Ser
de esquerda ou de direita
Ser
de esquerda significa recusar a indiferença moral diante do sofrimento social.
Supõe entender que a dor alheia é expressão de falhas estruturais e escolhas
políticas
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Ser de esquerda
Ser de
esquerda ou de direita opera em camadas mais profundas que o plano consciente.
Muitos rejeitam rótulos, mas suas escolhas e prioridades revelam uma
orientação. O que define a posição não é a autodeclaração, mas o feixe de
pautas que se assume ou recusa: a visão sobre economia, Estado, desigualdade,
relações raciais, de gênero, sexualidade e religião. Nessas coordenadas residem
as verdadeiras identidades ideológicas.
Por
isso vale a máxima: conhece-te a ti mesmo. Muitos não se reconhecem como de
direita ou extrema-direita, mas, por hábito ou lealdades afetivas, assumem
posições alinhadas a esses campos. Essa cegueira política involuntária é um
sintoma elucidativo do nosso tempo, mostrando como convicções operam
silenciosamente.
“Ser de
esquerda” é uma sensibilidade política articulada em torno de pressupostos
fundamentais: a convicção de que a desigualdade é fruto de processos históricos
de exploração e arranjos de poder; a recusa em naturalizar o sofrimento social
evitável; e a crença de que Estado e sociedade devem ter um papel ativo na
correção dessas distorções, ampliando liberdades reais e construindo condições
para que cada indivíduo floresça. É uma tomada de posição que exige reflexão e
um olhar crítico sobre as engrenagens da vida comum.
A
esquerda parte da premissa de que a liberdade individual só se realiza
substantivamente quando condições materiais são garantidas. Enfatiza a
liberdade “positiva” (não apenas ausência de coerção, mas meios concretos para
agir). Igualdade de oportunidades é insuficiente frente a assimetrias
estruturais de poder e renda. A palavra-chave é justiça social, como
redistribuição racional e politicamente orientada dos recursos coletivos,
ecoando pensadores como John Rawls e Amartya Sen.
Historicamente,
a esquerda nasce como resposta às condições desumanizadoras da industrialização
e do capitalismo concorrencial. Seu impulso é imaginar arranjos sociais menos
predatórios, com controle democrático sobre as forças econômicas. Direitos
sociais e trabalhistas são conquistas civilizatórias de lutas coletivas.
Há
tensões internas na esquerda (reformistas vs. revolucionários,
social-democratas vs. marxistas, correntes identitárias vs. universalistas),
mas um fio condutor as atravessa: a convicção de que a ordem social é uma
construção histórica mutável e que a justiça exige enfrentar privilégios
cristalizados.
Ser de
esquerda significa recusar a indiferença moral diante do sofrimento social.
Supõe entender que a dor alheia é expressão de falhas estruturais e escolhas
políticas. É manter viva a convicção de que a política pode reduzir danos,
corrigir desigualdades e alargar as possibilidades humanas.
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Pautas comumente associadas à esquerda
# Redução
das desigualdades via políticas redistributivas e tributação progressiva; # fortalecimento
de serviços públicos universais (saúde, educação, assistência);
# direitos
trabalhistas e regulação contra a precarização;
# direitos
previdenciários que possibilitem uma vida digna na velhice;
# defesa
de minorias e grupos vulneráveis (antirracismo, igualdade de gênero, direitos
LGBTQIA+).
# Democratização
das instituições e participação popular;
# soberania
nacional e crítica a desigualdades globais;
# políticas
criminais orientadas por direitos humanos, crítica ao encarceramento em massa.
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Ser de direita
Da
perspectiva de esquerda, a direita revela uma preferência pela ordem,
propriedade e individualismo que raramente é inocente. Seu apelo à prudência e
às “instituições herdadas” ignora que muitas nasceram da exclusão e do
privilégio. A ideia de que a desigualdade é consequência natural da liberdade é
seu núcleo mais problemático: naturaliza a pobreza e a concentração de riqueza
como mérito, ignorando relações históricas de poder, racismos institucionais e
assimetrias estruturais.
O
ceticismo em relação ao Estado defende, na prática, o mercado como força
supostamente neutra. Mas o mercado distribui poder conforme interesses
privados. A narrativa da responsabilidade individual culpa os vulneráveis por
sua própria vulnerabilidade.
No
conservadorismo moral, as defesas da família “tradicional” e de valores
“imutáveis” operam como dispositivos de controle social para restringir
liberdades, especialmente de mulheres, pessoas LGBTQIA+ e minorias. Não são
leis naturais, mas construções culturais para preservar hierarquias. A retórica
conservadora protege um padrão de privilégio herdado, revestido de moralidade.
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A extrema direita exacerba essas tendências ao paroxismo: é a exacerbação do
pior.
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Seu nacionalismo é frequentemente performático e servil a interesses
estrangeiros.
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O ceticismo ao Estado degenera em culto ao líder carismático e autoritarismo
punitivo.
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Alimenta-se de inimigos imaginários (imigrantes, minorias, intelectuais) e vê o
pluralismo como ameaça.
>>
A mentira vira método de governo; o ódio, capital político.
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Naturaliza a violência simbólica e física, corroendo as bases da democracia.
Para a
esquerda, a direita define-se por uma disposição a aceitar, justificar ou
perpetuar sofrimento social evitável. Prioriza ordem sobre justiça, tradição
sobre igualdade, mercado sobre dignidade. Na extrema-direita, essa lógica
assume contornos sombrios: a desumanização torna-se o núcleo ativo de um
projeto político.
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Pautas comumente associadas à direita
# Economia
de mercado com intervenção estatal limitada e desregulamentação;
# centralidade
da propriedade privada e crítica a tributações progressivas;
# conservadorismo
moral e defesa de instituições tradicionais (família, religião).
# Ênfase
na autoridade, ordem pública e políticas de segurança punitivistas;
# ceticismo
quanto à ampliação de direitos sociais universais;
# meritocracia
como princípio estruturador, desconfiança de mudanças rápidas;
# privalização
de setores públicos e parcerias público-privadas.
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Pautas da extrema direita
# Pseudonacionalismo
agressivo e identitário, com construção de inimigos internos;
# autoritarismo
político, culto ao líder e ataques a instituições democráticas;
# militarização
da vida social e naturalização da violência política.
# Rejeição
aberta do pluralismo e demonização de dissidências;
# conservadorismo
moral extremo e uso instrumental da religião;
# populismo
reacionário e negacionismo científico;
# hostilidade
ativa a direitos humanos, legitimação de violência estatal e abusos policiais.
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Centro
“Não
sou de direita, nem de esquerda, sou de Centro”. Essa autodeclaração costuma
funcionar menos como posição e mais como estratégia para escamotear convicções
e evitar conflitos. A ideologia se manifesta no pré-reflexivo, na gramática
invisível que organiza o que percebemos como natural ou justo.
Muitos
autodeclarados centristas aceitam, como axioma, que a desigualdade é legítima
pelo mérito, veem o Estado como intruso e a iniciativa privada como virtude, e
reagem com desconfiança a políticas redistributivas. Essa visão não é neutra; é
uma atualização do liberalismo conservador hegemônico.
Em
sociedades onde o horizonte liberal-conservador se naturalizou, reforçá-lo
parece “bom senso”. A neutralidade só é possível para quem não se percebe
afetado pelas distorções da estrutura. O “centro” surge como zona retórica de
baixa fricção, uma blindagem contra o conflito.
Este
“centrismo” não corresponde a posições centrais sérias (como o
social-liberalismo). É um centrismo negativo, definido pela rejeição, uma
recusa em nomear uma visão de mundo. Na prática, costuma operar como válvula
cultural da direita: critica mais a esquerda, vota majoritariamente na
centro-direita ou direita, e reproduz o senso comum liberal-conservador.
A
crítica ao centrismo é uma exigência democrática: a transparência das posições
é vital. Em tempos de desigualdade extrema e avanço autoritário, o “nem-nem”
funciona como cumplicidade passiva. Quem se recusa a nomear seus valores não
está fora da política; apenas escolhe a proteção da aparência de neutralidade,
que é ela mesma uma escolha política.
A
pergunta crucial não é sobre o rótulo, mas: “Diante do mundo como ele é, qual
mundo você deseja ajudar a construir, e quais valores está disposto a assumir,
mesmo que isso implique enfrentar conflitos?”. Essa resposta, quando honesta,
nunca é neutra.
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Como a extrema direita transforma misoginia e
indisponibilidade afetiva em projeto político. Por Tainá Machado Vargas
Com
cada nova notícia de feminicídio destas semanas, a crueldade se
revela de modo ainda mais explícito. É nesse cenário que emerge a urgência de
enfrentar a dissolução dos afetos e de compreender o papel que o ressentimento
masculino desempenha hoje nas formas de relação emocional e sexual com
mulheres. A instabilidade dos vínculos, aliada à crescente politização da
feminilidade, acentua a corrosão presente em subculturas violentas de
masculinidade, onde gênero, desejo e status de poder se convertem em terrenos
de conflito permanentes.
Antes
de tudo, convém registrar que não se trata de enxergar esse tema com falsos moralismos. Ao contrário: o
culto aos moralismos e, sobretudo, a exploração política da masculinidade,
engessa o debate justamente por estar no cerne de um problema mal discutido.
Não é possível compreender a escalada da violência contra as mulheres sem
observar o ambiente ideológico e os fundamentos que sustentam a órbita dessa
dominância masculina, frequentemente reforçados por discursos identitários de
ódio às minorias e alimentados pelo neoliberalismo. Nesse sentido, é urgente
pensar como o campo afetivo e relacional vai sendo esvaziado à medida que
conquistas sociais importantes retrocedem.
Se, por
um lado, mulheres da geração Z são menos
conservadoras e
mais conscientes de políticas feministas, homens da mesma faixa – entre 18 e 30
anos – se mostram expressivamente mais conservadores. E essa dicotomia não se
restringe ao Brasil. A trend no TikTok das “esposas-troféu” e a celebração
da “energia feminina” por certos influenciadores são indícios de uma tentativa
discursiva de docilizar a autenticidade das mulheres para que cedam a um modelo
patriarcal mais palatável.
A
fantasia em torno do “homem provedor” que assume responsabilidades financeiras
evidencia, na verdade, uma profunda frustração de gênero. O modelo do provedor
é uma antiga farsa burguesa: insuficiente para sustentar qualquer padrão de
realização social amparado no salário mínimo. E é também uma fraude porque,
além de nada resolver, ainda cobra dívidas simbólicas: que recompensa, afinal,
se espera das mulheres que são troféus nessas equações?
A
precariedade e a terceirização atuais comprometem a formação de vínculos
saudáveis e convertem em concorrência espaços sociais já tensionados pela
autonomia feminina. Homens se ausentam; mulheres rejeitam espaços afetivos
contaminados por vínculos frágeis e apegos inseguros [boy sober]. A
indisponibilidade, associada a essas demandas relacionais, funciona como um
investimento psíquico enorme – e sua sustentação apenas aprofunda polarizações
tóxicas.
Aceleramos
a intimidade sem compromisso, sem envolvimento real – e isso, paradoxalmente,
emociona mais. Impacta mais. É viciante. Só que o rebote vem: ao evitarmos o
encontro verdadeiro e priorizarmos relações breves, enfraquecemos também a
própria capacidade de nos relacionarmos. Surge então uma regressividade
relacional: voltamos a formas infantis de demanda, intensificando a disputa
sexual como tentativa de validar alguma sensação de independência. Nesse ponto,
a disputa torna-se pura afirmação subjetiva. Todos querem ser desejados, mas
quase ninguém quer estar ali de fato.
A
indisponibilidade, entretanto, não é neutra. Ela é produto de um recalque que
sabota o desejo, empobrece o pulsar relacional e desmobiliza a resistência
afetiva – aquela força interna capaz de sustentar vínculos, elaborar conflitos
e acolher a vulnerabilidade do outro. As mulheres, por sua vez, continuam
exercendo o trabalho psíquico de sempre: regulam necessidades emocionais do
parceiro, administram altos e baixos de relações disfuncionais e recebem pouco
em troca – uma troca moldada pelas expectativas que ainda recaem sobre elas ao
se relacionarem com homens que replicam o conservadorismo herdado dos pais.
Quando
o tempo afetivo desaparece porque compete com o tempo do trabalho, a vida
social entra em colapso: não há oferta simbólica de conexão, apenas demandas
insaciáveis que comprometem a saúde mental. Nesse campo enfraquecido, torna-se
fácil confundir ou negligenciar expectativas femininas legítimas com o ideal
masculinista do “provedor-reformado”, encarnado na persona do “calvo do Campari”. Esses e outros
sujeitos naturalizam e exploram a violência como uma espécie de criptomoeda
sexual – seja na repetição de microviolências cotidianas, seja no ato sexual
violento (ou fora dele), entendido como tentativa de restaurar uma ordem
imaginária de dominância.
Um
modelo baseado na suposição objetificada de preferências femininas, e não na
intenção de entregar satisfação às parceiras – sustenta boa parte dessas
dinâmicas da extrema direita. Inúmeros conteúdos sobre “conquista” são
monetizados para homens, ensinando abordagens de humilhação e rebaixamento para
caber no desejo masculino sob demanda. A causa da rejeição nunca é tratada como
incompetência; ao contrário, culpa-se o caráter das mulheres que negam o
reconhecimento esperado. O que não conseguem ver ou despertar no outro
transforma-se em ódio e violência. Assim, o consentimento feminino permanece
sem expressão e converte-se em ressentimento masculino destrutivo quando
confrontado por elas.
Tudo
isso se articula como propaganda política extremista que tenta recuperar
valores patriarcais rejeitados pelas novas gerações: liderança autoritária,
tutela moral e controle da subjetividade feminina. No cenário político da
própria esquerda, observa-se uma heteronormatividade silenciosa que ainda
persiste nos espaços de representatividade – um impasse que há anos tentamos
administrar também dentro dos partidos e das pautas progressistas, bem como na
presente atuação parlamentar de mulheres
agredidas por colegas de plenário.
Essa
conjuntura retoma a questão central: o que alimenta a exasperação do ódio e a
violação do consentimento como parte da propaganda política da extrema direita?
Em muitos dos casos noticiados nas últimas semanas, chama atenção que o perfil
dos agressores seja cada vez mais composto por homens jovens – e isso não é
coincidência.
A
violência, portanto, não é apenas cultural ou simbólica: é econômica e
estrutural. Produzir desigualdade de gênero é assegurar o próprio funcionamento
interno do capitalismo. É impedir que conquistas sociais importantes se
convertam em novas possibilidades de desejo, de vida e de liberdade – e na
imposição de limites à exploração sobre corpos de mulheres agredidos,
violentados e mutilados.
A
extrema direita sabe disso e aposta na sustentação de crises, produzindo
refluxos antidemocráticos e modelos contraditórios de representatividade
feminina, como se evidencia na candidatura de Michele Bolsonaro. Apesar das
exceções, a disposição crítica das mulheres à democracia é uma aliança poderosa
– e ameaça o domínio conservador daqueles que historicamente administram
contradições à custa delas.
O
conservadorismo da extrema direita, por sua vez, oferece não apenas a promessa
da lei, mas da restauração de valores: busca reconciliar o âmbito doméstico com
papéis tradicionais de gênero e raça, sob a lógica da desigualdade. Nesse
cenário, a violência simbólica e relacional deixa de ser apenas sintoma:
torna-se ferramenta política autodirigida. Seus efeitos se infiltram também na
intimidade, onde o distanciamento afetivo reaparece como mecanismo de
autoproteção diante de vínculos esvaziados. É o hiper individualismo neoliberal
que apodrece fronteiras entre os gêneros, reativa papéis opostos e fragiliza
conquistas históricas em direção à igualdade de gênero.
O
desafio, portanto, é reconhecer que a disputa pelo desejo, pelo corpo e pela
afetividade não está separada da disputa pelo poder. Resistir a esse ciclo de
regressão exige reconstituir-se dos traumas e dos valores tradicionais – “Deus,
Pátria e Família” – bem como dos privilégios que limitam mulheres; não como
exceção estética ou moral, mas como horizonte político coletivo de dignidade
real, onde não nos matem.
Fonte:
Por Carlos Eduardo Araújo, em A Terra é Redonda/Le Monde

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