infantis de demanda, intensificando a disputa
sexual como tentativa de validar alguma sensação de independência. Nesse ponto,
a disputa torna-se pura afirmação subjetiva. Todos querem ser desejados, mas
quase ninguém quer estar ali de fato.
A
indisponibilidade, entretanto, não é neutra. Ela é produto de um recalque que
sabota o desejo, empobrece o pulsar relacional e desmobiliza a resistência
afetiva — aquela força interna capaz de sustentar vínculos, elaborar conflitos
e acolher a vulnerabilidade do outro. As mulheres, por sua vez, continuam
exercendo o trabalho psíquico de sempre: regulam necessidades emocionais do
parceiro, administram altos e baixos de relações disfuncionais e recebem pouco
em troca — uma troca moldada pelas expectativas que ainda recaem sobre elas ao
se relacionarem com homens que replicam o conservadorismo herdado dos pais.
Quando
o tempo afetivo desaparece porque compete com o tempo do trabalho, a vida
social entra em colapso: não há oferta simbólica de conexão, apenas demandas
insaciáveis que comprometem a saúde mental. Nesse campo enfraquecido, torna-se
fácil confundir ou negligenciar expectativas femininas legítimas com o ideal
masculinista do “provedor-reformado”, encarnado na persona do “calvo do
Campari”. Esses e outros sujeitos naturalizam e exploram a violência como uma
espécie de criptomoeda sexual — seja na repetição de microviolências
cotidianas, seja no ato sexual violento (ou fora dele), entendido como
tentativa de restaurar uma ordem imaginária de dominância.
Um
modelo baseado na suposição objetificada de preferências femininas, e não na
intenção de entregar satisfação às parceiras — sustenta boa parte dessas
dinâmicas. Inúmeros conteúdos sobre “conquista” são monetizados para homens,
ensinando abordagens de humilhação e rebaixamento para caber no desejo
masculino sob demanda. A causa da rejeição nunca é tratada como incompetência;
ao contrário, culpa-se o caráter das mulheres que negam o reconhecimento
esperado. O que não conseguem ver ou despertar no outro transforma-se em ódio e
violência. Assim, o consentimento feminino permanece sem expressão e
converte-se em ressentimento masculino destrutivo quando confrontado por elas.
Tudo
isso se articula como propaganda política extremista que tenta recuperar
valores patriarcais rejeitados pelas novas gerações: liderança autoritária,
tutela moral e controle da subjetividade feminina. No cenário político da
própria esquerda, observa-se uma heteronormatividade silenciosa que persiste
nos espaços de representatividade — um impasse que há anos tentamos administrar
também dentro de partidos e pautas progressistas.
Essa
conjuntura retoma a questão central: o que alimenta a exasperação do ódio e a
violação do consentimento como parte da propaganda política da extrema direita?
Em muitos dos casos noticiados nas últimas semanas, chama atenção que o perfil
dos agressores seja cada vez mais composto por homens jovens — e isso não é
coincidência.
A
violência, portanto, não é apenas cultural ou simbólica: é econômica e
estrutural. Produzir desigualdade de gênero é assegurar o próprio funcionamento
interno do capitalismo. É impedir que conquistas sociais importantes se
convertam em novas possibilidades de desejo, de vida e de liberdade — e na
imposição de limites à exploração sobre corpos de mulheres agredidos,
violentados e mutilados.
A
extrema direita sabe disso e aposta na sustentação de crises, produzindo
refluxos antidemocráticos e modelos contraditórios de representatividade
feminina, como se evidencia na candidatura de Michele Bolsonaro. Apesar das
exceções, a disposição crítica das mulheres à democracia é uma aliança poderosa
— e ameaça o domínio conservador daqueles que historicamente administram
contradições à custa delas.
O
conservadorismo, por sua vez, oferece não apenas a promessa da lei, mas da
restauração de valores: busca reconciliar o âmbito doméstico com papéis
tradicionais de gênero e raça, sob a lógica da desigualdade. Nesse cenário, a
violência simbólica e relacional deixa de ser apenas sintoma: torna-se
ferramenta política autodirigida. Seus efeitos se infiltram também na
intimidade, onde o distanciamento afetivo reaparece como mecanismo de
autoproteção diante de vínculos esvaziados. É o hiper individualismo neoliberal
que apodrece fronteiras entre os gêneros, reativa papéis opostos e fragiliza
conquistas históricas em direção à igualdade de gênero.
O
desafio, portanto, é reconhecer que a disputa pelo desejo, pelo corpo e pela
afetividade não está separada da disputa pelo poder. Resistir a esse ciclo de
regressão exige reconstituir-se dos traumas e dos valores tradicionais — “Deus,
Pátria e Família” — bem como dos privilégios que limitam mulheres; não como
exceção estética ou moral, mas como horizonte político coletivo de dignidade
real, onde não nos matem.
Fonte:
Por Tainá Machado Vargas, em Outras Palavras

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