domingo, 26 de julho de 2015

“Contra diálogo, FHC está no lado errado da História”, por Paulo Moreira Leite

Fernando Henrique Cardoso perdeu estatura política ao demonstrar desinteresse -- antes mesmo de receber um convite formal -- por um encontro com Dilma Rousseff.
"O momento não é para a busca de aproximações com o governo, mas sim com o povo," escreveu FHC em sua página no Facebook. "Qualquer conversa não pública com o governo pareceria conchavo na tentativa de salvar o que não deve ser salvo".
Ao sugerir que seria possível lhe atribuir a missão de salvar o governo Dilma, o ex-presidente não conseguiu evitar a lamentável manifestação de uma arrogância irrefreável em vários de nossos homens públicos -- inclusive do PT -- quando se torna evidente que os adversários atravessam uma hora difícil. 
O país inteiro -- e o Planalto em primeiro lugar -- sabem muito bem que o governo Dilma será salvo pelo governo Dilma. Não se deve cultivar ilusões a esse respeito.
Cabe à presidente e aos ministros corrigir o que deve ser corrigido e esclarecer o que precisa ser explicado. Também têm o dever de controlar a incrível capacidade de errar sem necessidade, dar consistência a suas ações políticas e recuperar a confiança do eleitorado. Se há novas alianças a serem feitas, lhe cabe propor. Se há alianças que atrapalham, devem ser desfeitas.
Não há como renunciar a  esta responsabilidade, única e intransferível.
Mas cabe a um ex-presidente, que nunca foi aliado do governo -- e ninguém imagina que tenha sido cogitado a desempenhar este papel --  reconhecer a legitimidade do mandato que Dilma recebeu nas urnas de outubro de 2014, quando 53,5 milhões de brasileiros garantiram seu mandato até 2018. Todos ganham com isso, inclusive FHC. 
Numa hora em que todos definem seus lugares, como se viu até no histórico diálogo entre Faustão e Marieta Severo e também na postura que separa Jô Soares e Lobão, todo mundo tem o direito de resolver como quer aparecer na foto. Não é possível afagar, pelo silêncio, Jair Bolsonaro e seus amigos, adversários da democracia antes que ela fosse conquistada luta contra a ditadura. Não é possível fingir que não há uma tentativa de ruptura em curso, ainda que ela possa vir fantasiada de arroubos juvenis.
Não é aceitável que se tente utilizar um processo judicial contra a corrupção, luta legítima e necessária, como instrumento para se atingir um governo eleito, promovendo-se um macabro terceiro turno. 
Os brasileiros que lutaram pela democracia já acumularam muitos cabelos brancos, tiveram muitas perdas e ganhos. Reuniram decepções demais para deixar de reconhecer que não sobraram mocinhos nem bandidos em nossos duelos políticos, mas seres humanos de carne e osso, que atuam sob condições dadas, que todos conhecem muito bem e poderão aprimorar quando houver maioria política para isso. 
Certos gestos são muito importantes mesmo quando parecem só isso. Uma foto e uma pequena legenda explicativa ajudaram, muitas vezes, a escrever a história de um país que chegou até aqui. Foi assim que se guardaram imagens da campanha de 1978, quando Fernando Henrique Cardoso foi atrás do voto popular pela primeira vez na vida, e o metalúrgico Luiz Inácio Lula da Silva abriu as portas das fábricas e dos bairros populares de São Paulo, contribuindo para uma votação que nem os aliados mais otimistas de FHC podiam imaginar.
O mesmo se repetiu na transição de 2002-2003, que exibiu uma elegância jamais vista, produto da decisão de Lula de mandar o passivo de oito de FHC para o arquivo morto, fazendo cumprir com a energia necessária toda tentativa de olhar para trás em busca de escândalos possíveis e já identificados. (Vários membros do governo se arrependeriam dessa cortesia que jamais foi retribuída, como se veria na AP 470, mas aí estamos em outra etapa da história, que ajuda a explicar boa parte da raiva e do ressentimento que vieram depois).
Em 2011, no início de seu primeiro mandato, emissários do PSDB fizeram chegar ao Planalto a sugestão de que, macambúzio após uma terceira derrota consecutiva de sua turma naquela altura da vida, seria um belo gesto homenagear Fernando Henrique  nos 80 anos. Seria um reconhecimento. E uma forma da presidente colocar-se acima das disputas menores da política e colocar-se na História. Negociado palavra após palavra, por mãos autorizadas de um lado e de outro, chegou-se a um texto que dizia assim:
Em seus 80 anos há muitas características do senhor Fernando Henrique Cardoso a homenagear. O acadêmico inovador, o político habilidoso, o ministro-arquiteto de um plano duradouro de saída da hiperinflação e o presidente que contribuiu decisivamente para a consolidação da estabilidade econômica. Mas quero aqui destacar também o democrata. O espírito do jovem que lutou pelos seus ideais, que perduram até os dias de hoje. Esse espírito, no homem público, traduziu-se na crença do diálogo como força motriz da política e foi essencial para a consolidação da democracia brasileira em seus oito anos de mandato. 
Em 2015, não se trata obviamente de salvar um governo nem de pedir a retribuição de uma gentileza, mesmo que gestos desse tipo projetem força de caráter. A questão é mostrar apreço pelas regras da democracia, numa hora em que adversários históricos têm sido estimulados a jogar o país em aventuras que todos sabem como começam e, pela experiência, podem adivinhar aonde pretendem chegar.
A realidade é que não há caminho legal para afastar Dilma de seu posto. Não há fitas gravadas e comprometedoras, que forçaram Richard Nixon a renunciar depois do Watergate. Se você acha que um Fiat Elba é pouco para derrubar um presidente, ou apenas a pontinha de um iceberg, cabe reconhecer: não há um Fiat Elba, como aquele que se tornou a "prova material" contra Fernando Collor. 
Não se pode cogitar sequer o impeachment paraguaio, que afastou Fernando Lugo do cargo a partir de uma tentativa tosca de incriminar o presidente pela morte de 17 pessoas num conflito por terra -- uma operação tão grotesca como teria sido, em 1996, acusar Fernando Henrique Cardoso e o governador tucano Almir Gabriel, no Senado, pela morte de 17 agricultores no massacre de Eldorado de Carajás. Tampouco a presidente pode ser acusada de atentar contra a Constituição, clausula previsa no artigo 86 da Carta de 1988. Foi a partir de uma interpretação interesseira da legislação local que se afastou -- por ação militar -- o presidente Manoel Zelaya da presidência de Honduras.
Em março de 2015, não existem condições para se pedir um afastamento da presidente a partir da legislação em vigor. Não se trata de tentar "salvar o que não deve ser salvo." Trata-se de reconhecer não há nada que "não deve ser salvo."
Após examinar meticulosamente as menções a Dilma nas delações da Lava Jato, o PGR Rodrigo Janot informou aos interessados que não há caminhos legais para que Dilma seja enquadrada em crime de responsabilidade, que precisa ser cometido durante o mandato presidencial. Janot assinalou que as referências a Dilma falam de seu período como ministra-chefe da Casa Civil e das Minas e Energia, envolvendo fatos que, se por acaso forem dignos de serem apurados, deverão aguardar pelo fim do mandato, em 1 de janeiro de 2019, como determina o artigo 86 da Constituição, conforme entendimento de vários ministros do Supremo.
Isso ocorre porque, num gesto de sabedoria produzido pela memória do país, os constituintes trataram de evitar que em busca de atalhos para esquentar disputas do presente, adversários de um governo eleito fossem desencavar denúncias do passado, transformando a luta política numa guerra civil de fantasmas e assombrações.
Fernando Henrique Cardoso teve um papel dirigente na Constituinte. Foi relator do regimento interno, que definiu como os trabalhos seriam organizados. Também foi líder do PMDB no Senado, quando o partido tinha a maior bancada. Como relator-adjunto da Comissão de Sistematização, cumpriu funções de titular e teve um papel decisivo na elaboração do texto final da Carta de Leis. 

É nesta história que ele considera que não há "nada a ser salvo?"

“Maioridade penal, uma ideia menor”, por Antonio Cláudio Mariz de Oliveira

A errônea análise do crime exclusivamente sob o prisma dos seus efeitos, sem nenhuma consideração pelos fatores que o desencadeiam, tem como exemplo eloquente a questão do menor abandonado, que, com o passar dos anos, se tornou infrator e, depois dos 18 anos, um criminoso.
Tal questão jamais foi vista pelas elites e pelos governos como um problema social e humanitário, a exigir de todos empenho e solidariedade. Nada foi feito, e as crianças cresceram ao nosso redor sem que nós dispensássemos a elas um mínimo de atenção, mas, ao contrário, nossa atitude sempre foi de desinteresse e de omissão.
Demos-lhes as costas, ao invés de saúde, educação, teto e afeto. A presença desses menores sempre nos causou certa repulsa e medo. A atitude concreta adotada sempre foi a de fechar o vidro dos carros, para evitar qualquer tipo de contato. Agora, após anos de desprezo, foi encontrada a solução cômoda, ineficiente e predatória da prisão.
Prenderemos o maior de 16 anos e deixaremos como está o menor carente, até que ele, com aquela idade, se torne um criminoso. Quando isso ocorrer, também o prenderemos.
Esquece-se, no entanto, de que um dia eles sairão das nossas cadeias, serão egressos do nosso abominável sistema penitenciário e aí estarão aptos a cometer ainda maiores atrocidades contra nós, que os encarceramos. Esse cruel e burro círculo vicioso não vai terminar nunca? Prendemos, soltamos e nos tornamos de novo vítimas de nossa conduta, de nossa irresponsável e autofágica conduta. Estupidez pura.
É óbvio que não deveremos deixar o menor infrator impune. No entanto, vamos reagir contra o crime do menor (infração) com um mínimo de inteligência, se não por um dever social, de solidariedade e de humanismo, pelo menos por egoísmo e autopreservação.
Ninguém duvide de que o sistema prisional brasileiro não evita o crime, ao contrário, ele o estimula. Não há quem não saiba que ele age no sentido contrário dos interesses da própria sociedade, pois não recupera, mas atua como um eficiente fator criminógeno.
Não se desconhece que um coro retumbante se ergueu do seio da sociedade clamando pela redução da maioridade penal. Esse clamor é emocional e não provém da análise das causas do fenômeno criminal e das consequências da medida apregoada. Trata-se de uma grita irracional, impulsionada e avolumada por uma cultura punitiva divulgada pela mídia e incrustada no íntimo das pessoas, sem maiores indagações e reflexões.
Lembre-se de que o homem de hoje, o homem midiático, perdeu o senso crítico, pouco raciocina. A imagem divulgada não passa pela razão, porque vai direto à emoção, provocando amor ou ódio. No caso do menor infrator, provoca o ódio.
Prega-se a diminuição da idade da responsabilidade penal porque os maiores de 16 anos estão praticando infrações.
Assim, cabe uma indagação: e os de 15 anos, de 14 anos ou os de 13 anos que também as praticam? Se a solução é a prisão, por que não encarcerar todo e qualquer infrator menor, considerando-o criminoso?
Uma matéria do dia 15 de julho do jornal O Estado de S. Paulo mostrou que menores de 12 anos a 17 anos estão cometendo mais delitos do que os de 16 a 18 anos. Portanto, tendo a cadeia como solução, deverão ser colocados nas prisões, junto com experientes criminosos, os menores a partir dos 12 anos.
Bem se vê que a solução da diminuição da idade da responsabilidade penal não passa de demagogia, pura insensatez, ausência de seriedade, verdadeira cortina de fumaça para iludir a sociedade. Basta prender e nada mais deverá ser feito.
Pergunta-se: há quem creia em que os menores serão recuperados no cárcere? Ou, ao contrário, a prisão estimulará o aumento de sua periculosidade, e irá prepará-lo adequadamente para trilhar com eficiência e êxito os caminhos do crime?
Não se espantem se surgir uma corrente que pregue o isolamento, em lugares distantes, dos menores considerados potencialmente perigosos, em face do meio em que vivem, das pessoas com as quais convivem e da "cara" que possuem. Essa corrente terá como objetivo riscar esses menores dos nossos mapas urbanos...
Deve-se notar que nós estamos nos preocupando com o menor abandonado apenas e na medida em que ele nos está agredindo, pois, estivesse em silêncio, amargando as suas carências debaixo dos viadutos, sem nos incomodar, continuariam a ter o nosso desprezo. A sociedade brasileira não soube ou não quis criar uma cumplicidade entre os seus membros para cuidar do menor carente. Ocorreu, sim, a cumplicidade com o abandono.
A propósito, significativos porcentuais de infratores (total de 23 mil no País, em 2013) têm algum tipo de carência social, que certamente contribuiu para a prática delituosa. Assim, 51% não frequentam a escola; 49% não trabalhavam quando foram recolhidos; e 66% pertencem às famílias de extrema pobreza (dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, Ipea, divulgados pelo jornal Valor Econômico de 13/7).
Vamos fazer, agora, o que não fizemos durante séculos. Cuidar do menor. Recolher o infrator, porém tornar o recolhimento não o da cadeia, mas o de instituições apropriadas, algo construtivo, edificante. Ampliar o prazo de recolhimento previsto pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e utilizá-lo como medida pedagógica e humanitária, para suprir as carências, que vão da educação ao afeto, passando pela saúde, pela assistência psicológica e pela profissionalização.

Vamos estender as mãos para o menor infrator, para que ele não volte a delinquir e para que o menor abandonado não se torne infrator. Digamos não à prisão, pois a prisão de hoje leva ao crime de amanhã.

“TCU faz politicagem no lugar errado”, por Hélio Doyle

É bom que o país tenha um órgão destinado ao controle das contas públicas, para assegurar que os recursos do Tesouro sejam bem aplicados. É bom também que esse órgão tenha autonomia administrativa e financeira, para que não fique refém de quem fiscaliza. E é ótimo que os que têm poder de decisão nesse órgão tenham de ter idoneidade moral, reputação ilibada, notórios conhecimentos jurídicos, contábeis, econômicos e financeiros e mais de 10 anos de exercício de função que exija esses conhecimentos.
O Brasil tem esse órgão, o Tribunal de Contas da União. Nos estados, no Distrito Federal e em alguns poucos municípios também há tribunais de contas. A função do TCU é "realizar a fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial da União e das entidades da administração direta e administração indireta, quanto à legalidade, à legitimidade e à economicidade e a fiscalização da aplicação das subvenções e da renúncia de receitas".
O que se espera, portanto, é que os tribunais de contas tenham quadros competentes, idôneos e experientes em condições de exercer a importantíssima missão de fiscalizar o uso dos recursos públicos, para evitar o mau gasto, o desperdício e a corrupção. Tanto na esfera da análise técnica, quanto na da decisão. A competência, a idoneidade e a experiência são tão importantes para os que fazem os estudos técnicos quanto para os que decidem, com base ou não nesses estudos.
Os técnicos dos tribunais de contas atendem, de modo geral, a esses requisitos. São servidores concursados e que trabalham muito. O mesmo não se pode dizer dos que decidem: ministros, no TCU, e conselheiros, nos tribunais estaduais e municipais. Mas sem generalizar, claro: há ministros e conselheiros extremamente competentes e indiscutivelmente honestos. É arriscado dizer que são a maioria, é mais provável que sejam a minoria. Sempre aparecem denúncias e suspeitas contra membros de tribunais de contas, alguns até são afastados. Mas, embora nem sempre haja provas, são muitos os casos conhecidos de achaques, extorsão, advocacia administrativa e outros malfeitos.
O problema está no sistema de escolha dos ministros e conselheiros: os indicados têm de passar pela aprovação do Legislativo. No TCU, um terço dos ministros é indicado pelo presidente dentre auditores e procuradores do tribunal, a partir de lista encaminhada pelos ministros, mas os nomes têm de ser aprovados pelo Senado Federal. Dois terços são escolhidos pelo Congresso Nacional e nomeados pelo presidente da República. Nos estados, DF e municípios, os indicados passam pelos legislativos locais.
Todos sabem que em nossos parlamentos a aprovação de nomes para o exercício de funções públicas passa por uma degradante e humilhante peregrinação por gabinetes legislativos em busca de apoio, pelo toma lá dá cá fisiológico e pela submissão a interesses políticos geralmente ilegítimos. Parlamentares aprovam e vetam nomes de acordo com suas conveniências pessoais e políticas, ou pelo que ganham em troca. E os aprovados devem agradecimento eterno aos que os aprovaram.
As indicações pelos legislativos não atendem a qualquer requisito de idoneidade ou competência. Os parlamentares escolhem colegas por critérios de amizade, compadrio, acertos de interesses e coisas assim. A cadeira no tribunal de contas assegura vitaliciedade, salários no teto e aposentadoria integral, além das mordomias de praxe e do status. E assim políticos sem conhecimento e experiência na área são indicados pelos colegas, e a eles são gratos. Os compromissos e acertos feitos são cumpridos no exercício da função. Os tribunais são extensão da atividade política de seus ministros e conselheiros, muitos dos quais voltam a disputar mandatos assim que obtêm a vantajosa aposentadoria.
Os tribunais de contas, por conta de servidores, ministros e conselheiros competentes e honestos, fazem um trabalho importante. Mas os incompetentes, desonestos e que os utilizam para fazer politicagem põem tudo a perder.

No Brasil de hoje, político em tribunal de contas é raposa tomando conta de galinheiro.

“Apuros de Cunha reabrem jogo para governo Dilma”, por Breno Altman

As severas denúncias contra o presidente da Câmara dos Deputados talvez sejam a única boa notícia para o petismo nos últimos seis meses.
Encurralado pela ofensiva conservadora, assistindo impavidamente a dissolução de sua base social, o Palácio do Planalto vinha sendo feito de gato e sapato por Eduardo Cunha.
Forjou-se, ao redor do parlamentar fluminense, uma nova coalizão, de centro-direita, que dirigiu a vida política no primeiro semestre e fragilizou as condições de governabilidade da presidente Dilma Rousseff, estabelecendo uma espécie de aleijão parlamentarista.
Mesmo acossado pelas investigações da Operação Lava Jato, o líder peemedebista operava como exímio alfaiate da escalada reacionária, combinando alentado arsenal fisiológico com forte espírito de combate e ilimitado empenho na articulação das forças do atraso.
O poder executivo não conseguia frear suas investidas, acumulando sucessivas derrotas e retrocedendo de forma atabalhoada, resumindo-se a agir desesperadamente pela simples sobrevivência.
Cunha deitava e rolava sobre um governo refém do próprio PMDB, além de abandonado por grande parte de seus eleitores, depois do cavalo-de-pau na política econômica.
O Planalto revelou-se apático, nestas contendas, para enfrentar o mar de contradições no qual corre risco de afogamento.
Mas uma tempestade mudou a paisagem, com um dos condutores fundamentais da estratégia oposicionista abalado pela acusação de que teria embolsado gorda propina em negociatas com fornecedores da Petrobrás.
A situação de Eduardo Cunha, aliás, pode ficar ainda pior, se o procurador-geral da República solicitar ao STF seu afastamento do comando da Câmara dos Deputados.
De uma hora para outra, o campo conservador viu-se tomado por sentimentos de confusão e perplexidade, sem saber o que fazer com os danos provocados pelo raio caído em seu território.
O PSDB e seus aliados saem momentaneamente de cena, silenciosos e escorregadios.
A velha mídia se divide, entre veículos que pulam na jugular de Cunha e outros que preferem mantê-lo vivo como samurai contra o governo e o PT.
Setores do PMDB e outras agremiações formalmente integrantes do bloco oficialista, que ainda não estavam rendidos ao golpismo, ganharam dose extra de oxigênio e certa margem de manobra.
Conspurcada, a Câmara dos Deputados passa a ter mais dificuldades, diante da opinião pública, para gerir eventual processo de afastamento contra uma presidente legitimamente eleita.
A verdade é que se abriu inesperada janela de oportunidade para uma contraofensiva petista.
Fatores estruturais continuam desfavoráveis, com a confluência entre crise econômica, deterioração social, esgotamento do sistema político e desgaste moral, mas o oponente tomou um sopapo e baixou a guarda.
Caso o governo e o PT se contentem em respirar aliviados, satisfeitos com a dor alheia, acabarão por dar fôlego à recuperação de seus adversários.
Mesmo que Cunha soçobre, a direita rapidamente poderia se recompor, retomando sua capacidade de ataque e voltando a acantonar o Palácio do Planalto.
Bastaria, por exemplo, eleger alguém do mesmo naipe para a presidência da Câmara dos Deputados, se o atual ocupante for ejetado, ou deixar que temas tóxicos – como o julgamento das chamadas “pedaladas fiscais” – ocupem o vácuo deixado pela inação.
Há uma chance preciosa, no entanto, para a esquerda abandonar a política de infindáveis recuos praticada desde outubro do ano passado, cujos resultados desastrosos saltam à vista por todos os lados.
Outro rumo poderia ser traçado se a presidente Dilma Rousseff aproveitasse a tormenta para demitir o ministério e nomear um novo gabinete, no qual a participação da sociedade civil se sobrepusesse às negociações partidárias, em tentativa orgânica de buscar legitimidade extrainstitucional perante progressivo colapso do sistema de representação.
O governo renascido deveria ter como lastro um programa de combate à recessão e retomada do desenvolvimento, com o objetivo de recompor o pacto entre as forças progressistas e atrair correntes democráticas que ainda respiram nas legendas centristas.
Também seria boa hora da presidente retomar a bandeira da Constituinte para a reforma política, transformando-a em um dos fundamentos da repactuação governamental, materializada em proposta imediata de plebiscito popular por sua convocação.
Tratam-se de operações com enormes perigos, fáceis de especular e complicadas para executar. Ficar parado no mesmo lugar, porém, parece ser receita infalível para o ocaso.

Pior ainda se prevalecer a política de “bandeira branca” defendida pelo deputado José Guimarães (PT-CE), líder do governo na Câmara dos Deputados, que aprofunda a dependência e a vulnerabilidade do projeto petista em relação a frações que conspiram abertamente para encerrar o processo de mudanças inaugurado em 2003.

domingo, 19 de julho de 2015

“Governo financia mídia cartelizada”, por Antonio Lassance

Gasta-se muito e gasta-se mal em comunicação de governo, em todos os governos. Nos estaduais e municipais costuma ser pior do que no governo federal. Ainda assim, é inadmissível que um governo eleito e reeleito com a pauta da democratização dos meios de comunicação e com um discurso de que faz “mídia técnica” não tenha feito, até hoje, nem uma coisa, nem outra.
A expressão “mídia técnica” supostamente significa que o gasto em publicidade tem como critério a audiência de cada mídia e seus respectivos veículos. Assim sendo, as mídias e veículos de maior audiência são mais bem pagos que outros.
A mais recente “Pesquisa brasileira de mídia” (PBM 2015), feita justamente por quem deveria segui-la à risca, com o objetivo de aferir os hábitos de consumo de mídia da população brasileira para orientar os gastos em publicidade do Governo Federal, mostra que a tal mídia técnica está mais para bordão propagandístico do que para justificativa criteriosa para o gasto com publicidade.
Desde 2010, a Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República (Secom) realiza a PBM. A segunda edição foi publicada em 2014. A PBM 2015 já está disponível no portal da própria Secom http://www.secom.gov.br/atuacao/pesquisa/lista-de-pesquisas-quantitativas-e-qualitativas-de-contratos-atuais/pesquisa-brasileira-de-midia-pbm-2015.pdf e mostra que, de cada 100 brasileiros, 95 têm o hábito de assistir tevê; 55 ouvem rádio, 48 navegam pela internet, 21 leem jornais impressos e 13, as revistas impressas.
Se o Governo Federal realmente empregasse critérios técnicos, utilizaria sua própria pesquisa como parâmetro para remunerar a publicidade em cada mídia. Nada mais razoável, tecnicamente falando, do que gastar proporcional e parcimoniosamente de acordo com o peso exato de cada mídia nesses hábitos de consumo.
Portanto, com base em dados técnicos; dados de audiência; dados de pesquisa; dados oficiais; a mídia técnica do Governo Federal, de técnica, só tem o nome. Desrespeita os dados que a própria Secom tem em mãos, pelo menos, desde 2011.Fonte: tabela do autor com base em dados disponíveis em http://www.secom.gov.br/pdfs-da-area-de-orientacoes-gerais/midia/total-administracao-direta-todos-os-orgaos-indireta-todas-as-empresas.pdf
A televisão, que é a mídia mais cara, mais concentrada e menos plural de todas recebe mais de 70% da publicidade federal, quando não deveria receber mais do que 41%. Mídias mais regionalizadas, mais plurais, mais segmentadas recebem bem menos do que deveriam, conforme se vê pelos dados da PBM 2015.
Gasta-se em tevê muito mais do que se deveria. Gasta-se, em rádio e internet, bem menos do que ambas as mídias fariam jus. Gasta-se, com jornais e revistas, um valor próximo ao que elas de fato merecem, com base nos hábitos.
A tevê, em queda livre, passou a receber mais dinheiro, em termos absolutos e relativos, do que recebia no passado. É como essa mídia, que um dia já foi um Boeing e agora está mais para ônibus, continuasse recebendo grandes somas de dinheiro para comprar combustível de aviação, não importa que tenha baixado de patamar e de número de passageiros.
Detalhe irônico: calculando-se essa distorção de 30% que premiou todos os veículos de tevê em mais de uma década de governos de esquerda, dos 6,2 bilhões recebidos pela Rede Globo, cerca de 1,8 bi foram para o bolso dos Marinho de mão beijada. Quem sabe, pelos serviços prestados – não se sabe exatamente a quem.
Importante dizer que o gasto com outras mídias, mesmo sendo bem menor, não destoa da preferência governamental por veículos que fazem parte do cartel das grandes corporações. Rádio, internet, jornais e revistas têm gastos muito concentrados em velhos conhecidos, como O Globo, Folha, Estadão; revistas como Veja e Época; rádios como CBN, Band News e suas afiliadas.
Antes que se aplauda o fato de que o gasto com publicidade em internet esteja crescendo, é bom entender por onde. Acertou quem disse Google e Facebook. E quais são os veículos de maior concentração publicitária na internet? De novo, acertou quem disse Google e Facebook. Com o tempo, os governos irão, no máximo, trocar um cartel por outro. Assim caminha a publicidade.
Moral da história: a tal mídia técnica não passa de um eufemismo ou, melhor dizendo, uma fábula, em todos os sentidos: um desperdício de dinheiro público com uma publicidade ineficiente, contraproducente, que premia veículos tidos como grandes, mas que de fato são bem menores do que os olhos generosos da publicidade os enxergam.
Mídia técnica é um tipo de propaganda enganosa feita para encobrir a farra com dinheiro público que patrocina o conluio das agências de publicidade com os veículos de comunicação cartelizados, feita com chapéu alheio – o do governo. Está nas mãos dessas agências programar as campanhas veiculadas na mídia privada, recebendo, em troca, a chamada bonificação de volume (BV). Quanto mais se investe em um veículo, mais BV esse veículo paga para a agência camarada.
Diz-se, na instrução normativa que regula a publicidade institucional do governo, que ela “destina-se a posicionar e fortalecer as instituições, prestar contas de atos, obras, programas, serviços, metas e resultados das ações do Poder Executivo Federal, com o objetivo de atender ao princípio da publicidade e de estimular a participação da sociedade no debate” etc, etc, etc (IN 007/2012, Art. 3º, inciso I).

A bem da verdade, o que se poderia dizer, de forma mais simples, direta e honesta, é que a publicidade governamental destina-se a favorecer as maiores corporações de mídia do país, em montantes cada vez maiores, não importa o quanto elas tenham ou não pensamento único; não importa o quanto elas falem mal ou não do Brasil; desprezem ou não as instituições e a democracia; não importa o quanto elas eduquem ou deseduquem e propaguem solidariedade ou intolerância. Não importa, sequer, o quanto elas estejam em decadência nos hábitos de consumo de informação, cultura e entretenimento dos brasileiros. Não é a propaganda que é a alma do negócio. É o negócio que é a alma da propaganda, mesmo a governamental.

* Antonio Lassance é doutor em Ciência Política, especialista em comunicação e políticas públicas.

“O poder de Eduardo Cunha está ruindo”, Revista Forum

O homem mais poderoso da Câmara dos Deputados começa a dar sinais de enfraquecimento após denúncia de cobrança de propina investigada pela Operação Lava-Jato; os antigos parceiros já evitam ser associados ao seu nome, o próprio partido se opôs ao rompimento com o governo e a sociedade civil se mobiliza para pedir a derrubada do parlamentar
Os sete sinais de que o poder de Cunha está ruindo:
1-   Operação Lava-Jato
Em novo depoimento, o empresário Júlio Camargo, delator na Operação Lava Jato, acusou Eduardo Cunha de exigir o pagamento de propina de US$ 5 milhões. A notícia caiu como uma bomba no Congresso durante essa semana e abalou a imagem e a força política do presidente da Câmara. O ex-consultor do grupo Toyo Setal disse ter repassado o dinheiro por pressão de Fernando Baiano, apontado como operador do PMDB no esquema de desvio de recursos da Petrobras. Para apressar o pagamento, Cunha teria articulado a apresentação de requerimentos, na Câmara, contra o próprio Camargo e contra uma empresa do grupo Toyo Setal.
     2- Perda de apoio
A denúncia de corrupção envolvendo Cunha, no foco da operação policial de maior destaque no país, fez com que antigos parceiros recuassem. Conhecido pelo poder de articulação e de influência dentro da Casa, o peemedebista passou a ser evitado por muitos parlamentares, sob o risco de terem seus nomes associados às irregularidades. As manobras regimentais, antes realizadas com facilidade, passarão a ter menos adesão a partir de agora e o raio de atuação ficará mais restrito. O próprio Cunha, provavelmente, deverá fugir dos holofotes.
3-   Peixes pequenos
Quem acompanhou a coletiva de imprensa em que Eduardo Cunha anunciou o fim das relações com o governo de Dilma Rousseff sentiu falta das figuras graúdas da Câmara, que sempre fizeram questão de posar ao lado do homem mais poderoso da Casa. Desta vez, os únicos que se prestaram a esse papel foram os deputados Hildo Rocha (PMDB-MA), Rogério Peninha Mendonça (PMDB-SC), Édio Lopes (PMDB-RR) e André Moura (PSC-SE), de pouca expressão entre os parlamentares.
4-   "Posição pessoal"
O anúncio de que, a partir desse momento, ele romperia com o governo e passaria à oposição não surtiu efeito nem dentro do próprio partido. Em nota, o PMDB afirmou que a decisão se trata de uma “posição pessoal” e não representa uma convicção da legenda. De acordo com o comunicado, esse tipo de postura só pode ser tomada “após consulta às instâncias decisórias do partido: comissão executiva nacional, conselho político e diretório nacional”. Cunha alega estar sendo vítima de um complô entre o governo federal e o procurador-geral da República, Rodrigo Janot, para incriminá-lo e diz que defenderá o afastamento definitivo do PMDB durante um congresso interno, realizado em setembro.
5-   Teoria conspiratória
Ao defender a ideia de que há um grupo conspirando para derrubá-lo do poder, sobraram críticas até para o juiz Sérgio Moro, que conduz a Operação Lava Jato na primeira instância. Cunha chegou a afirmar que o magistrado “pensa que é o dono do país”. “Acha que é o dono do Supremo Tribunal Federal, do Superior de Tribunal de Justiça. Vamos entrar com uma reclamação no Supremo”, anunciou. Em nota, a 13ª Vara Criminal Federal de Curitiba, da qual Moro é titular, declarou que não cabe ao Juízo “silenciar testemunhas ou acusados na condução do processo”.
6-   Risco de impeachment
Logo após as denúncias, os deputados Silvio Costa (PSC-PE) e Ivan Valente (PSOL-RJ) vieram a público, nesta sexta-feira (17), para cobrar o afastamento do peemedebista do comando da Casa enquanto a Operação Lava-Jato não for concluída. Costa, que é um dos vice-líderes do governo na Câmara, disse que vai fazer uma consultoria jurídica para avaliar a possibilidade de pedir o impeachment de Cunha. Pela legislação, os presidentes da República, do Senado e da Câmara podem ser afastados do cargo, por meio desse procedimento, se tiverem cometido crime de responsabilidade, como atentar contra a probidade da administração, os direitos políticos dos cidadãos ou a lei orçamentária.
7-   Mobilização popular

Às 20h25 de hoje [17], Eduardo Cunha fará um pronunciamento em cadeia nacional de rádio e TV durante cinco minutos para falar sobre as atividades realizadas na Câmara. A previsão é que ele aborde alguns projetos polêmicos, como os que tratam da redução da maioridade penal e do financiamento empresarial de campanhas. A notícia não passou despercebida nas redes sociais e já está sendo organizado um protesto para esse horário. O evento “Barulhaço no Pronunciamento de Eduardo Cunha”, divulgado no Facebook, já conta com 60 mil pessoas confirmadas, que prometem usar apitos e panelas para fazer barulho durante a fala de Cunha. Segundo os organizadores, a manifestação é também contra o fundamentalismo religioso, o machismo e a homofobia presentes nos discursos do deputado.

“A perseguição a Lula e o retrocesso”, por Paulo Moreira Leite

Respondendo a um processo administrativo pela acusação de ter sido "negligente" no andamento de "245 feitos que estavam sob sua responsabilidade," o procurador Valtan Timbó Martins Mendes Furtado é o mais novo candidato ao panteão de personagens desses tempos inglórios em que a justiça tornou-se acima de tudo um grande espetáculo.
No dia 8 de julho, Valtan Timbó pediu a abertura de um inquérito para investigar as suspeitas de "tráfico de influência" de Luiz Inácio Lula da Silva para favorecer a Odebrecht em viagens internacionais.
É bom saber que as bases reais para essa apuração dividem-se em nulas e ridículas, como vamos explicar mais adiante. Em situação de normalidade política, quando os direitos e garantias fundamentais são respeitados, e toda pessoa é tratada como inocente até que se prove o contrário, esse pedido de abertura de inquérito seria um episódio folclórico, condenado automaticamente ao esquecimento.
Mas vivemos outros tempos, anormais, como explicou o ministro do Supremo Marco Aurélio Mello, onde prende-se primeiro para apurar depois. 
Um dos presos da carceragem de Curitiba hoje é o executivo Alexandrino Alencar, que estava presente num jatinho alugado pela Odebrecht para uma viagem de Lula em 2013. Foi essa viagem que deu origem a uma reportagem em tom de escândalo da Época sobre um "vôo sigiloso" à República Dominicana. 
O pedido de abertura de inquérito, criminal, que pode levar à perda de liberdade em caso de condenação, é preocupante exatamente por isso.
Mostra que a vontade política de perseguir o ex-presidente atravessou a fronteira do razoável e deixou de ser uma questão individual ou do futuro do Partido dos Trabalhadores nas eleições de 2018.
Gostem ou não seus inimigos, Lula confunde-se com a democratização e as conquistas de direitos da população pobre do país, a inclusão e o progresso social.
O esforço para atingir o ex-presidente, sem uma base jurídica consistente, representa um risco para as conquistas democráticas da sociedade. Trinta e cinco anos depois de ter sido preso por 40 dias durante a ditadura militar, acusado de desrespeitar a Lei de Segurança Nacional que proibia greves, a perseguição a Lula é uma tentativa óbvia de retrocesso político. 
Começando pela má qualidade da denúncia. As bases reais para essa investigação já tinham sido descartadas há dois meses pela procuradora original do caso, Mirella Aguiar.
Foi ela que acabou escalada para examinar um pacote de recortes de jornais e revistas sobre as viagens de Lula, entregue ao Ministério Público do Distrito Federal com o título oficial de Notícia de Fato. Claro que era possível ler insinuações cabeludíssimas naquele papelório. Segundo a Época, citando procuradores mantidos em conveniente anonimato, "as relações de Lula com a construtora, o banco e os chefes de Estado podem ser enquadradas, 'a princípio', em artigos do Código Penal. 'Considerando que as obras são custeadas, em parte, direta ou indiretamente, por recursos do BNDES, caso se comprove que [...] Lula também buscou interferir em atos práticos pelo presidente do mencionado banco (Luciano Coutinho), poder-se-á, em tese, configurar o tipo penal do artigo 332 do Código Penal (tráfico de influência)', diz trecho da peça reproduzido." 
Num despacho assinado em 18 de maio, a procuradora Mirella de Aguiar deixou claro que o calhamaço chamado Notícia de Fato não passava de um boato. Não continha fato algum. Resumindo suas conclusões, ela escreveu com clareza:
"Os parcos elementos contidos nos autos - narrativas do representante e da imprensa desprovidos de suporte provatório suficiente - não autorizam a instauração de imediata investigação formal em desfavor do representado." 
Em português claro: não havia nada para se fazer com os "parcos elementos desprovidos de suporte provatório" a não ser esquecer o assunto. Mas o Judiciário não funciona assim - muito menos em casos de alta repercussão política. 
Pede cautela, precaução. Adora rever tudo mais uma vez, como já percebeu todo mundo que teve um caso na Justiça. Ninguém quer mandar para o arquivo um caso que pode ser desenterrado como escândalo, mais tarde.
Também há - vamos admitir - o fator circo.
Utilizando os meios de comunicação para amplificar a dimensão de suas investigações e ganhar prestígio social e mesmo força política, muitos procuradores se tornaram obrigados a honrar uma contrapartida. Precisam dar satisfação aos deuses que os glorificam. São particularmente sensíveis ao coro midiático, que classifica toda declaração de inocência como prova de impunidade. Isso, de uma forma ou de outra, assegura um ambiente político no interior da instituição, que pré-dispõe a pedir condenações pesadas. Não vamos esquecer: foi a partir do Ministério Público que a teoria do domínio do fato sem prova, foi introduzida na AP 470. 
É bom esclarecer que não acho que isso ocorreu com Mirella Aguiar. Ela despachou uma denúncia que recebeu, da forma que considerou mais adequada.
No Brasil de nossos dias, muitas denúncias até nascem de parcerias notórias entre jornalistas e procuradores interessados nos benefícios mútuos a partir de um escândalo. Quando se prova que não tinha o menor fundamento, denuncia-se a "pizza". Já leu Marco Zero, de Umberto Eco? Pode ser útil.
Tudo isso permite entender porque, no mesmo despacho em que assinalava a falta de "suporte probatório", Mirella Aguiar tenha dado um prazo de 90 dias para novas informações, com exigências que chamam atenção. Chegou a pedir que a Polícia Federal - que faz o registro de fronteiras - informasse todas as entradas e saídas de Lula desde que passou a faixa para Dilma Rousseff.
O prazo para uma nova decisão estava marcado para 17 de agosto. Quarenta dias antes, porém, num movimento que uma nota do Instituto Lula define como "irregular, intempestivo, injustificado," o procurador Valtan Timbó decidiu apresentar o pedido de abertura de inquérito. Não se sabe as consequências reais dessa iniciativa. Mas seu significado é claro. Se havia a possibilidade de Mirella ou outro procurador mandar arquivar o caso, o que seria totalmente coerente com o primeiro despacho, o pedido de abertura trava essa decisão. A partir de agora, as perguntas são outras. Você sabe muito bem aonde elas podem chegar, certo?
O ponto ridículo é investigar Lula, ex-presidente que tem um empenho reconhecido, dentro e fora do país, para ampliar o mercado para as empresas e produtos brasileiros no exterior. Deveria ser aplaudido e não criticado.
Só para ficar num caso conhecido, que envolve Lula, Dilma e a Odebrecht - o porto de Mariel, em Cuba. Foram anos de massacre. O que se vai dizer agora, depois que Washington e Havana reataram relações? Quem fez papel de bobo? Quem tentou atrapalhar um investimento que trouxe e trará benefícios econômicos e diplomáticos? 
Alô, provincianos: os estadistas da globalização fazem isso todo dia - Bill Clinton em primeiro lugar. É normal e benéfico. Só uma visão absurda de relações internacionais no século XXI pode enxergar que "em princípio" essa atividade pode ser enquadrada no Código Penal. Em princípio, meus amigos, toda pessoa é inocente até que se prove o contrário. 
A diplomacia brasileira ganhou um novo eixo no governo Lula, nos países fora do universo desenvolvido que se tornaram prioridade econômica direta. Fora do governo, é natural que Lula seja recebido com simpatia e até mais do que isso. Tem credibilidade para sugerir, propor, conversar. Não pode ser acusado de fazer uma diplomacia oportunista, pois sempre respeitou os países menos desenvolvidos e suas populações. Na condição inteiramente nova de ex-presidente, ele pratica uma continuidade com as prioridades construídas em seu governo. Prega o que fez. Como se aprende em todo curso de relações pública, o aval de uma personalidade admirada pode ser uma imensa alavanca para bons investimentos. A boa imagem de Lula é um trunfo para o Brasil e os brasileiros. 
A questão essencial se encontra nos " parcos elementos contidos nos autos," que não autorizam a instauração de imediato" de investigação formal" contra Lula, como escreveu Mirella. 
Lula, antes de mais nada, é um cidadão privado. Tem todo o direito de andar pelo mundo, dizer o que pensa, conversar, sugerir. Sua caneta não assina contratos pelo governo, não demite funcionários nem ministros. No mundo dos "parcos elementos", não há provas. O que se quer é construir uma narrativa em que tudo se insinua, nada se demonstra - e os meios de comunicação fazem sua parte. 

(Quanto a Valtan Timbó, seu passivo de 245 acusações de negligência, em denuncia formulada pelo Conselho Nacional do Ministério Público, era uma notícia a espera de um repórter. Ele foi citado numa reportagem do Globo sobre um escândalo sobre licitações no Tribunal de Contas da União. O jornal registra a "insatisfação de policiais" com o procurador que, para eles, "demorou demais em elaborar a denúncia." Conforme o jornal, a operação foi deflagrada em dezembro de 2004 mas apenas em maio de 2007 foi feita a denúncia, "sem nenhum ato adicional ao trabalho da PF." Em outro motivo de reclamação, Valtan Timbó levou nove meses para denunciar vândalos que depredaram o Itamaraty nos protestos de junho de 2013).