Neste
ano deveríamos estar celebrando os 30 anos da Constituição de 1988, um marco
histórico na transição da ditadura para bases mínimas de democracia no Brasil.
Ao invés disto, estamos tentando resistir para que o pior não aconteça. Será
que saberemos barrar a destruição democrática em curso desde o golpe
parlamentar e a implantação do “pacote de reformas”? As eleições no próximo mês
de outubro podem estancar o desmonte e nos permitir iniciar a reconstrução de
um país devastado?
Não
temos muita escolha, precisamos resistir e resistir. Mas que confusão nas
nossas trincheiras cidadãs! Estamos em processo de campanha extremamente
divididos. Quem nos une minimamente é o líder Lula e o “lulismo”, desde a
prisão em Curitiba, acima de divisões, fragmentações e cacofonia de vozes do
que já foi algo como a centro esquerda brasileira. Como era previsível, dada a
conivência do Judiciário com o golpe, o TSE impugnou a candidatura do Lula.
Agora, haja engenharia política para transferir as intenções de votar no
ex-presidente em votos concretos na dupla Haddad-Manuela, uma real novidade
nesse contexto. O fato é que, além de golpistas festejando o que sempre foi o
seu objetivo maior, tirar Lula da eleição, temos pela frente a ameaça
assumidamente autoritária, machista, contra direitos humanos, com discursos de
intolerância e ódio, representada por Bolsonaro. Grande feito dos golpistas!
O
fato é que o voto ainda é uma possibilidade ao alcance da mão para tentar estancar
a sangria no que resta da nossa democracia desfigurada. Sabemos, porém, que a
questão não é somente ter a possibilidade de ganhar a eleição majoritária para
Presidente com alguém de perfil democrático e comprometido com uma agenda
social mínima. Mesmo atropelada, a nossa democracia depende da correlação de
forças no Congresso Nacional. Portanto, na eleição de deputados e senadores, de
que nem estamos discutindo para valer, vai ser o lugar em que poderão se forjar
algumas possibilidades ou marcharemos rapidamente para um Estado
pós-democrático legal. Pelo andar da carruagem, mais que partidos, vão sair
vitoriosas as bancadas do boi, da bala e da bíblia. Destruição, violência e
fundamentalismo, tudo junto e misturado.
Diante
disto, fico me perguntando por que não conseguimos transformar a nossa
resistência no seio da sociedade civil em processo irresistível sobre a mídia,
os partidos e os profissionais da política, no Congresso, no Executivo e no
Judiciário. A pista que vejo é o que deixamos de fazer, uma vez concluída a
transição de regime lá atrás, nas conjunturas melhores nestes 30 anos de
Constituição de 1988. Diante daquelas adversidades todas dos anos de chumbo,
nossa resistência cidadã e popular conseguiu provocar a transição da ditadura
para a democracia. Chegamos a um “empate”, como o que Chico Mendes –
assassinato exatamente em 1988 – vinha trilhando diante da destruição da
Floresta Amazônica. O “empate” da cidadania brasileira se materializou na
Constituição, na qual conseguimos muitos avanços em termos sociais, mas
perdemos quase tudo na agenda de reformas estruturais (tributária, taxação de
grandes fortunas, reforma agrária e urbana, etc). Claro, esse “1 x 1” no placar
não era transformação, era um basta, uma resistência.
Assim,
fomos perdendo protagonismo cidadão à medida em que os governos, bem ou mal,
foram melhorando, sobretudo nos 13 anos sob a gestão dos petistas. Por sinal,
até recuperamos a auto-estima, com mais empregos, salário mínimo e economia
crescendo, ações afirmativas, maior protagonismo externo como nação com UNASUL,
BRICS e relações Sul-Sul. Tivemos aquele festival cidadão das Conferências
Nacionais. Por que isto tudo não se converteu em força política? Minha hipótese
analítica e de ativista é que nos acomodamos e perdemos a garra de lutar por
mais e mais direitos. Resultado: estamos perdendo tudo o que conquistamos e na
miséria escancarada nas ruas se refletem as monumentais perdas para a cidadania
e a sociedade brasileira em apenas dois aninhos. Mas que aninhos!
As
eleições podem reverter isto? Podem estancar se – e bota “se” nisto – alguma
coalizão de forças políticas minimamente comprometidas com uma agenda de
direitos sociais de cidadania, de igualdade na diversidade, para todas e todos,
conseguir convencer eleitoras e eleitores e ganhar as eleições. O problema é
que nem existe tal “agenda comum” entre os que se apresentam nas eleições como
candidatos socialmente comprometidos. E o pior é que tal agenda mínima precisa
ser consensuada antes entre nós mesmos, a extremamente diversa, desarticulada e
frágil cidadania ativa. Afinal, constituintes e instituintes das democracias
são as cidadãs e os cidadãos, não os partidos, os representantes eleitos ou as
corporações, como os juízes e os militares.
Assim,
estamos resistindo na mais completa incerteza sobre o amanhã, pior, na falta de
uma utopia mobilizadora de um futuro melhor como possibilidade, nem que seja lá
longe. De toda forma, independentemente do resultado eleitoral e da nova
correlação de forças políticas daí resultante, nossa resistência não pode
acabar nas eleições. Desde aqui e agora precisamos reconstruir e fortalecer no
seio da sociedade civil o protagonismo cidadão, capaz de empurrar o Estado e a
economia para uma democracia ecossocial fortalecida. Tarefa difícil, que exige
paciência e determinação. Trata-se de transformar a nossa condição de igualdade
na diversidade em motor da democracia. Somos muitas e muitos, em territórios de
cidadania muito diferentes e, ao seu modo, ameaçados. Precisamos encontrar os
fios invisíveis da imaginação e motivação que transformam número em força
ecossocial da cidadania, em “bloco” de vontade coletiva histórica capaz de
avançar e vencer na avenida da democracia. Tarefa de ontem, mas que podemos dar
conta hoje e amanhã se nos engajarmos firmemente, com a certeza de que o futuro
está por ser feito, de que é uma disputa, e que nada está perdido ou ganho
definitivamente. Porém, primeiro, é preciso fortalecer nossas trincheiras
cidadãs de resistência por uma democracia capaz de transformar essa situação.
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