Está
na Constituição Federal: senadores e deputados não podem firmar e manter
contatos diretos com a administração pública ou ser concessionários de serviços
públicos. Emissoras de rádio e TV são concessões públicas, já que utilizam de
uma base física limitada e, portanto, sujeita a normas que devem ser dirigidas
pelo interesse público. Como não há possibilidade para que todos criem suas
emissoras de rádio e TV, as concessões e outorgas são um princípio ordenador
que deveria responder às demandas por qualidade, diversidade, pluralidade e
democratização. Sem falar nas garantias de livre mercado, vedando a
concentração da propriedade nas mãos de poucos.
Essa
é a teoria. Na prática, as concessões no Brasil se tornaram moeda de troca
política, instrumento de barganha econômica, base de sustentação de candidaturas
e negócio preservado da competição. Para isso, a legislação acompanhou a mesma
ordem de interesses. Colocou o poder de concessão nas mãos do governo e não da
sociedade. Permitiu a propriedade cruzada de meios e o consequente monopólio do
setor – algo que os próprios modelos capitalistas mais orgulhosamente selvagens
preservam. Dirigiu as outorgas para as mãos de políticos, que, hoje, são a mais
expressiva categoria de proprietários de emissoras em todo o país.
O
modelo que foi sendo consagrado por essa história gerou o monstro que hoje rege
o setor: concentração econômica, esvaziamento de controle social, nivelamento
da qualidade, unicidade ideológica, instrumentalização eleitoral e privatização
da propriedade pública. Recentemente, já sob o domínio do golpismo vigente, as
normas de renovação, análise de cumprimento de exigências legais e acerto de
dívidas foram ainda mais abrandadas e automatizadas, tornando eterno o que
deveria ser precário e sujeito a constantes avaliações. Perder ou ter uma
concessão revisada, mesmo em face dos maiores ilícitos, se tornou uma tarefa
quase impossível.
Não
é um acaso que o golpe ganhe sempre a qualificação de midiático, ao lado de
outros patrocinadores-master, como o sistema político e o Judiciário. A
usurpação do poder popular foi midiática na inspiração, no fomento e na
consagração. Por sua parte, os meios familiares receberam sua paga em forma de
incremento de propaganda oficial, do fortalecimento dos vínculos de manutenção
ideológica do pensamento único e, agora, por meio de uma sobrecarga de
garantias que praticamente extingue qualquer possibilidade de controle.
Onde
era a lei, hoje há o direito inalienável, portanto, acima e independente de
qualquer pressão, seja ética ou de conteúdo, chegando até mesmo aos princípios
do livre mercado, tão defendidos pela própria imprensa. O paraíso no mercado:
um capitalismo sem competição, sem riscos e com financiamento público. Não é um
acaso que os irmãos Marinho, proprietários das Organizações Globo, sejam,
tomadas suas fortunas somadas, os mais ricos do mundo em seu ramo de negócio. E
é bom lembrar que, como os filhos de Roberto Marinho, os outros herdeiros
ativos do segmento não ascenderam ao topo da influência política em razão de
sua competência nos negócios. Nossa história é pródiga em demonstrar que o
caminho foi o inverso: o apoio às ditaduras sempre foi esteio do poder de suas
empresas.
Hipocrisia
Para
escapar de inquéritos e ações movidos pelo Ministério Público Federal, alguns
políticos estão partindo para o caminho hipócrita de transferir cotas de suas
sociedades em rádios e TVs para filhos, irmãos e outros laranjas menos cotados.
É o caso, por exemplo, de Jader Barbalho (PMDB-PA), de Agripino Maia (DEM-RN) e
de Aécio Neves (PSBD-MG). Jader repassou a cotas para a filha; Agripino para a
mãe e Aécio para a irmã, Andrea Neves.
É
importante lembrar que a situação do senador mineiro nesse capítulo de sua
biografia não é nova. Remonta aos tempos em que era governador do estado,
quando a decisão sobre a aplicação de verbas publicitárias em rádios e TV
estava nas mãos de… Andrea Neves. A rádio Arco Íris, dos irmãos Neves, sempre
recebeu publicidade pública estadual sem paridade com outras emissoras da mesma
localidade.
O
caso não é indecente apenas pela chicana, que preserva a dieta da grana pública
automática e o palanque eletrônico, mas pela convicção de que a outorga era um
bem pessoal. Em casos de concessão, descumpridos os requisitos legais, o
domínio deveria voltar para o Estado e não ser moeda negociável no mercado da comunicação.
A venda de concessões é um crime muito maior que aparenta. Não se trata apenas
de garantir benesses aos proprietários das licenças, mas de transformar um bem
público em um ativo pessoal. O resultado é o comércio descontrolado de
emissoras, sem qualquer acompanhamento ou controle da sociedade.
O
balcão de negócios se amplia ainda com a fatia cada vez maior de subconcessões,
que dominam as telas e ondas com programas que vendem produtos e indulgências,
em troca de parcelas no carnê e dízimos. Sem falar na extinção dos nichos
culturais locais, que foram dilapidados pela programação nacional, dirigida
pela lógica da audiência sem crítica. Completada pelo império da violência
espetacularizada, do estímulo à banalidade e da destruição da comunicação pública,
tem-se o quadro que hoje ocupa o espectro eletromagnético. Não chegaremos à
democracia sem uma nova comunicação.
Para
começar, é preciso tomar de volta o bem público que foi entregue a maus
concessionários ou em descumprimento da lei. Aécio, além de não poder receber
concessões do Estado em razão de seu cargo e da proibição constitucional,
conseguiu ir além e, depois de investigado, deu o que não era dele para se
livrar da acusação. No primeiro movimento, poderia ser acusado de falsidade; no
segundo, no entanto, não escapa de uma acusação mais severa. E de um juízo
moral que pode começar como esperteza, mas que se completa como cinismo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário