domingo, 30 de julho de 2017

Quem dá o pão, muda o mundo. Por Marco Impagliazzo - Tradução de Luisa Rabolini

O pedido sobre o qual vamos refletir hoje é o mais natural e simples daqueles contidos na oração ensinada por Jesus aos seus discípulos. Bento XVI entendeu isso perfeitamente, ao afirmar: "A quarta indagação do Pai Nosso parece ser a mais 'humana' de todas. O Senhor, que orienta o nosso olhar sobre o que é essencial, sobre a 'única coisa necessária', também conhece as nossas necessidades terrenas e as reconhece. Ele, que aos seus discípulos diz: 'Não se preocupem com suas próprias vidas, quanto ao que comer' (Mt 6, 25), no entanto, nos convida a rezar pelo nosso alimento para transmitir, assim, a nossa preocupação a Deus".
Jesus viveu naquele mundo mediterrâneo em que o pão tem significado tanto na alimentação como na vida diária. É o alimento básico da dieta da maioria das populações do Mediterrâneo: muitas vezes a base sobre a qual são colocados condimentos e outros alimentos, o elemento essencial para as dietas mais pobres. O pão é tão presente nas Escrituras, portanto, porque era muito presente na cultura e na vida cotidiana. Certamente para o mundo judaico o pão era o alimento essencial. Para outras culturas não ocorre o mesmo. Devemos falar de arroz ou de outro alimento básico.
Não é assim na cultura e dieta europeias, de modo que o pão é muito importante. O pão é um alimento pobre, além de ser um alimento básico: sustento para a existência concreta de cada um.
[...] A globalização nos coloca rapidamente a par das notícias do mundo todo. Sabe-se muito e rápido sobre a fome em terras distantes, as dificuldades, as necessidades. A imagem da dor nos alcança. As sociedades europeias são capazes de pensar em termos de compartilhamento? Ou tudo o que é destino comum acaba sendo visto como um jugo? A quarta invocação do Pai Nosso restitui o sentido mínimo de fraternidade pelo qual ao menos o pão, ao menos o pão de hoje, deve ser compartilhado entre todos. Não os grandes investimentos, não as grandes estratégias. Não as visões do futuro, não os programas em longo prazo. Mas pelo menos o pão. O pão para hoje. Estamos em uma época em que o pão dos outros interessa de forma relativa, e inclusive mudar o mundo talvez nem esteja mais na moda. Mas o Evangelho ajuda a nos direcionarmos rumo a um novo caminho: o caminho do Mestre que não passou indiferente frente aos doentes, aos leprosos, aos famintos, às lagrimas das mulheres e à dor dos homens. Quem salva uma vida frágil muda o mundo. Quem dá o pão muda o mundo.
A globalização em curso não significa automaticamente uma assunção global de responsabilidade. Muito pelo contrário. Cabe a nós fazer uma escolha. Cabe a nós viver aquela globalização do coração que o Pai Nosso ensina. A Igreja, comunhão universal, tem a globalização em seus cromossomos. Mas é preciso ampliar a solidariedade. A distância não nos condena à indiferença. Esse é o ponto! Cinquenta anos atrás, em 9 de fevereiro de 1966, Paulo VI lançou um grande apelo para a fome na Índia, que havia visitado e que o deixara muito impressionado: "Lembramo-nos do milagre da multiplicação dos pães! Nós não temos de forma alguma a virtude prodigiosa de Cristo para fazer brotar pão das nossas mãos impotentes. Mas pensamos que o coração dos bons pode realizar este milagre (...) Ninguém pode dizer hoje: eu não sabia. E, em certo sentido, hoje ninguém pode dizer: eu não podia, eu não devia. A caridade estende a todos a sua mão. Ninguém se atreva a responder: eu não queria!”.
Quem aprendeu a dizer "Dá-nos hoje o nosso pão de cada dia", reflita sobre cada uma destas palavras de Paulo VI: "eu não podia", "eu não devia" ou "eu não queria”! Neste mundo global os cristãos podem ser um reservatório de humanidade e a profecia de um mundo onde o distante não é sem rosto e sem palavra. Partimos com uma tentação e um sonho. O sonho dos homens que viviam em uma terra com muitas pedras áridas e poucas espigas de trigo. A tentação do Adversário para Jesus: "Manda a esta pedra que se transforme em pão". Refletindo sobre o Pai Nosso, descobrimos outro sonho: o de Deus. O sonho de criar homens que compartilham o pão, todos os dias.
[...] Dar o pão de cada dia. Precisamos ampliar a solidariedade. É necessário manter viva a memória daqueles que sofrem, para mostrar caminhos viáveis aos nossos concidadãos para serem solidários, aumentar a cultura da solidariedade em nossos países. Penso naquela onda de interesse que passa através das adoções a distância, capazes de criar uma relação entre uma pessoa e outra. A onda de interesse pelos corredores humanitários com que foram resgatadas dos traficantes de homens as vidas de muitos sírios em fuga da guerra. Apesar da crise, não podemos esconder o fato de que existe na Itália uma generosidade, reveladora do desejo dos nossos cidadãos de ajudar os mais distantes. Devemos mostrar que existem vias que tornam possível a solidariedade: é possível ajudar a ter o pão, a palavra e a paz. As pessoas procuram amar. Quem procura amar, sem saber procura também aquele que é o amor.
A distância não nos condena à indiferença. O amor nos aproxima daqueles que sofrem distantes de nós. Os cristãos, neste mundo globalizado, são chamados a ter uma espiritualidade aberta ao universal, sem esquecer, é claro, o vizinho. E não há melhor universalidade que compartilhar a dor daquele que é pobre ou que está sofrendo. É o sentido do apelo lançado pelo Papa Paulo VI para a fome na Índia.
Os cristãos são aqueles que não dizem: eu não podia e eu não devia ou eu não queria! Neste mundo global, podem ser um reservatório de humanidade e da profecia de um mundo onde a distância não é sem rosto e sem palavra. É o mundo onde o distante se faz próximo, enquanto são lançadas muitas pontes, feitas da solidariedade do pão, da palavra, da paz, sobre o abismo de distância, de indiferença e de incompreensão que divide os povos. A indiferença amplia os abismos. A caridade estende a todos a sua mão e assim imperceptivelmente - como o movimento telúrico - aproxima os mundos.

Para concluir, gostaria de citar um grande filósofo russo, Nikolai A. Berdyaev, que em certo sentido resume com profundidade a questão abordada: "A do pão é para mim uma questão material; mas a questão do pão para o meu próximo, para os homens de todo o mundo, é uma questão espiritual e religiosa. A sociedade deve ser organizada de tal forma que possa haver pão para todos; só então a questão espiritual surgirá antes do homem em toda a sua profunda essência".

Lula e as elites nacionais. Por Fabio de Sá e Silva

Na cobertura da condenação criminal de Lula por Sergio Moro no caso do tríplex, várias vozes críticas da imprensa acabaram por proferir outras “sentenças” contra o ex-presidente.
A “acusação”, nestes casos, é de que Lula desenvolveu excessiva proximidade com as elites, “crime” (no sentido político) que, se nem sempre autoriza o justiçamento jurídico que caracterizou a sentença de Moro, ajuda a explicar o revés que se abateu sobre o ex-presidente e, talvez o mais importante, lança dúvidas sobre a sua capacidade de representar interesses progressistas nas eleições de 2018.
Em comentário ao programa Democracy Now!, o editor e co-fundador do The Intercept, Glenn Greenwald, questionou “qual a real ameaça de Lula aos oligarcas?”, ponderando que ele (Lula) “formou alianças com plutocratas e empresários do ramo do petróleo e construção civil”, “ganhou dinheiro fazendo negócios com figuras poderosas” e “não é o Lula de 1986, um sindicalista agitador e socialista ferrenho, ele se integrou à estrutura de poder”.
Em artigo para a The New Yorker, o jornalista e escritor Alex Cuadros registrou que, quando esteve no poder, Lula “decidiu não bater de frente com o sistema. Para viabilizar sua agenda progressista, ele decidiu trabalhar com o sistema, fazendo alianças com políticos da velha guarda que, mesmo tendo sido apoiadores da ditadura e do mercado, sempre colocaram a patronagem acima da ideologia”.
Na Folha de São Paulo, o filósofo Vladimir Safatle tratou da sentença de moro como “mais um resultado desta política conciliatória –a adaptação ao modelo de corrupção funcional do sistema brasileiro e, consequentemente, a fragilização completa de figuras um dia associadas, por setores majoritários da população, a alguma forma de esperança de modernização social”.
Essas preocupações são pertinentes e legítimas, mas perdem de vista importantes elementos do passado, do presente, e até mesmo do futuro da vida política de Lula, um político cuja história se confunde com a história do próprio Brasil pós-redemocratização.
Em primeiro lugar, a aproximação de Lula com as elites foi uma exigência da democracia no Brasil. Lula não é o “sindicalista agitador e socialista ferrenho” porque o eleitorado brasileiro lhe sinalizou, por mais de uma vez, que aquela persona jamais chegaria à presidência.
Depois da derrota em primeiro turno nas eleições de 1998, Lula aprendeu essa lição e se apresentou, em 2002, como candidato da conciliação, que não faria transformações drásticas na estrutura social e econômica do Brasil, mas que apenas ampliaria o espaço material e simbólico da população mais pobre. Na definição simples de Emilio Odebretch, “a coisa que ele mais quer é ver a população carente, sem prejuízo, essa é que é a visão mais correta dele, não é tirar de um para dar ao outro, não, [mas] como pode, aquele que pode, ajudar o outro a crescer”.
Com mote (“que todo brasileiro possa fazer três refeições por dia”) e slogan (“Brasil, um país de todos”) condizentes com o papel de “Lulinha paz e amor”, Lula não apenas foi reeleito em 2006, quando o PT já estava seriamente abalado por denúncias de corrupção, como também fez de Dilma Rousseff sua sucessora, em 2010.
Por outro lado, foi a pouca disposição de Dilma para compor (no Executivo, adotando perfil tecnocrático nos Ministérios; no Congresso, reduzindo o espaço do PMDB, e na economia, dobrando a aposta na busca por uma “nova matriz econômica”) que ensejou reação crescente das elites, culminando com a não aceitação dos resultados eleitorais em 2014 e com o golpe de 2016.
Contra isso, não bastou Dilma ter tentado trazer Lula para o governo em uma época na qual ele sequer havia sido denunciado criminalmente. Conversas foram veiculadas ilegal e repetidamente nos jornais, Dallagnol fez comício, Celso de Mello lançou brados de indignação, as camisas da CBF ocuparam as ruas, e uma incomum liminar de Gilmar Mendes lançou Dilma (e Lula) no fogo do impeachment, admitido no Congresso “por Deus”, “pela família” e até mesmo pela memória de ex-torturadores. Reações que não se repetiram depois, quando acusados e denunciados por crimes bem mais graves passaram a ocupar cadeiras dos Ministérios e do próprio Planalto.
Que as elites tenham prosperado com Lula e rejeitado Dilma não quer dizer que, em algum momento, tenham aceitado Lula e o reconhecido como um dos seus. Para Leo Pinheiro, Lula era o “Brahma”. Para Emilio Odebretch, que assim teria aprendido de Golbery, Lula era o “bon vivant”, que “gosta de uma cachacinha”. Para a força tarefa, já disseram jornalistas com acesso privilegiado a informações da Lava Jato, era o “nine”[nove, em inglês, em referência ao fato de o ex-presidente ter perdido um dedo quando torneiro mecânico]. Para o juiz de Brasília que primeiro interrogou o ex-presidente, era o “Seu Luís Inácio”.
Das galhofas com os caracteres físicos ao tratamento que dispensam no trato cotidiano do ex-presidente, sobram evidências de que, para tais segmentos e seus afiliados das classes médias e médias altas, Lula deve ser proscrito da vida política nacional. Aspiração para a qual uma condenação sem provas cabais por corrupção e lavagem de dinheiro, que em democracias liberais avançadas deveria ser motivo de vergonha e questionamento, vira motivo de celebração.

Diante disso, o elemento mais problemático do atual quadro brasileiro não parece estar na ligação contingente de Lula com as elites. Lula já se reinventou uma vez e poderia se reinventar novamente. As elites é que, ao contrário de outros tempos, não parecem mais dispostas a participar de qualquer estratégia de composição. E isso, como ocorreu outras vezes na história, tende a ser obstáculo não apenas para a política progressista, mas para a própria política democrática.

Conluio de elites sufoca a democracia. Por João Filho

O conceito de separação de poderes, fundamental para a democracia, tem sido pisoteado no estado de São Paulo. Uma tese de doutorado publicada neste ano na FGV-SP pela advogada Luciana Zaffalon confirma a percepção que sempre se teve sobre a promiscuidade entre Executivo, Legislativo e o Judiciário em solo bandeirante.
Foi a partir da experiência como ouvidora externa da Defensoria Pública do Estado de São Paulo que Zaffalon decidiu estudar as dinâmicas que operam no funcionamento da Justiça paulista. A pesquisa analisou centenas de projetos de lei e documentos das instituições judiciárias de São Paulo (Tribunal de Justiça, Defensoria Pública e Ministério Público) entre 2012 e 2015 e concluiu haver uma relação de compadrio com governo do Estado e Assembleia Legislativa (Alesp). A força política do PSDB, hegemônica no estado de São Paulo, opera dentro do sistema de justiça, numa dinâmica em que os poderes se blindam e defendem seus interesses corporativos.
Luciana fez um levantamento dos pedidos de suspensão de decisões judiciais solicitados pelo governador paulista ao Tribunal de Justiça. Todos os recursos contra o Estado vão para lá, a segunda instância, um lugar em que Alckmin raramente sai com uma decisão desfavorável. Há uma única situação em que o governo perde todas as vezes: quando questiona o teto salarial das carreiras jurídicas, as mais bem pagas do Estado. Por outro lado, 82% dos “processos que trataram de licitações, contratos ou atos administrativos” foram aprovados, assim como 87%  das “questões afetas à privação de liberdade” –  relativas à suspensão de direitos dos presos. São casos de transferência por superlotação, problemas com banheiros, com ventilação e descumprimentos do Estatuto da Criança e do Adolescente na Fundação Casa. Bruno Shimizu, defensor público do Núcleo de Situação Carcerária da Defensoria Pública, foi entrevistado para a pesquisa e deu um exemplo:
“em uma ação pedimos a instalação de aparelhos para aquecimento de água nos dias mais frios do ano porque os presos com tuberculose tomam banho frio. Mesmo no inverno, tomam banho frio. A gente entrou com uma ação pública bem instruída, com parecer médico, prova. O juiz concedeu uma liminar mandando o Estado em 60 dias fazer as obras para instalar pelo menos um chuveiro por raio. Essa liminar foi suspensa pelo presidente do Tribunal, na época ainda era o Ivan Sartori, e está suspensa até hoje.”
Em 2015, 96,8% dos membros de carreira do Ministério Público paulista tiveram rendimento mensal de R$46 mil, muito acima do teto constitucional, que era de R$33.763. Tudo isso sem contar férias e 13º salário. Parece que o termo “constitucional” não vale para essa casta abastada.
O Legislativo também entra nessa rede de camaradagem. Todo começo de ano, após a aprovação das Leis Orçamentárias, a Alesp transfere para o governador o poder de requisitar suplementações orçamentárias, uma atribuição que deveria ser dos deputados, segundo a Constituição do estado. Segundo a pesquisa, só em 2015, isso resultou em quatro aumentos de verbas para o Tribunal de Justiça em formas de auxílios creche, alimentação e funeral.
Zaffalon analisou 404 propostas legislativas apresentadas à Alesp que propunham mudanças no sistema judiciário entre 2012 e 2015. Apenas 17% delas não implicaram em aumento do orçamento, o restante resultou em bonificações e auxílios diversos. Os campeões em aprovação em propostas, claro, foram os tucanos.
Quando consideramos a taxa de aproveitamento dos projetos, o governador do Estado assume destacada diferença frente aos demais, com 91% de suas propostas aprovadas. É seguido pelos deputados do mesmo partido (PSDB) Mauro Bragato, que obteve aprovação de 36% de suas propostas, e Fernando Capez, com 23% de aprovação.
Oriundo do Ministério Público paulista, Fernando Capez (PSDB) foi presidente da ALESP até março deste ano, quando foi substituído por  Cauê Macris (PSDB), eleito com 88 dos 94 votos. Os tucanos ocupam a presidência da casa há 10 anos ininterruptamente, uma hegemonia para ninguém botar defeito. Não é à toa que lá CPIs são engavetadas em série.
Capez tem um irmão procurador aposentado, um outro irmão que é juiz do Tribunal de Justiça de São Paulo e sua esposa e uma cunhada fazem parte do corpo do Ministério Público paulista.
Outro fato curioso é a proximidade quase umbilical entre o MP e a Secretaria de Segurança Pública. Dos oito secretários que ocuparam a pasta nos últimos 20 anos, apenas um não veio do MP. Promotores que hoje fiscalizam as ações da Polícia Militar são potenciais candidatos a comandantes dela amanhã, basta não desagradarem o governador e se manterem alinhados ideologicamente. É esse o nível de independência judicial em São Paulo. Talvez ajude a explicar a dificuldade do MP em investigar a violência policial em manifestações e nas periferias, em questionar a política de encarceramento em massa e a recorrente prática de tortura nas delegacias.
A lógica se repete em outras áreas do governo, como mostra a Agência Pública:
“de janeiro de 2015 a 2016 dez membros do MPSP se afastaram para ocupar cargos no Executivo estadual. Desses, três foram para a SSP e quatro para a Secretaria de Meio Ambiente. Outros dois deixaram temporariamente o órgão por posições na Assembleia Legislativa. A Corregedoria-Geral do Estado de São Paulo também passou a ser presidida por um procurador. Todos puderam manter os salários de promotor ou procurador, maiores do que os pagos no Executivo e no Legislativo.”
A lerdeza e a omissão com que são tratados casos de corrupção envolvendo tucanos em São Paulo é flagrante. O escândalo do cartel dos trens é o exemplo mais clássico. Em 2011, autoridades suíças solicitaram ao Ministério Público investigações sobre três suspeitos no caso. O procurador Rodrigo de Grandis, responsável pelas investigações no Brasil, ficou quase três anos sem responder. Depois de muito insistirem, os suíços cansaram de esperar e desistiram de prosseguir no caso, arquivando a investigação. O motivo alegado pelo procurador é um escárnio: o pedido foi guardado em uma pasta errada.
Apesar de estar escancaradamente consolidada no estado, essa calamidade na separação dos poderes não é uma exclusividade paulista. Ela se repete em menor grau em outros estados da federação. Como bem lembrou a jornalista Maria Cristina Fernandes – uma das poucas vozes da grande mídia a comentar a pesquisa de Zaffalon – em um momento em que se fala muito sobre a “judicialização da política”, é bom atentar também à outra face da moeda, a “politização do judiciário”.

Poderes que deveriam estar se moderando, trabalhando como contrapesos a fim de evitar autoritarismos, estão do mesmo lado da balança e funcionando como linhas auxiliares entre si. Enquanto esse conluio de elites serve para manter privilégios e atender a interesses corporativos, à maioria pobre restam o abuso de autoridade, a violência policial, a tortura e as cadeias.

Falta o saneamento, aumentam as mortes. Por Washington Novaes

A cada vez que se divulgam números sobre os serviços de saneamento urbano no País, crescem as preocupações. Agora, as informações são (Estado, 10/7) de que quase metade da população nacional não é atendida pela rede de esgotos – ou seja, perto de 100 milhões de pessoas – e quase 20%, perto de 40 milhões, não tem fornecimento de água nos domicílios. Para completar, mais de um terço de toda a água distribuída se perde no meio do caminho. E a causa de todos os problemas é a falta de investimentos.
Tudo se complica ainda mais quando se é informado de que para universalizar até 2033 (daqui a 15 anos) os serviços de saneamento básico o País terá – ou teria – de investir mais de R$ 20 bilhões por ano. Mas entre 2010 e 2015 o investimento médio foi de R$ 11 milhões por ano, pouco mais de metade do necessário. Sem falar em redução ou eliminação das perdas. E para dificultar ainda mais as soluções, hoje boa parte do sistema é administrada por empresas dos Estados, em situação financeira difícil, com patrimônio líquido negativo, dívidas altas, problemas trabalhistas e serviços de má qualidade. Com isso, há dois anos o atendimento urbano de água só chegava a 83,3% do público total.
Entre 2014 e 2015 o investimento caiu até 27% – quando se sabe que cada R$ 1 investido em saneamento levará à economia de até R$ 4 no sistema de saúde. Mas o total investido em 2005, por exemplo, ficou entre R$ 5 bilhões e R$ 6 bilhões; mesmo em 2015 não passou de R$ 12,1 bilhões. Não se deve estranhar, assim, que em Rondônia só 2% da população urbana conte com coleta de esgotos; nada é tratado. Na Bahia, só 3,41% da população tem rede de coleta de esgotos; no Amapá, 3,71% . Onze Estados já contrataram estudos para a expansão, dez já assinaram contratos.
Há quem pense que pelo menos parte do problema poderá ser resolvida com a utilização de águas transpostas, por exemplo, do Rio São Francisco, que seriam utilizadas na irrigação de lavouras. João Suassuna, da Fundação Joaquim Nabuco, adverte, porém, que a expansão do agronegócio está exigindo mais irrigação, quando um pivô central pode consumir 2,6 metros cúbicos de água por hora; a captação de água diretamente nos aquíferos em geral envolve questões difíceis: entre 2015 e 2016 as disputas por água aumentaram 27%, segundo números da Comissão Pastoral da Terra (envolvendo 164 mil pessoas em 2007 ou 222 mil em 2016). As causas principais apontadas são a utilização da água como commodity, que leva a conflitos com grupos sociais que a encaram como bem essencial à vida. Há ainda quem aponte efeitos negativos em processos de privatização de sistemas de água. E até casos de conflitos muito graves, em que se tornou necessária a retomada das instalações pelo poder público. Outros críticos lembram, por exemplo, que em 2015 o BNDES entrou com R$ 57 bilhões em subsídios para privatizações (Folha de S.Paulo, 9/7). Há quem proponha que os processos de privatização e concessão de subsídios sejam obrigatoriamente aprovados pelo Congresso Nacional. O tema foi um dos centrais no 47.º Congresso Nacional de Saneamento, em junho. Nele a Associação Nacional dos Serviços Municipais de Saneamento (Assemae) reafirmou seus “compromissos históricos” de luta contra a privatização do saneamento básico (boletim de 19 a 22 de junho), lembrando que “a sustentabilidade econômico-financeira dos serviços de saneamento básico não foi ainda alcançada em muitos municípios brasileiros”.
Nesse congresso se registrou ainda que o saneamento básico em áreas rurais também precisa ter prioridade nas políticas públicas de todos os municípios. E que a recuperação das nascentes, “já uma área prioritária em todo o mundo”, deve incluir “estratégias como o controle da erosão do solo e a minimização da contaminação química e biológica; para garantir a renovação das nascentes também é necessário o combate ao corte intensivo das florestas nativas, queimadas, pastoreio intensivo, mau planejamento na construção de estradas e loteamentos”.
O tema vai-se tornando cada vez mais candente com a gravidade da situação, exposta em relatórios oficiais, estudos universitários e outros. O senador José Serra, por exemplo, em artigo recente nesta página (22/6), reiterou que “a coleta de esgotos no País é de apenas 50% e apenas 43% dos esgotos coletados são tratados; na Região Norte essa proporção se reduz a 16%”. E acentuou: “A coleta de esgotos, seguida do seu tratamento, beneficia menos de um quarto da população brasileira”. Entre as consequências, indica: “Estimativas do Instituto Trata Brasil apontam que 340 mil internações anuais são causadas por infecções decorrentes da falta de saneamento básico. Entre as dez cidades brasileiras onde há menor cobertura, a média de internações é quatro vezes maior do que entre as dez cidades mais bem atendidas. Milhares de mortes ocorrem como consequência dessas enfermidades”.
Mesmo com tanta gravidade, a precariedade dos serviços básicos no Brasil está demonstrada pelos investimentos médios no setor, que correspondem a menos de dois terços das necessidades apontadas em estudos reconhecidos pelo poder público. A que se deveria isso? Há muitas respostas que atribuem a culpa à indiferença do poder público. E uma elas é do ex-ministro Delfim Netto (Folha de S.Paulo, 3/7): “O poder econômico controla o poder político no Brasil.”

Mas é preciso lembrar sempre um dos últimos relatórios da Organização Mundial da Saúde (Reuters, 7/3): “Ambientes poluídos e insalubres matam 1,7 milhão de crianças por ano, uma em cada quatro”, por causa de “riscos ambientais, poluição do ar e da água, falta de saneamento básico e de infraestrutura adequada de higiene”. A taxa de mortes no Brasil é de 41,38 crianças com menos de 5 anos por 100 mil habitantes, principalmente por falta de saneamento básico.

O trio de capangas de Michel Temer. Por Altamiro Borges

Na próxima quarta-feira, 2 de agosto, a Câmara Federal deverá votar a admissibilidade da denúncia da Procuradoria-Geral da República (PGR) contra o quadrilheiro Michel Temer. Caso aprove – o que hoje é improvável –, ele será afastado do cargo que usurpou com o golpe dos corruptos desferido no ano passado. Para evitar que seja defecado do poder, o Judas tem comprado deputados, liberando emendas, anistiando dívidas e promovendo outras “pedaladas”. O que se assiste no Congresso Nacional é “quase sexo explícito”, nas palavras diplomáticas do ex-chanceler Celso Amorim. Neste verdadeiro bordel, Michel Temer tem contado com a ação descarada de um trio de jagunços, segundo relatos da própria mídia golpista.
Segundo nota postada na revista Época nesta quarta-feira (26), “os três deputados mais fiéis a Michel Temer – Carlos Marun (PMDB-MS), Darcísio Perondi (PMDB-RS) e Beto Mansur (PRB-SP) – abriram mão de parte do recesso parlamentar para ficar em Brasília e cabalar votos dos colegas contra a admissibilidade da denúncia da PGR envolvendo o presidente... De acordo com a última contagem feita pelo trio, a oposição não conseguirá nem 200 votos dos 342 votos necessários para que Temer seja investigado pelo STF. Apesar da confiança no bom resultado para o presidente, Marun diz que ‘é melhor não deixar ponta solta’. Eles têm ouvido demandas dos deputados indecisos”. Em outras palavras, a corrupção corre solta!
Já a Folha publicou que o trio – “estridente” – de capangas tem jogado pesado para garantir a continuidade no poder de Michel Temer. “Estou sempre muito à disposição. Às vezes ele liga, manda um WhatsApp. Tomo cuidado para não ser um pentelho... Michel está com a faca nos dentes e vamos vencer"”, afirma o servil Beto Mansur. Com a mesma agressividade, Carlos Marun garante que a vitória do Judas está assegurada. “No primeiro mandato, Marun tem histórico de brigar por causas polêmicas –é um dos mais aguerridos defensores do ex-presidente da Câmara Eduardo Cunha (PMDB-RJ), preso em Curitiba”. Mas a Folha afirma que “o defensor mais enfático” do golpista é o deputado Darcísio Perondi, “que sabe que o seu empenho o faz motivo de ironias de colegas. ‘O futuro é dos loucos do presente. A gente não vai trazer o futuro se não tiver gente determinada’, diz”.
Cortes sociais e gastança com deputados
Os três capangas não estão para brincadeira. É um jogo de vida ou morte. Segundo reportagem do Jornal do Brasil, Darcísio Perondi é explícito ao afirmar que não haverá perdão para os traidores do Judas. “Quem não votar com o Brasil, indo contra a orientação do seu partido, deve sair, deve sair. E se não sair, vai ser saído. Ou é a favor do novo Brasil, ou não é", rosna na maior caradura. O covil golpista também não tem poupado esforços – ou melhor, grana – para seduzir os deputados. Segundo levantamento da ONG Contas Abertas, entre janeiro e 19 de julho de 2017, o governo liberou R$ 4,1 bilhões em emendas para parlamentares. A maior liberação desses recursos aconteceu no mês de julho: R$ 2,1 bilhões.

“Outro pico de ‘generosidade’ de Temer aconteceu em junho: R$ 2 bilhões empenhados. Cabe ressaltar que as liberações acontecem enquanto o governo federal tenta administrar um rombo fiscal de R$ 139 bilhões... Do total liberado em emendas em 2017, mais de 82% foi para deputados federais (R$ 3,5 bi) e o restante para senadores... O montante empenhado para emendas neste ano representa mais de 70% do corte adicional que o governo federal irá fazer nas contas públicas. Na semana passada, o Ministério do Planejamento anunciou que mais R$ 5,9 bilhões serão contingenciados nas despesas da União. Cabe lembrar ainda que o governo aumentou as alíquotas do PIS/Cofins para gasolina, etanol e diesel”, registra, em tom de ironia, o Jornal do Brasil.

Aécio dá o que não é dele. Por João Paulo Cunha

Está na Constituição Federal: senadores e deputados não podem firmar e manter contatos diretos com a administração pública ou ser concessionários de serviços públicos. Emissoras de rádio e TV são concessões públicas, já que utilizam de uma base física limitada e, portanto, sujeita a normas que devem ser dirigidas pelo interesse público. Como não há possibilidade para que todos criem suas emissoras de rádio e TV, as concessões e outorgas são um princípio ordenador que deveria responder às demandas por qualidade, diversidade, pluralidade e democratização. Sem falar nas garantias de livre mercado, vedando a concentração da propriedade nas mãos de poucos.
Essa é a teoria. Na prática, as concessões no Brasil se tornaram moeda de troca política, instrumento de barganha econômica, base de sustentação de candidaturas e negócio preservado da competição. Para isso, a legislação acompanhou a mesma ordem de interesses. Colocou o poder de concessão nas mãos do governo e não da sociedade. Permitiu a propriedade cruzada de meios e o consequente monopólio do setor – algo que os próprios modelos capitalistas mais orgulhosamente selvagens preservam. Dirigiu as outorgas para as mãos de políticos, que, hoje, são a mais expressiva categoria de proprietários de emissoras em todo o país.
O modelo que foi sendo consagrado por essa história gerou o monstro que hoje rege o setor: concentração econômica, esvaziamento de controle social, nivelamento da qualidade, unicidade ideológica, instrumentalização eleitoral e privatização da propriedade pública. Recentemente, já sob o domínio do golpismo vigente, as normas de renovação, análise de cumprimento de exigências legais e acerto de dívidas foram ainda mais abrandadas e automatizadas, tornando eterno o que deveria ser precário e sujeito a constantes avaliações. Perder ou ter uma concessão revisada, mesmo em face dos maiores ilícitos, se tornou uma tarefa quase impossível.
Não é um acaso que o golpe ganhe sempre a qualificação de midiático, ao lado de outros patrocinadores-master, como o sistema político e o Judiciário. A usurpação do poder popular foi midiática na inspiração, no fomento e na consagração. Por sua parte, os meios familiares receberam sua paga em forma de incremento de propaganda oficial, do fortalecimento dos vínculos de manutenção ideológica do pensamento único e, agora, por meio de uma sobrecarga de garantias que praticamente extingue qualquer possibilidade de controle.
Onde era a lei, hoje há o direito inalienável, portanto, acima e independente de qualquer pressão, seja ética ou de conteúdo, chegando até mesmo aos princípios do livre mercado, tão defendidos pela própria imprensa. O paraíso no mercado: um capitalismo sem competição, sem riscos e com financiamento público. Não é um acaso que os irmãos Marinho, proprietários das Organizações Globo, sejam, tomadas suas fortunas somadas, os mais ricos do mundo em seu ramo de negócio. E é bom lembrar que, como os filhos de Roberto Marinho, os outros herdeiros ativos do segmento não ascenderam ao topo da influência política em razão de sua competência nos negócios. Nossa história é pródiga em demonstrar que o caminho foi o inverso: o apoio às ditaduras sempre foi esteio do poder de suas empresas.
Hipocrisia
Para escapar de inquéritos e ações movidos pelo Ministério Público Federal, alguns políticos estão partindo para o caminho hipócrita de transferir cotas de suas sociedades em rádios e TVs para filhos, irmãos e outros laranjas menos cotados. É o caso, por exemplo, de Jader Barbalho (PMDB-PA), de Agripino Maia (DEM-RN) e de Aécio Neves (PSBD-MG). Jader repassou a cotas para a filha; Agripino para a mãe e Aécio para a irmã, Andrea Neves.
É importante lembrar que a situação do senador mineiro nesse capítulo de sua biografia não é nova. Remonta aos tempos em que era governador do estado, quando a decisão sobre a aplicação de verbas publicitárias em rádios e TV estava nas mãos de… Andrea Neves. A rádio Arco Íris, dos irmãos Neves, sempre recebeu publicidade pública estadual sem paridade com outras emissoras da mesma localidade.
O caso não é indecente apenas pela chicana, que preserva a dieta da grana pública automática e o palanque eletrônico, mas pela convicção de que a outorga era um bem pessoal. Em casos de concessão, descumpridos os requisitos legais, o domínio deveria voltar para o Estado e não ser moeda negociável no mercado da comunicação. A venda de concessões é um crime muito maior que aparenta. Não se trata apenas de garantir benesses aos proprietários das licenças, mas de transformar um bem público em um ativo pessoal. O resultado é o comércio descontrolado de emissoras, sem qualquer acompanhamento ou controle da sociedade.
O balcão de negócios se amplia ainda com a fatia cada vez maior de subconcessões, que dominam as telas e ondas com programas que vendem produtos e indulgências, em troca de parcelas no carnê e dízimos. Sem falar na extinção dos nichos culturais locais, que foram dilapidados pela programação nacional, dirigida pela lógica da audiência sem crítica. Completada pelo império da violência espetacularizada, do estímulo à banalidade e da destruição da comunicação pública, tem-se o quadro que hoje ocupa o espectro eletromagnético. Não chegaremos à democracia sem uma nova comunicação.

Para começar, é preciso tomar de volta o bem público que foi entregue a maus concessionários ou em descumprimento da lei. Aécio, além de não poder receber concessões do Estado em razão de seu cargo e da proibição constitucional, conseguiu ir além e, depois de investigado, deu o que não era dele para se livrar da acusação. No primeiro movimento, poderia ser acusado de falsidade; no segundo, no entanto, não escapa de uma acusação mais severa. E de um juízo moral que pode começar como esperteza, mas que se completa como cinismo.

Movimentos entre DEM e Alckmin podem recompor o centro-direita. Por Carlos Melo

Ainda sob o enganoso remanso do recesso de julho, a política respira como quem se prepara para uma outra jornada de embates, conflitos e horrores — bem ao gosto do mês de agosto, o mês do cachorro louco e de tantas marcas na história do Brasil. Por enquanto, há tempo para outras articulações que não só da defesa do presidente Temer. As articulações de bastidores dão o tom desse período de inverno.
Muitas especulações em relação a 2018: o ex-presidente Lula e o deputado Jair Bolsonaro são os líderes das pesquisas. Mas, o tempo ainda é de olhar para meio, não para os polos. É para lá que o Democratas aponta seus olhos: aproveitando-se da notoriedade de Rodrigo Maia, do apodrecimento PMDB e da profunda crise de identidade do PSDB, os demistas avançam sob o terreno baldio que caberia aos tucanos: o centro.
O DEM quer crescer em tamanho e importância: aproveita-se por estar no governo e também por ter-se comprometido com Michel Temer muito menos do que os principais partidos da base: apoiou, ocupou espaços importantes, mas não se envolveu na mixórdia de escândalos e denúncias — não porque se destaque eticamente nesse terreno minado que é a política, mas porque ficou tanto tempo sem poder que perdeu relevância para isto.
De todo modo, torna-se agora um mercado atrativo para parlamentares que pretendem continuar sob a aba do governo federal qualquer que seja o destino do presidente da República.
Na defesa de Temer, no apoio às reformas, o DEM não falha, não claudica, mas, ainda assim, faz menos barulho, se expõem muito menos que o PSDB. Até porque acalentava sonhos mais singelos — sobreviver —, se comprometeu menos. A posição institucional de Rodrigo Maia lhe dá certo escudo político: não é vice, não tem compromisso moral e nem obrigação de ser fiel. Está apenas na expectativa.
Política também é sorte — a Fortuna, de que nos fala o maldito florentino da renascença. O vento do destino alçou o DEM à presidência da Câmara, a inabilidade dos tucanos não o soube conter e o resto é a história que se assiste, agora, ao vivo. Com o espaço estratégico ocupado por Rodrigo Maia, o DEM fica para o credo como quem diz ''vinde a mim o Diário Oficial'', coopta desgarrados e se prepara para crescer.
Se vier a assumir a presidência, Maia ficará pelo menos seis meses no comando, com a possibilidade de ser reconduzido via eleição indireta. Sua importância tática só aumenta. Pode ser caucionado pelo mercado, pode ser bom eleitor, pode ser bom vice. Pode ser neutro. O menos provável é que seja tão negativamente radioativo quanto Michel Temer. Seus horizontes se expandiram.
Com desdém, os adversários, é claro, o tratam ''Botafogo'', o codinome com que figurou na lista da Odebrecht. Também suas ligações com Moreira Franco, padrasto de sua esposa, e com o pai, César Maia, trazem desgaste. No mais, é do Rio de Janeiro, ''purgatório da beleza e do caos'', repositório de relações perigosas. Tudo o que, nesse instante, configura fragilidades e risco. Mas, com apenas 47 anos, seu futuro é imenso.
Sabedores disto, com olhos no amanhã, demistas avistam Geraldo Alckmin em busca de acordo e alianças. Desgarrado do requinte intelectual e dos chiquês de parte da elite de seu partido — e para alguns de seus adversários internos, um intruso favorecido pela sorte —, o governador pode abrigar e ser abrigado pelo DEM muito melhor que qualquer outro. E não seria a primeira vez.
Alckmin é o que vai restando do centro do espectro político, desidratado com a calcinação do PMDB, de Aécio Neves e de José Serra. É visto como alternativa moderada, num campo de manutenção da política econômica do mercado e da preservação de um ambiente de liberdades democráticas, ao menos.
É claro que tem passivos: um cunhado arrolado pela Lava Jato — cunhado é sempre figura difícil de explicar —, a proeza de, em 2006, ter perdido votos entre o primeiro e o segundo turnos da eleição presidencial (provavelmente, um feito mundial) e o fato de seus governos em São Paulo não serem nenhuma Brastemp em obras e realizações.
Mas, ainda assim, é entendido como mais confiável que o imprevisível prefeito da Capital — menos dado a arroubos nas redes sociais e mais aberto ao diálogo. Como as raposas do passado, de uns tempos para cá, Alckmin fala pouco, se expõe menos ainda; se movimenta com cuidado, exercita a necessária ambiguidade. Até hoje não se sabe o quanto, de fato, apoia Michel Temer, mas está claro que não morre pelo presidente.

Nesse tempo de paradoxos, de frio e mormaço no recesso, uma tentativa de recomposição do centro, pela direita, se esboça na posição estratégica de Rodrigo Maia, nos movimentos do DEM e nos silêncios calculados de Geraldo Alckmin. Pode ser romance de veranico, mas também pode ser que não. Suficiente para reordenar o jogo e romper a polarização? O tempo dirá.