Ao adotar o discurso da 'austeridade', o governo abdicou de uma base
social e parlamentar de caráter programático e partiu para uma sustentação
fisiológica.
Nas "Vinhas da Ira", John Steinbeck, numa das páginas
mais brilhantes da sua melhor literatura, inicia um capítulo daquele romance
com uma frase que se encravou na minha memória. Foi algo como "as terras
do oeste se agitavam como cavalos antes do temporal". Não sei se foi,
literalmente, isso que Steinbeck escreveu, mas o sentido foi esse.
Era a crise de 29, a depressão que penetrava na vida cotidiana de cada um do
povo e se transformava em movimentos caudalosos de sobrevivência e de luta.
No mesmo capítulo ele narra como o "eu" - o indivíduo isolado
nos acampamentos noturnos durante as noites frias - passa a ser o
"nós", e assim ele começa a dividir o pão, o cobertor, a desgraça e a
flama da rebeldia. O "eu" se transforma em "nós" e o fogo,
que aquece uma família expulsa da terra, passa a aquecer a todos e dá calor a
novas identidades: as vítimas passam a ser sujeitos.
Lembro as "Vinhas da Ira" para falar sobre a dispersão
política que causou, no campo democrático e progressista - especialmente entre
as forças de esquerda e de centro-esquerda - as medidas de
"austeridade", orçamentárias e fiscais do Governo Federal e suas
severas consequências nas lutas travadas pelos movimentos sociais há
muitas décadas no Brasil.
São consequências, tanto no debate político em geral e na ação
parlamentar dos partidos do campo de apoio ao Governo, como na oposição
parlamentar, pois ao adotar o discurso da "austeridade", que
gera desemprego imediato (prejudica, portanto, a expansão da
indústria e a geração de renda), que reduz os gastos públicos em áreas críticas
(que refletem diretamente no bem-estar dos assalariados e nas políticas de
proteção), que aumenta as desigualdades sociais e regionais (num país já desigual e com renda concentrada) -ao
adotar esta prática e este discurso- o Governo abdicou de uma base social e
parlamentar de caráter programático e partiu para uma sustentação
tradicionalista e fisiológica do Governo.
As consequências políticas deste processo não se fizerem esperar: em
todo o país "as terras do oeste se agitaram como cavalos antes do
temporal". Sem qualquer tutela centralizada por direções partidárias, os movimentos
sociais, intelectualidade acadêmica e não acadêmica, quadros políticos de
diversos partidos, lideranças da sociedade civil, grupos internos de partidos,
parlamentares do campo da esquerda, começaram a discutir a necessidade de uma
novaFrente Política. Uma Frente à esquerda, que, ao mesmo tempo que fosse
definidora de uma forte resistência aogolpismo e às ideologias
fascistas florescentes, promovesse uma discussão coerente com o sentido
emancipatória e democrático da esquerda, para o futuro.
O que agita os "cavalos antes do temporal", aqui, é a
ortodoxia para responder a mais uma crise e a insuficiência das respostas
tradicionais de esquerda, no plano mundial, chegando no nosso cenário político,
após o esgotamento do ciclo desenvolvimentista, que começou com a vitória de Lula em
2002.
Esse movimento partiu da ciência que o Governo Dilma esgota um
ciclo hegemonizado pelo petismo, no país, que, ao mesmo tempo que reestruturou
a nossa sociedade de classes pela via democrática - com um formidável movimento
deinclusão social - também levou a um impasse: a necessidade de atacar,
agora, as desigualdades sociais, que é o que efetivamente trava o
desenvolvimento do país e igualmente enfrentar o golpismo pela via
"suave", que já está em curso.
É um novo momento, que exige um novo programa econômico-social e fiscal,
apoiado por uma base social orgânica, capaz de dar sustentação, tanto nas ruas
como no Congresso, a um novo ciclo de reformas: taxação das grandes
movimentações financeiras para financiar a saúde em fundo vinculado, imposto
sobre as grandes heranças, progressividade do imposto de renda para taxar os mais ricos e
desonerar os trabalhadores e as classes médias,imposto sobre as grandes fortunas, retomada da reforma agrária, novas políticas de subsídio para promoção da soberania
alimentar, rebaixamento da taxa de juros para promover a retomada de
investimentos na indústria e melhorar o consumo... são alguns dos pontos, que
são apresentados por economistas e técnicos, que tem debatido esta nova frente,
nos diversos âmbitos em que a discussão se processa.
As distintas forças sociais e políticas que estão debatendo este assunto
- na própria horizontalidade que permitem as redes - não estão centralizadas
por um juízo positivo (ou negativo) sobre os governos do PT, nem estão
orientadas pela estratégia específica dos partidos políticos. Estes poderão
ter, ou não, um papel neste processo, quando se discutirem, mas adiante, os
embates eleitorais que virão. Aí os partidos "jogarão o seu jogo", de
acordo com as maiorias que se formarem no seu interior e seus interesses
eleitorais.
É importante perceber que estas discussões, que agora chegaram aos
partidos políticos, estão sendo realizadas principalmente fora do âmbito
decisório das suas direções e não constituem plataformas eleitorais atraentes,
porque o controle que a grande mídia exerce sobre a formação da
opinião (portanto, sobre as decisões de voto), tem convencido a maioria, que a
única forma de sair de uma crise é penalizando os mais débeis, economicamente,
e distribuindo os sacrifícios entre os mais pobres, característica, aliás, do
nosso sistema de tributos.
Vários manifestos, cartas, documentos econômicos, de diversas origens,
estão sendo publicados em todo o país, formando um novo caldo de cultura
política, que busca recuperar a densidade da esquerda para responder, tanto no
plano tático imediato à pauta reacionária e conservadora no Congresso, como na
composição de uma estratégia de futuro, ao sucateamento das empresas estatais
estratégicas como a Petrobrás, e à regressão das políticas públicas nas
áreas da saúde e educação, principalmente, que sempre são os alvos prediletos
das reformas ortodoxas e do ideário privatista neoliberal.
Lutemos, em todas as Frentes, para que este movimento prossiga, sem
hegemonismos e sem ilusões, porque o que ocorre, hoje, na Grécia não é um mero
incidente europeu, mas uma forma universal de controle do capital sobre o
futuro das nações e sobre o destino dos seus povos.
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