O
estudo global que contesta queda da desigualdade no Brasil celebrada pelo
governo Lula
O
Brasil está ficando ainda mais desigual ou, ao contrário, a distância
entre ricos e pobres vem diminuindo?
Dois
estudos recentes mostraram cenários opostos para essa questão, esquentando o
debate entre economistas.
Um novo
relatório sobre desigualdade global divulgado nesta quarta-feira (10/12), o
World Inequality Report 2026, afirma que a renda concentrada no bolso dos mais
ricos aumentou nos últimos anos no Brasil, tornando o país ligeiramente mais
desigual entre 2014 e 2024.
Ainda
segundo esse relatório, produzido por um amplo grupo de economistas, entre eles
o francês Thomas Piketty, a desigualdade
brasileira "permanece entre as mais altas do mundo".
A
conclusão entra em choque com uma nota técnica recém-divulgada pelo
Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), que apontou que a
desigualdade brasileira atingiu o menor nível em 30 anos em 2024.
Esse
estudo mostrou também um importante aumento na renda dos mais pobres e a
consequente redução da pobreza ao menor patamar em três décadas.
A
publicação do Ipea foi celebrada por autoridades do governo de Luiz Inácio Lula
da Silva (PT), que chegou a receber no Palácio do Planalto a presidente do
instituto, Luciana Servo, acompanhada dos autores da nota técnica: os
pesquisadores Pedro Herculano Souza e Marcos Dantas Hecksher.
Houve,
porém, controvérsia entre economistas. Os dados sobre a redução da pobreza são
considerados corretos, mas o anúncio de que a desigualdade estaria em uma baixa
histórica é alvo de questionamentos.
Para
estudiosos do tema ouvidos pela BBC News Brasil, a metodologia usada pelo Ipea
não mede com precisão a renda dos mais ricos — por isso, não seria a mais
apropriada para calcular desigualdade.
Os
próprios autores do estudo foram transparentes sobre isso e apontaram essas
limitações ao publicarem os resultados. Ainda assim, a decisão de usar os
dados, apesar desses problemas, gerou incompreensão entre os especialistas
entrevistados.
Inclusive
porque um dos autores, Pedro Herculano Souza, é um sociólogo premiado por seus
estudos sobre desigualdade e já demonstrou, em pesquisas passadas com método
diferente da nova do Ipea, números que contrariam a conclusão de que a
concentração de renda estaria em queda no país.
Segundo
essas pesquisas anteriores, a desigualdade ficou estável entre 2005 e 2014,
período que, no novo estudo do Ipea, se deu queda expressiva da concentração de
renda.
O
estudo foi celebrado no Palácio do Planalto. A informação de que a desigualdade
estaria no menor patamar em 30 anos passou a ser destacada por Lula e ministros
do governo, como Gleisi Hoffmann, chefe da Secretaria de Relações
Institucionais.
"Em
julho, a FAO [Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura]
confirmou que o Brasil saiu mais uma vez do mapa da fome. Na última semana, o
IPEA divulgou que atingimos o menor nível de desigualdade da série histórica. E
hoje, novos dados do IBGE mostram que mais de 8 milhões de pessoas saíram da
pobreza", postou Lula na rede social X, no dia 3 de dezembro.
"Resultados
que se complementam, e mostram que o Brasil vive uma nova realidade, com mais
oportunidades, melhora da renda e redução da desigualdade. E que apontam a
direção correta de se governar: do lado do povo brasileiro", continuou.
Apesar
das controvérsias sobre os rumos da alta desigualdade brasileira, especialistas
ouvidos pela reportagem reconhecem que o governo Lula tem adotado medidas para
enfrentar o problema.
Entre
elas, destacam a aprovação pelo Congresso da reforma do Imposto de Renda proposta pelo
presidente, que vai, de um lado, isentar do IR todos que ganham até R$ 5 mil e,
de outro, criar um novo imposto mínimo de até 10% para os que ganham a partir
de R$ 50 mil por mês.
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A diferenças entre o estudo do Ipea e o relatório internacional
Controvérsias
metodológicas estão no cerne dos resultados tão divergentes dos dois novos
estudos sobre desigualdade.
Enquanto
a análise do Ipea é baseada apenas em dados de renda coletados em pesquisa pelo
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o World Inequality
Report 2026 usa esses dados associados a informações da Receita Federal, fonte
considerada mais precisa para medir os rendimentos dos mais ricos por ter como
base as declarações de Imposto de Renda feitas pela população.
Os
números do IBGE analisados vêm da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios
(Pnad). Nesse tipo de levantamento, pesquisadores visitam os domicílios de uma
amostra representativa da população e perguntam a renda das pessoas
entrevistadas.
Com
isso, estabelecem um panorama sobre como a renda se divide na população e como
esses ganhos estão evoluindo ao longo do tempo.
Entre
estudiosos da distribuição de renda, porém, é consenso que pesquisas
domiciliares tendem a subestimar a renda das pessoas.
Essa
subestimação não acontece apenas no topo da pirâmide, mas costuma ser mais
significativa entre os ricos, cuja maior parte da renda não vem de salários,
mas de investimentos e ganhos de capital (vendas de bens, por exemplo).
Os
pesquisadores do Ipea reconhecem o problema. À reportagem, Pedro Souza disse
que escolheu não usar dados da Receita Federal porque eles estavam menos
atualizados que os do IBGE quando iniciou seu estudo.
"Nossa
análise é inteiramente baseada em informações de pesquisas domiciliares, que
possuem limitações importantes. No mundo todo, esse tipo de pesquisa enfrenta
dificuldades para captar os rendimentos de trabalhadores por conta própria e
empregadores, transferências da assistência social e, principalmente,
rendimentos financeiros e do capital e outros rendimentos recebidos
irregularmente", diz a nota técnica do Ipea.
"No
Brasil, a concentração de renda no topo é muito maior nos dados tributários e
segue trajetória distinta da revelada pelas pesquisas domiciliares",
continua a publicação.
Segundo
o economista Guilherme Klein, professor da Universidade de Leeds (Reino Unido),
a subestimação da renda em levantamentos como a Pnad ocorre tanto porque os
mais ricos tendem a informar nessas pesquisas rendimentos menores do que de
fato possuem — seja intencionalmente, seja por não terem claro quais são seus
ganhos — como pela dificuldade de acessar essas residências para entrevistar
esse grupo, que muitas vezes vivem em domicílios mais protegidos.
Por
isso, Klein considera "um problema" o estudo do Ipea trazer
conclusões sobre desigualdade apenas baseado nos números da Pnad.
"Quando
a gente fala de desigualdade, é fundamental a gente olhar para o topo, para o
1% mais rico, para o 0,1% mais rico, e a gente só consegue olhar para isso
olhando os dados da Receita Federal", defende.
"Quando
você combina os dados da Pnad com os dados de Imposto de Renda, você tem uma
visão melhor, mais consistente da desigualdade. Então, eu acho de fato que é um
problema você não fazer isso e falar sobre desigualdade", continuou Klein,
que é também pesquisador associado do Centro de Pesquisa em Macroeconomia das
Desigualdades da Universidade de São Paulo (Made/USP).
Segundo
os números da Pnad analisados pelo Ipea, a renda média mensal por pessoa
cresceu quase 70% no Brasil entre 1995 e 2024, passando de R$ 1.191, para R$
2.015.
Com
isso, a pobreza extrema caiu consideravelmente. Em 1995, um quarto da população
estava nesse grupo. Trinta anos depois, a taxa caiu de 25% para 5%.
A
melhora desses indicadores, aponta o Ipea, é reflexo da expansão de programas
de transferência de renda, como o Bolsa Família, e do aumento da oferta de
emprego.
Já o
coeficiente de Gini (indicador que mede a desigualdade e varia de 0 a 100,
sendo 100 a desigualdade máxima) recuou quase 18%, de 61,5 para 50,4, quando se
analisam os dados da Pnad. É esse último dado que gera controvérsias.
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O que diz o World Inequality Report?
O World
Inequality Report 2026 traz um amplo apanhado da desigualdade no mundo,
mostrando a persistência da forte concentração de renda no planeta.
O
relatório foi produzido pelo World Inequality Lab, um laboratório internacional
de estudo da desigualdade, que tem o francês Thomas Piketty como um de seus
diretores.
Piketty
se projetou globalmente após a publicação do livro O Capital no Século XXI
(2013), em que analisou historicamente a concentração de renda e riqueza em
diferentes países.
No caso
do Brasil, os dados analisados no novo relatório indicam que a renda
concentrada pelos 10% mais ricos tem oscilado nos últimos anos, com tendência
de alta.
O
aumento mais significativo ocorreu durante a pandemia de coronavírus
(2020/2021), momento em que grupos de maior renda conseguiram se proteger da
turbulência econômica, enquanto os mais pobres foram mais prejudicados pela
interrupção ou redução de diversas atividades.
Segundo
esses dados, a fatia da renda nacional detida pelos 10% mais ricos subiu de
57,9% em 2014 para 59,9% em 2021. Depois disso, o percentual recuou para 59,1%
em 2024, mas continuou acima do observado uma década antes.
No
sentido inverso, a fatia da renda detida pelos 50% mais pobres caiu de 10,7% em
2014 para 8,2% em 2021, apresentando, depois, recuperação parcial e chegando a
9,3% em 2024.
Para
medir a evolução da desigualdade, o relatório usa um indicador obtido ao
dividir a fatia da renda dos 10% mais ricos pela fatia da renda dos 50% mais
pobres.
Esse
índice subiu de 53,7 para 63,5 entre 2014 e 2024, evidenciando o aumento da
desigualdade. O ápice ocorreu em 2021, quando chegou a 73.
A BBC
News Brasil questionou os economistas do World Inequality Lab, responsáveis
pelo relatório, sobre a metodologia utilizada e as divergências em relação ao
estudo do Ipea.
Na
resposta enviada por meio da assessoria de imprensa, eles afirmam que
estatísticas oficiais sobre desigualdade na América Latina, baseadas
exclusivamente em pesquisas domiciliares, capturam apenas parte da renda
nacional e subestimam a renda do capital (valores obtidos com investimentos ou
vendas de propriedades, por exemplo).
"Isso
cria uma percepção equivocada de sociedades que parecem ser mais pobres e menos
desiguais. No World Inequality Lab, estamos trabalhando para corrigir esse
viés", disseram ainda.
"Nossas
estimativas são construídas utilizando informações de pesquisas domiciliares,
mas também de outras fontes das autoridades fiscais e das contas nacionais de
cada país. Mesmo com premissas conservadoras, a desigualdade aumenta
significativamente", continuaram.
A
resposta indica que os números brasileiros analisados no relatório juntam dados
do IBGE, responsável pela Pnad e o cálculo das contas nacionais, e da Receita
Federal, autoridade fiscal brasileira.
Os
dados de declaração de Imposto de Renda, porém, só estão disponíveis até 2023
no Brasil, o que significa que os autores do World Inequality Report 2026
fizeram extrapolações matemáticas para estimar a distribuição de renda em 2024,
usando dados da Pnad e projeções próprias para a renda dos mais ricos.
A
reportagem pediu esclarecimentos sobre isso aos autores do estudo, por meio da
assessoria de imprensa, mas não obteve retorno até a publicação.
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Pesquisador do Ipea diz que optou por dados do IBGE por serem mais atualizados
A BBC
News Brasil conversou sobre as críticas ao estudo do Ipea com um dos autores, o
sociólogo Pedro Herculano de Souza, que é referência em estudos da
desigualdade.
Seu
doutorado nesse tema, realizado na Universidade de Brasília, ganhou o prêmio
Capes de melhor tese em Sociologia em 2017. Dois anos depois, ele recebeu o
prêmio Jabuti pelo livro "Uma História da Desigualdade: a Concentração de
Renda entre os Ricos no Brasil – 1926-2013".
Souza
foi um dos primeiros a incorporar dados do Imposto de Renda na análise da
desigualdade brasileira e, naquele momento, seus estudos chamaram atenção ao
revelar que a desigualdade não havia recuado entre os anos 2005 e 2014, como
apontavam estimativas anteriores, feitas apenas com base nas pesquisas
domiciliares do IBGE.
O
período foi marcado por forte crescimento econômico e redução da pobreza, mas a
queda da desigualdade não se confirmou porque houve também alta relevante da
renda dos mais ricos, captada pelas declarações de IR.
Até por
isso, sua decisão de publicar agora uma nota técnica do Ipea baseada apenas nos
dados de renda da Pnad causou surpresa entre estudiosos do tema.
À BBC
News Brasil, Souza disse que optou por não usar dados do Imposto de Renda em
sua análise porque não havia números atualizados.
Seu
objetivo, contou, era entender a evolução da renda após a pandemia, mas quando
iniciou o estudo, em março, só existiam dados tributários disponíveis até 2021.
Ao
longo do ano, a Receita atualizou esses números até 2023.
Já a
Pnad, pesquisa domiciliar do IBGE, é feita trimestralmente e tem atualização
mais frequente, o que permitiu analisar a dinâmica da renda até 2024.
"Para
mim, o processo científico normal é esse: você pega o melhor dado possível para
o objetivo que você quer", disse.
"No
nosso caso, tinha uma demanda clara de saber a evolução [da pobreza e da
desigualdade] de curto prazo, do pós-pandemia, porque acho que está pegando
muita gente de surpresa, não só na questão de pobreza e desigualdade, mas no
desempenho econômico, a própria manutenção do baixo desemprego e o
comportamento da inflação", disse ainda.
Embora
seja um defensor do uso de dados tributários para estudos sobre desigualdade,
Souza diz que os números da Receita Federal também devem ser vistos com
cautela, pois, às vezes, mudanças na taxação de investimentos geram ajustes nas
aplicações dos mais ricos que acabam gerando ganhos de renda extraordinários
que distorcem a série histórica.
Na sua
avaliação, o forte aumento da renda dos mais ricos captada nos dados do IR
durante a pandemia ainda precisa ser mais bem esclarecido.
Além do
aumento apontado pelo World Inequality Report, essa alta também foi
identificada no estudo "Concentração de renda no Brasil: o que os dados do
IRPF revelam?", publicado em agostos pelo Fiscal Data, de autoria dos
economistas Frederico Nascimento Dutra, Priscila Kaiser Monteiro e Sérgio Wulff
Gobetti.
"É
um aumento muito grande e num período muito curto. Eu não sei se está
contaminado por alguma coisa temporária da pandemia, se isso é um problema das
tabelas da Receita", disse Souza à reportagem.
Além
disso, o sociólogo defende que a Receita aperfeiçoe a divulgação dos dados
tributários, que hoje ainda é feita de forma limitada e com restrições. Por
exemplo, cita o pesquisador do Ipea, há dificuldade para identificar se a renda
declarada é de uma pessoa apenas ou se envolve cônjuge e dependentes.
Ainda
assim, ele diz que fará a análise dos dados tributários quando informações mais
atuais forem disponibilizadas pela Receita.
"Se,
em algum momento que a gente tiver os dados de IR mais recentes e conseguir
construir uma série longa, as conclusões [sobre os rumos da desigualdade]
mudem, a gente muda as conclusões, porque a gente vai atualizando as conclusões
conforme as melhores informações e melhores métodos disponíveis. Estou muito
curioso", ressaltou.
Fonte:
BBC News Brasil

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