sábado, 13 de dezembro de 2025

Ser de esquerda ou de direita

Ser de esquerda significa recusar a indiferença moral diante do sofrimento social. Supõe entender que a dor alheia é expressão de falhas estruturais e escolhas políticas

<><> Ser de esquerda

Ser de esquerda ou de direita opera em camadas mais profundas que o plano consciente. Muitos rejeitam rótulos, mas suas escolhas e prioridades revelam uma orientação. O que define a posição não é a autodeclaração, mas o feixe de pautas que se assume ou recusa: a visão sobre economia, Estado, desigualdade, relações raciais, de gênero, sexualidade e religião. Nessas coordenadas residem as verdadeiras identidades ideológicas.

Por isso vale a máxima: conhece-te a ti mesmo. Muitos não se reconhecem como de direita ou extrema-direita, mas, por hábito ou lealdades afetivas, assumem posições alinhadas a esses campos. Essa cegueira política involuntária é um sintoma elucidativo do nosso tempo, mostrando como convicções operam silenciosamente.

“Ser de esquerda” é uma sensibilidade política articulada em torno de pressupostos fundamentais: a convicção de que a desigualdade é fruto de processos históricos de exploração e arranjos de poder; a recusa em naturalizar o sofrimento social evitável; e a crença de que Estado e sociedade devem ter um papel ativo na correção dessas distorções, ampliando liberdades reais e construindo condições para que cada indivíduo floresça. É uma tomada de posição que exige reflexão e um olhar crítico sobre as engrenagens da vida comum.

A esquerda parte da premissa de que a liberdade individual só se realiza substantivamente quando condições materiais são garantidas. Enfatiza a liberdade “positiva” (não apenas ausência de coerção, mas meios concretos para agir). Igualdade de oportunidades é insuficiente frente a assimetrias estruturais de poder e renda. A palavra-chave é justiça social, como redistribuição racional e politicamente orientada dos recursos coletivos, ecoando pensadores como John Rawls e Amartya Sen.

Historicamente, a esquerda nasce como resposta às condições desumanizadoras da industrialização e do capitalismo concorrencial. Seu impulso é imaginar arranjos sociais menos predatórios, com controle democrático sobre as forças econômicas. Direitos sociais e trabalhistas são conquistas civilizatórias de lutas coletivas.

Há tensões internas na esquerda (reformistas vs. revolucionários, social-democratas vs. marxistas, correntes identitárias vs. universalistas), mas um fio condutor as atravessa: a convicção de que a ordem social é uma construção histórica mutável e que a justiça exige enfrentar privilégios cristalizados.

Ser de esquerda significa recusar a indiferença moral diante do sofrimento social. Supõe entender que a dor alheia é expressão de falhas estruturais e escolhas políticas. É manter viva a convicção de que a política pode reduzir danos, corrigir desigualdades e alargar as possibilidades humanas.

<><> Pautas comumente associadas à esquerda

# Redução das desigualdades via políticas redistributivas e tributação progressiva; # fortalecimento de serviços públicos universais (saúde, educação, assistência);

# direitos trabalhistas e regulação contra a precarização;

# direitos previdenciários que possibilitem uma vida digna na velhice;

# defesa de minorias e grupos vulneráveis (antirracismo, igualdade de gênero, direitos LGBTQIA+).

# Democratização das instituições e participação popular;

# soberania nacional e crítica a desigualdades globais;

# políticas criminais orientadas por direitos humanos, crítica ao encarceramento em massa.

<><> Ser de direita

Da perspectiva de esquerda, a direita revela uma preferência pela ordem, propriedade e individualismo que raramente é inocente. Seu apelo à prudência e às “instituições herdadas” ignora que muitas nasceram da exclusão e do privilégio. A ideia de que a desigualdade é consequência natural da liberdade é seu núcleo mais problemático: naturaliza a pobreza e a concentração de riqueza como mérito, ignorando relações históricas de poder, racismos institucionais e assimetrias estruturais.

O ceticismo em relação ao Estado defende, na prática, o mercado como força supostamente neutra. Mas o mercado distribui poder conforme interesses privados. A narrativa da responsabilidade individual culpa os vulneráveis por sua própria vulnerabilidade.

No conservadorismo moral, as defesas da família “tradicional” e de valores “imutáveis” operam como dispositivos de controle social para restringir liberdades, especialmente de mulheres, pessoas LGBTQIA+ e minorias. Não são leis naturais, mas construções culturais para preservar hierarquias. A retórica conservadora protege um padrão de privilégio herdado, revestido de moralidade.

>> A extrema direita exacerba essas tendências ao paroxismo: é a exacerbação do pior.

<< Seu nacionalismo é frequentemente performático e servil a interesses estrangeiros.

>> O ceticismo ao Estado degenera em culto ao líder carismático e autoritarismo punitivo.

>> Alimenta-se de inimigos imaginários (imigrantes, minorias, intelectuais) e vê o pluralismo como ameaça.

>> A mentira vira método de governo; o ódio, capital político.

>> Naturaliza a violência simbólica e física, corroendo as bases da democracia.

Para a esquerda, a direita define-se por uma disposição a aceitar, justificar ou perpetuar sofrimento social evitável. Prioriza ordem sobre justiça, tradição sobre igualdade, mercado sobre dignidade. Na extrema-direita, essa lógica assume contornos sombrios: a desumanização torna-se o núcleo ativo de um projeto político.

<><> Pautas comumente associadas à direita

# Economia de mercado com intervenção estatal limitada e desregulamentação;

# centralidade da propriedade privada e crítica a tributações progressivas;

# conservadorismo moral e defesa de instituições tradicionais (família, religião).

# Ênfase na autoridade, ordem pública e políticas de segurança punitivistas;

# ceticismo quanto à ampliação de direitos sociais universais;

# meritocracia como princípio estruturador, desconfiança de mudanças rápidas;

# privalização de setores públicos e parcerias público-privadas.

<><> Pautas da extrema direita

# Pseudonacionalismo agressivo e identitário, com construção de inimigos internos;

# autoritarismo político, culto ao líder e ataques a instituições democráticas;

# militarização da vida social e naturalização da violência política.

# Rejeição aberta do pluralismo e demonização de dissidências;

# conservadorismo moral extremo e uso instrumental da religião;

# populismo reacionário e negacionismo científico;

# hostilidade ativa a direitos humanos, legitimação de violência estatal e abusos policiais.

<><> Centro

“Não sou de direita, nem de esquerda, sou de Centro”. Essa autodeclaração costuma funcionar menos como posição e mais como estratégia para escamotear convicções e evitar conflitos. A ideologia se manifesta no pré-reflexivo, na gramática invisível que organiza o que percebemos como natural ou justo.

Muitos autodeclarados centristas aceitam, como axioma, que a desigualdade é legítima pelo mérito, veem o Estado como intruso e a iniciativa privada como virtude, e reagem com desconfiança a políticas redistributivas. Essa visão não é neutra; é uma atualização do liberalismo conservador hegemônico.

Em sociedades onde o horizonte liberal-conservador se naturalizou, reforçá-lo parece “bom senso”. A neutralidade só é possível para quem não se percebe afetado pelas distorções da estrutura. O “centro” surge como zona retórica de baixa fricção, uma blindagem contra o conflito.

Este “centrismo” não corresponde a posições centrais sérias (como o social-liberalismo). É um centrismo negativo, definido pela rejeição, uma recusa em nomear uma visão de mundo. Na prática, costuma operar como válvula cultural da direita: critica mais a esquerda, vota majoritariamente na centro-direita ou direita, e reproduz o senso comum liberal-conservador.

A crítica ao centrismo é uma exigência democrática: a transparência das posições é vital. Em tempos de desigualdade extrema e avanço autoritário, o “nem-nem” funciona como cumplicidade passiva. Quem se recusa a nomear seus valores não está fora da política; apenas escolhe a proteção da aparência de neutralidade, que é ela mesma uma escolha política.

A pergunta crucial não é sobre o rótulo, mas: “Diante do mundo como ele é, qual mundo você deseja ajudar a construir, e quais valores está disposto a assumir, mesmo que isso implique enfrentar conflitos?”. Essa resposta, quando honesta, nunca é neutra.

¨      Como a extrema direita transforma misoginia e indisponibilidade afetiva em projeto político. Por Tainá Machado Vargas

Com cada nova notícia de feminicídio destas semanas, a crueldade se revela de modo ainda mais explícito. É nesse cenário que emerge a urgência de enfrentar a dissolução dos afetos e de compreender o papel que o ressentimento masculino desempenha hoje nas formas de relação emocional e sexual com mulheres. A instabilidade dos vínculos, aliada à crescente politização da feminilidade, acentua a corrosão presente em subculturas violentas de masculinidade, onde gênero, desejo e status de poder se convertem em terrenos de conflito permanentes.

Antes de tudo, convém registrar que não se trata de enxergar esse tema com falsos moralismos. Ao contrário: o culto aos moralismos e, sobretudo, a exploração política da masculinidade, engessa o debate justamente por estar no cerne de um problema mal discutido. Não é possível compreender a escalada da violência contra as mulheres sem observar o ambiente ideológico e os fundamentos que sustentam a órbita dessa dominância masculina, frequentemente reforçados por discursos identitários de ódio às minorias e alimentados pelo neoliberalismo. Nesse sentido, é urgente pensar como o campo afetivo e relacional vai sendo esvaziado à medida que conquistas sociais importantes retrocedem.

Se, por um lado, mulheres da geração Z são menos conservadoras e mais conscientes de políticas feministas, homens da mesma faixa – entre 18 e 30 anos – se mostram expressivamente mais conservadores. E essa dicotomia não se restringe ao Brasil. A trend no TikTok das “esposas-troféu” e a celebração da “energia feminina” por certos influenciadores são indícios de uma tentativa discursiva de docilizar a autenticidade das mulheres para que cedam a um modelo patriarcal mais palatável.

A fantasia em torno do “homem provedor” que assume responsabilidades financeiras evidencia, na verdade, uma profunda frustração de gênero. O modelo do provedor é uma antiga farsa burguesa: insuficiente para sustentar qualquer padrão de realização social amparado no salário mínimo. E é também uma fraude porque, além de nada resolver, ainda cobra dívidas simbólicas: que recompensa, afinal, se espera das mulheres que são troféus nessas equações?

A precariedade e a terceirização atuais comprometem a formação de vínculos saudáveis e convertem em concorrência espaços sociais já tensionados pela autonomia feminina. Homens se ausentam; mulheres rejeitam espaços afetivos contaminados por vínculos frágeis e apegos inseguros [boy sober]. A indisponibilidade, associada a essas demandas relacionais, funciona como um investimento psíquico enorme – e sua sustentação apenas aprofunda polarizações tóxicas.

Aceleramos a intimidade sem compromisso, sem envolvimento real – e isso, paradoxalmente, emociona mais. Impacta mais. É viciante. Só que o rebote vem: ao evitarmos o encontro verdadeiro e priorizarmos relações breves, enfraquecemos também a própria capacidade de nos relacionarmos. Surge então uma regressividade relacional: voltamos a formas infantis de demanda, intensificando a disputa sexual como tentativa de validar alguma sensação de independência. Nesse ponto, a disputa torna-se pura afirmação subjetiva. Todos querem ser desejados, mas quase ninguém quer estar ali de fato.

A indisponibilidade, entretanto, não é neutra. Ela é produto de um recalque que sabota o desejo, empobrece o pulsar relacional e desmobiliza a resistência afetiva – aquela força interna capaz de sustentar vínculos, elaborar conflitos e acolher a vulnerabilidade do outro. As mulheres, por sua vez, continuam exercendo o trabalho psíquico de sempre: regulam necessidades emocionais do parceiro, administram altos e baixos de relações disfuncionais e recebem pouco em troca – uma troca moldada pelas expectativas que ainda recaem sobre elas ao se relacionarem com homens que replicam o conservadorismo herdado dos pais.

Quando o tempo afetivo desaparece porque compete com o tempo do trabalho, a vida social entra em colapso: não há oferta simbólica de conexão, apenas demandas insaciáveis que comprometem a saúde mental. Nesse campo enfraquecido, torna-se fácil confundir ou negligenciar expectativas femininas legítimas com o ideal masculinista do “provedor-reformado”, encarnado na persona do “calvo do Campari”. Esses e outros sujeitos naturalizam e exploram a violência como uma espécie de criptomoeda sexual – seja na repetição de microviolências cotidianas, seja no ato sexual violento (ou fora dele), entendido como tentativa de restaurar uma ordem imaginária de dominância.

Um modelo baseado na suposição objetificada de preferências femininas, e não na intenção de entregar satisfação às parceiras – sustenta boa parte dessas dinâmicas da extrema direita. Inúmeros conteúdos sobre “conquista” são monetizados para homens, ensinando abordagens de humilhação e rebaixamento para caber no desejo masculino sob demanda. A causa da rejeição nunca é tratada como incompetência; ao contrário, culpa-se o caráter das mulheres que negam o reconhecimento esperado. O que não conseguem ver ou despertar no outro transforma-se em ódio e violência. Assim, o consentimento feminino permanece sem expressão e converte-se em ressentimento masculino destrutivo quando confrontado por elas.

Tudo isso se articula como propaganda política extremista que tenta recuperar valores patriarcais rejeitados pelas novas gerações: liderança autoritária, tutela moral e controle da subjetividade feminina. No cenário político da própria esquerda, observa-se uma heteronormatividade silenciosa que ainda persiste nos espaços de representatividade – um impasse que há anos tentamos administrar também dentro dos partidos e das pautas progressistas, bem como na presente atuação parlamentar de mulheres agredidas por colegas de plenário.

Essa conjuntura retoma a questão central: o que alimenta a exasperação do ódio e a violação do consentimento como parte da propaganda política da extrema direita? Em muitos dos casos noticiados nas últimas semanas, chama atenção que o perfil dos agressores seja cada vez mais composto por homens jovens – e isso não é coincidência.

A violência, portanto, não é apenas cultural ou simbólica: é econômica e estrutural. Produzir desigualdade de gênero é assegurar o próprio funcionamento interno do capitalismo. É impedir que conquistas sociais importantes se convertam em novas possibilidades de desejo, de vida e de liberdade – e na imposição de limites à exploração sobre corpos de mulheres agredidos, violentados e mutilados.

A extrema direita sabe disso e aposta na sustentação de crises, produzindo refluxos antidemocráticos e modelos contraditórios de representatividade feminina, como se evidencia na candidatura de Michele Bolsonaro. Apesar das exceções, a disposição crítica das mulheres à democracia é uma aliança poderosa – e ameaça o domínio conservador daqueles que historicamente administram contradições à custa delas.

O conservadorismo da extrema direita, por sua vez, oferece não apenas a promessa da lei, mas da restauração de valores: busca reconciliar o âmbito doméstico com papéis tradicionais de gênero e raça, sob a lógica da desigualdade. Nesse cenário, a violência simbólica e relacional deixa de ser apenas sintoma: torna-se ferramenta política autodirigida. Seus efeitos se infiltram também na intimidade, onde o distanciamento afetivo reaparece como mecanismo de autoproteção diante de vínculos esvaziados. É o hiper individualismo neoliberal que apodrece fronteiras entre os gêneros, reativa papéis opostos e fragiliza conquistas históricas em direção à igualdade de gênero.

O desafio, portanto, é reconhecer que a disputa pelo desejo, pelo corpo e pela afetividade não está separada da disputa pelo poder. Resistir a esse ciclo de regressão exige reconstituir-se dos traumas e dos valores tradicionais – “Deus, Pátria e Família” – bem como dos privilégios que limitam mulheres; não como exceção estética ou moral, mas como horizonte político coletivo de dignidade real, onde não nos matem.

 

Fonte: Por Carlos Eduardo Araújo, em A Terra é Redonda/Le Monde

 

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