quinta-feira, 13 de setembro de 2018

Artigo: “Resistências e futuro da democracia”. Por Cândido Grzybowski


Neste ano deveríamos estar celebrando os 30 anos da Constituição de 1988, um marco histórico na transição da ditadura para bases mínimas de democracia no Brasil. Ao invés disto, estamos tentando resistir para que o pior não aconteça. Será que saberemos barrar a destruição democrática em curso desde o golpe parlamentar e a implantação do “pacote de reformas”? As eleições no próximo mês de outubro podem estancar o desmonte e nos permitir iniciar a reconstrução de um país devastado?
Não temos muita escolha, precisamos resistir e resistir. Mas que confusão nas nossas trincheiras cidadãs! Estamos em processo de campanha extremamente divididos. Quem nos une minimamente é o líder Lula e o “lulismo”, desde a prisão em Curitiba, acima de divisões, fragmentações e cacofonia de vozes do que já foi algo como a centro esquerda brasileira. Como era previsível, dada a conivência do Judiciário com o golpe, o TSE impugnou a candidatura do Lula. Agora, haja engenharia política para transferir as intenções de votar no ex-presidente em votos concretos na dupla Haddad-Manuela, uma real novidade nesse contexto. O fato é que, além de golpistas festejando o que sempre foi o seu objetivo maior, tirar Lula da eleição, temos pela frente a ameaça assumidamente autoritária, machista, contra direitos humanos, com discursos de intolerância e ódio, representada por Bolsonaro. Grande feito dos golpistas!
O fato é que o voto ainda é uma possibilidade ao alcance da mão para tentar estancar a sangria no que resta da nossa democracia desfigurada. Sabemos, porém, que a questão não é somente ter a possibilidade de ganhar a eleição majoritária para Presidente com alguém de perfil democrático e comprometido com uma agenda social mínima. Mesmo atropelada, a nossa democracia depende da correlação de forças no Congresso Nacional. Portanto, na eleição de deputados e senadores, de que nem estamos discutindo para valer, vai ser o lugar em que poderão se forjar algumas possibilidades ou marcharemos rapidamente para um Estado pós-democrático legal. Pelo andar da carruagem, mais que partidos, vão sair vitoriosas as bancadas do boi, da bala e da bíblia. Destruição, violência e fundamentalismo, tudo junto e misturado.
Diante disto, fico me perguntando por que não conseguimos transformar a nossa resistência no seio da sociedade civil em processo irresistível sobre a mídia, os partidos e os profissionais da política, no Congresso, no Executivo e no Judiciário. A pista que vejo é o que deixamos de fazer, uma vez concluída a transição de regime lá atrás, nas conjunturas melhores nestes 30 anos de Constituição de 1988. Diante daquelas adversidades todas dos anos de chumbo, nossa resistência cidadã e popular conseguiu provocar a transição da ditadura para a democracia. Chegamos a um “empate”, como o que Chico Mendes – assassinato exatamente em 1988 – vinha trilhando diante da destruição da Floresta Amazônica. O “empate” da cidadania brasileira se materializou na Constituição, na qual conseguimos muitos avanços em termos sociais, mas perdemos quase tudo na agenda de reformas estruturais (tributária, taxação de grandes fortunas, reforma agrária e urbana, etc). Claro, esse “1 x 1” no placar não era transformação, era um basta, uma resistência.
Assim, fomos perdendo protagonismo cidadão à medida em que os governos, bem ou mal, foram melhorando, sobretudo nos 13 anos sob a gestão dos petistas. Por sinal, até recuperamos a auto-estima, com mais empregos, salário mínimo e economia crescendo, ações afirmativas, maior protagonismo externo como nação com UNASUL, BRICS e relações Sul-Sul. Tivemos aquele festival cidadão das Conferências Nacionais. Por que isto tudo não se converteu em força política? Minha hipótese analítica e de ativista é que nos acomodamos e perdemos a garra de lutar por mais e mais direitos. Resultado: estamos perdendo tudo o que conquistamos e na miséria escancarada nas ruas se refletem as monumentais perdas para a cidadania e a sociedade brasileira em apenas dois aninhos. Mas que aninhos!
As eleições podem reverter isto? Podem estancar se – e bota “se” nisto – alguma coalizão de forças políticas minimamente comprometidas com uma agenda de direitos sociais de cidadania, de igualdade na diversidade, para todas e todos, conseguir convencer eleitoras e eleitores e ganhar as eleições. O problema é que nem existe tal “agenda comum” entre os que se apresentam nas eleições como candidatos socialmente comprometidos. E o pior é que tal agenda mínima precisa ser consensuada antes entre nós mesmos, a extremamente diversa, desarticulada e frágil cidadania ativa. Afinal, constituintes e instituintes das democracias são as cidadãs e os cidadãos, não os partidos, os representantes eleitos ou as corporações, como os juízes e os militares.
Assim, estamos resistindo na mais completa incerteza sobre o amanhã, pior, na falta de uma utopia mobilizadora de um futuro melhor como possibilidade, nem que seja lá longe. De toda forma, independentemente do resultado eleitoral e da nova correlação de forças políticas daí resultante, nossa resistência não pode acabar nas eleições. Desde aqui e agora precisamos reconstruir e fortalecer no seio da sociedade civil o protagonismo cidadão, capaz de empurrar o Estado e a economia para uma democracia ecossocial fortalecida. Tarefa difícil, que exige paciência e determinação. Trata-se de transformar a nossa condição de igualdade na diversidade em motor da democracia. Somos muitas e muitos, em territórios de cidadania muito diferentes e, ao seu modo, ameaçados. Precisamos encontrar os fios invisíveis da imaginação e motivação que transformam número em força ecossocial da cidadania, em “bloco” de vontade coletiva histórica capaz de avançar e vencer na avenida da democracia. Tarefa de ontem, mas que podemos dar conta hoje e amanhã se nos engajarmos firmemente, com a certeza de que o futuro está por ser feito, de que é uma disputa, e que nada está perdido ou ganho definitivamente. Porém, primeiro, é preciso fortalecer nossas trincheiras cidadãs de resistência por uma democracia capaz de transformar essa situação.

segunda-feira, 20 de agosto de 2018

“Autocrítica e a política brasileira”. Por Ted Goertzel


Um dos provérbios maoísta é: “com a arma da crítica e da autocrítica, podemos nos livrar de um estilo ruim e manter o bem”. Embora o maoísmo não seja forte entre a esquerda brasileira hoje, há uma certa consciência da necessidade de autocrítica em todo o espectro. Guilherme Boulos, candidato do PSOL, falou: “O sistema político precisa de autocrítica, reconhecer o quanto se afastou das pessoas. No caso da esquerda brasileira também. Reconhecer erros não é demérito para ninguém. Deixar de reconhecer é um problema, porque voltam.” Marina Silva, da Rede, disse: “Para que a gente não esteja colocando vinho novo em odre velho é preciso que se faça uma profunda autocrítica, coisa que eu não vejo na maioria desses partidos.”
O reconhecimento da necessidade de autocrítica é bem-vindo, mas, até onde sei, nenhum desses líderes ainda o empreendeu, pelo menos publicamente. Tampouco os líderes do PT ou dos partidos do centro ou direita. O PT ocupou a presidência por treze anos que terminaram em 2016, que dá uma responsabilidade especial para autocriticar seu desempenho no cargo. Neste artigo, faço algumas sugestões sobre esse processo.
Quando o PT foi fundado, em 1980, era uma rara exceção à rigidez ideológica e à esclerose organizacional da esquerda global. Foi progressista, pluralista e humanista em ideologia e democrático em organização. Realizou eleições internas honestas contestadas por facções bem definidas. Seu líder carismático havia se levantado da pobreza abjeta para se tornar um habilidoso sindicalista que superou a ditadura militar na década de 1970. Quando Lula foi eleito presidente do Brasil em 2003, o futuro parecia brilhante. Parecia ainda mais brilhante quando ele passou a faixa presidencial para sua chefe de equipe em 2011. Barack Obama observou: “Eu amo esse cara. Ele é o político mais popular da terra.” O fracasso do partido em cumprir muitas dessas promessas tem sido uma grande decepção, não apenas para os brasileiros, mas para esquerdistas progressistas em todo o mundo.
Desde 2014 tem sido um desastre após o outro. A economia está em frangalhos, Dilma Rousseff foi afastada e Lula foi condenado à prisão por corrupção. O partido está em profunda oposição, denunciando o impeachment como um golpe de Estado e a condenação de Lula como perseguição política. É verdade que as denúncias usadas como base legal para o impeachment foram modestas, mas foram feitas constitucionalmente e foram fortemente apoiadas pelo público. É preciso admitir que condenação de Lula foi rigorosamente revisada por quatro juízes bastante profissionais e suas denúncias foram comprovadas por muitos funcionários responsáveis. Como disse Marina Silva, “Os autos foram devidamente trabalhados, com todo rigor que é necessário para um julgamento dessa magnitude. Os advogados do presidente Lula com certeza são muito bem pagos e competentes, todas as instâncias foram acionadas para assegurar a ele o mais amplo direito de defesa”.
Não é preciso ser psicanalista, como Guilherme Boulos, para reconhecer a negação como mecanismo de defesa. É hora de desistir da negação e fazer uma autocrítica honesta. Os partidários de Lula retratam sua prisão como a repressão de um herói da classe trabalhadora por uma elite voraz e exploradora. Mas qualquer autocrítica teria que reconhecer que o PT está intimamente envolvido com essa mesma elite há anos. E os promotores da Lava Jato têm processado muitos poderosos políticos conservadores e oligarcas de negócios afiliados a outros partidos, incluindo o magnata mais rico do Brasil, Eike Batista, e o ex-governador do estado do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral. Eduardo Cunha foi preso pela Polícia Federal. Aécio Neves está sob investigação por corrupção. É falso retratar as rigorosas investigações e processos anticorrupção como uma campanha contra o PT ou a esquerda. Eles são um corretivo muito necessário para a corrupção generalizada que é uma tradição brasileira que se tornou ainda mais flagrante e difundida nos governos do Partido dos Trabalhadores.
Uma autocrítica honesta teria que reconhecer que o fracasso do projeto socialista democrático do partido estava atolado em pensamentos ilusórios (wishful thinking), soberba (hubris), oportunismo e cinismo. Talvez uma vez terminada a eleição, Guilherme Boulos possa nos dar mais informações sobre esses e outros mecanismos de defesa. Na minha opinião, os pensamentos ilusórios (wishful thinking) incluía acreditar que os brasileiros estavam prontos para substituir a economia de mercado e a democracia eleitoral pela democracia participativa e por um projeto econômico alternativo mal definido. Os líderes mais realistas do partido aprenderam esta lição assim que começaram a assumir responsabilidades no nível estadual e local. Quando o partido, surpreendentemente, venceu a prefeitura de São Paulo em 1988, os líderes descobriram que não podiam administrar a enorme metrópole sem incluir todos os interessados, especialmente a comunidade empresarial. Os políticos profissionais do partido aceitaram isso e muitos passaram a ser líderes urbanos e estatais eficazes. Mas a retórica não mudou. O partido pregou a transformação revolucionária e praticou o pragmatismo liberal. Como resultado, o partido perdeu o apoio entusiástico de muitos dos idealistas que o tornaram tão distinto, alguns dos quais levaram seus pensamentos ilusórios (wishful thinking) a partidos como o PSOL.
Como presidente, a soberba de Lula incluiu o orgulho de ter transformado dramaticamente a economia brasileira quando o que ele realmente fez foi reforçar o modelo econômico “neoliberal” de seu antecessor. A soberba de Dilma Rousseff era acreditar que o sucesso do Brasil em administrar a crise global de 2008 com gastos pesados de estímulo significava que ela havia revogado as leis da economia e poderia gastar com o abandono. O oportunismo do partido significava expandir o já inchado serviço público para fornecer empregos bem remunerados aos militantes do partido. Oportunismo significava aliar-se a partidos conservadores e clientelistas para compartilhar o patrocínio em vez de se unir ao melhor dos social-democratas para realizar as reformas necessárias. Oportunismo significava culpar os “neoliberais” pelos fracassos, em vez de assumir a responsabilidade de não implementar políticas realistas. O grupo de liderança de Lula acreditava cinicamente que o Congresso brasileiro era tão desesperado que a única maneira de aprovar a legislação necessária era simplesmente comprar votos.
Uma autocrítica honesta admitiria que, em vez de manter sua promessa de acabar com a corrupção, o PT a institucionalizou como uma ferramenta fundamental de sua máquina política. Em um país com legislatura e população menos cínicos, Lula teria sofrido impeachment quando o mensalão foi descoberto durante seu primeiro mandato. Se ele tivesse aceitado o slogan de Harry Truman “the buck stops here”, ele teria aceitado a responsabilidade pelas ações de seus representantes. Mas ele passou a culpa para José Dirceu. Uma autocrítica honesta significaria parar de fingir que Lula não sabia o que estava acontecendo com o mensalão.
Se o Partido dos Trabalhadores, que sempre afirmou ser honesto e transparente, era sistematicamente corrupto com impunidade, quem se surpreende com o fato de seus aliados e parceiros terem roubado alguns milhões de reais aqui e ali? Lula se gabou da honestidade de seu governo e afirmou que o aumento dos escândalos acabou provando que eles estavam cavando a sujeira. O PT merece crédito por continuar fortalecendo e profissionalizando a polícia federal e o judiciário, processo iniciado por Fernando Henrique. Imagine o choque deles quando foram investigados, indiciados e condenados pela polícia, promotores e juízes, muitos dos quais haviam colocado no poder.
Autocrítica significa reconhecer o fracasso do partido em fazer as alianças políticas necessárias para aprovar as reformas necessárias para romper as persistentes restrições econômicas do Brasil. Essas reformas incluem a reforma previdenciária e cortes de gastos que são especialmente difíceis para o PT, com sua forte base entre funcionários públicos. O fracasso persistente da maioria dessas reformas, tanto de Cardoso quanto de Lula e Dilma, mostra que elas não podem ser feitas apenas por um lado. Em vez de culpar um ao outro pelo fracasso, o PT e o PSDB precisam trabalhar juntos, junto com o maior número possível de aliados. Lula e o PT não parece prontos para isso, mesmo que ele seja capaz de concorrer às eleições. Em vez de usar seu grande prestígio e credibilidade para ajudar o país a enfrentar realidades dolorosas, Lula está se entregando a teorias conspiratórias, como culpar os americanos pela corrupção na Petrobras, sem qualquer evidência. O papel de Lula como ex-presidente contrasta desfavoravelmente com o de Fernando Henrique Cardoso. Como nota Marina Silva, Cardoso é excepcional entre os políticos brasileiros por fazer um sério esforço de crítica ao seu próprio partido. Infelizmente, porém, seus esforços não foram levados a sério por outros líderes do PSDB.
Se Lula e FHC se unissem para liderar seus partidos na autocrítica, isso poderia levar a uma mudança real na cultura política brasileira. Eles trabalharam juntos contra o regime militar: é um desejo ilusório esperar que eles poderiam trabalhar juntos contra a ameaça de Bolsonaro? Se Lula fosse visto como fazendo um esforço honesto para enfrentar os defeitos da cultura política brasileira, incluindo o PT como um dos principais participantes, seria um passo real rumo a um novo começo para o Brasil. Os brasileiros de todos os partidos precisam lutar contra os pensamentos ilusórios (wishful thinking), a soberba, o cinismo e o oportunismo.

Ted Goertzel, professor emérito de Sociologia na Universidade Rutgers, em New Jersey, Estados Unidos, e autor de biografias de FHC e Lula, em artigo publicado por Revista Espaço Acadêmico