segunda-feira, 6 de julho de 2015

Dize-me o que escutas e eu te direi quem és. De Danilo Cymrot*

A Lei de Drogas brasileira (Lei 11.343/2006), no parágrafo 2º de seu artigo 28, oferece alguns critérios para se diferenciar o usuário do traficante, prescrevendo que, para determinar se a droga destinava-se a consumo pessoal, “o juiz atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente”. A diferenciação é importantíssima, tendo em vista que o uso é apenado com advertência, prestação de serviços à comunidade ou medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo (artigo 28), enquanto o tráfico é apenado com até 15 anos de reclusão (artigo 33).
Dado que a lei não estipula uma quantia determinada de droga para caracterizar o tráfico, o juiz goza de uma margem grande de discricionariedade para tipificar a conduta e, consequentemente, definir o destino do réu. A criminologia crítica aponta que a origem social e a cor de pele acabam tendo peso considerável na seletividade da política de drogas, grande responsável pelo encarceramento em massa no Brasil. 
Segundo dados do Ministério da Justiça, em 2006, ano em que foi promulgada a Lei 11.343, havia 31.520 presos por tráfico nos presídios brasileiros. Em junho de 2013, eram 138.366, representando um aumento de 339%. Nesse mesmo período, o aumento só foi maior no número de presos por tráfico internacional de drogas (446,3%). Os presos por tráfico de drogas superam os de todos outros crimes no país. Em 2014 eram 25% do total de presos homens e 63% das presas mulheres.
O Núcleo de Estudos da Violência da USP estudou 667 autos de prisão em flagrante de tráfico de drogas na cidade de São Paulo, de novembro de 2010 a janeiro de 2011. Em 33,08% das ocorrências não foi apreendido dinheiro junto ao acusado, em 74% o policial foi a única testemunha, em 47,9% a droga não estava acondicionada com a pessoa presa, em 30,6% o suspeito alegou ser usuário, em 1,8% foi mencionada relação do preso com organização criminosa, 57,28% dos presos não possuíam antecedentes criminais e 62,13% da quantidade de droga apreendida por ocorrência não ultrapassou 100 gramas.
No entanto, 91% dos presos julgados foram condenados por tráfico, 6% dos casos foram desclassificados para uso e em apenas 3% houve absolvição. Em 100% dos flagrantes os presos foram enquadrados pela polícia como traficantes. O estudo mostrou que 53,82% dos presos por tráfico tinham de 18 a 24 anos, 45,87% eram negros, 60,46% tinham apenas o primeiro grau completo e 60,85% foram defendidos pela Defensoria Pública.
A violência do conflito armado entre facções criminosas pelo controle do tráfico e entre as facções e a polícia, motivado pela criminalização do comércio de drogas, é refletida na produção cultural das periferias e favelas, em um gênero de funk apelidado de “proibidão”, em que o poderio bélico das facções é enaltecido, assim como a morte dos inimigos e afirma-se o código de conduta, o chamado proceder. 
A crônica social da população mais criminalizada - jovens negros e pobres das periferias e favelas - no entanto, não só é por si só criminalizada pelo artigo 287 do Código Penal, que tipifica o crime de apologia ao crime, como é utilizada para ajudar a legitimar a condenação do público do “proibidão” como traficante e não como usuário de drogas. O artigo 239 do Código de Processo Penal considera indício “a circunstância conhecida e provada, que, tendo relação com o fato, autorize, por indução, concluir-se a existência de outra ou outras circunstâncias”. O fato de o réu escutar “proibidão” é levado em conta em decisões judiciais como mais um dos indícios da traficância e de seu pertencimento a uma facção criminosa.
Na Apelação 2006.050.06047, julgada em 2007 pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, a desembargadora relatora do Acórdão sustenta que a autoria do crime de tráfico pelo réu “evidencia-se das declarações dos policiais responsáveis pela prisão, que o prenderam em local conhecido como boca-de-fumo, sentado em um banco, tendo entre seus pés o saco contendo a droga, ouvindo, ainda, CD de música de apologia ao narcotráfico”. A desembargadora afasta a pretendida desclassificação para o crime de uso, pois, segundo seu entendimento, “denota-se das circunstâncias da prisão, do local, da forma como a droga estava acondicionada e de sua quantidade, destinava-se ao tráfico ilícito”.
Na Apelação 0006848-37.2011.8.19.0026, que trata de um caso de ato infracional de um menor de idade análogo ao crime de tráfico de entorpecente e que foi julgada em 2012 pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, o desembargador relator afirma: “para lastrear um decreto condenatório com base no art.33, da Lei 11343/06 não é necessário ter sido o agente flagrado no exato ato de mercancia, bastando, para tanto, que as evidências sobre o animus de traficar resulte do somatório das circunstâncias fáticas. Na hipótese dos autos, o conjunto probatório produzido é firme e seguro no sentido de proclamar o real envolvimento dos representados no delito de tráfico de entorpecentes”. O desembargador considera a medida de internação aplicada mais adequada diante das circunstâncias fáticas relacionadas ao envolvimento anterior do réu com o tráfico ilícito e prática de homicídio e menciona que o fato objeto da representação indica que o jovem portava “celular com música com apologia à notória facção criminosa (comando vermelho)”.
Já na Apelação 0031606-55.2009.8.26.0576, julgada em 2012 pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, o desembargador relator sustenta que a autoria e o tráfico ficaram comprovados, da seguinte forma: “diante do conjunto probatório formado, em especial da prova oral colhida, da denúncia anônima recebida, da quantidade de droga apreendida (422,33 g quatrocentos e vinte e dois gramas e trinta e três centigramas de maconha), da apreensão de quantia em dinheiro trocado, de uma folha de papel escrito ´PCC 1533 Zona Norte` e de uma folha de revista com a matéria ´Funk do PCC`, das circunstâncias que determinaram a prisão do apelante, bem como dos demais elementos de prova carreados aos autos, era mesmo de rigor a sua condenação pela prática do crime de tráfico ilícito de entorpecentes, não havendo que se falar em absolvição por insuficiência de provas, ou em desclassificação para o delito previsto no artigo 28 da Lei nº 11.343/06, até porque é plenamente aceitável, na jurisprudência pátria, a figura do usuário traficante, pois uma situação não exclui a outra.”
Independentemente de haver outros fatos que possam constituir provas sólidas do envolvimento desses réus com o crime de tráfico de drogas, é de se questionar a licitude e a legitimidade de um magistrado mencionar um gênero musical ouvido pelo réu para embasar a sua decisão condenatória. Se o fato de jovens escutarem “proibidão” não significa necessariamente que fazem apologia ao tráfico, significa muito menos que eles próprios são traficantes. Defender o contrário equivale a defender que o gosto por jogos de computador violentos é um indício que pode ajudar a justificar a condenação de um suspeito de homicídio.
Jovens podem sentir-se atraídos por “proibidões” pelo simples fato de viverem em uma cultura que glamoriza a violência e o marginal ou por se projetarem na figura idealizada de um bandido poderoso. Daí inferir que as pessoas praticam tudo aquilo que cantam é de uma ingenuidade ou de uma má fé ímpar. A necessidade de fazer referência ao tipo de música ouvida pelo réu para condená-lo pelo crime de tráfico só escancara a fragilidade do conjunto probatório, além de um preconceito gigantesco. Em uma sociedade que oferece o encarceramento de massa como política para a juventude pobre e negra, ouvir “música de traficante”, usar “roupa de traficante”, ser amigo de traficante, enfim, parecer traficante segundo os estereótipos construídos sobre o que seria um traficante, já é um empurrãozinho para a cadeia.




*Mestre e Doutor em Criminologia pela Faculdade de Direito da USP 

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