Por
que a reforma econômica não conseguiu salvar o sistema soviético?
Já se
passaram cerca de três décadas e meia desde o colapso da União Soviética. Mas
seu passado continua a assombrar a esquerda, e sua experiência ajuda a definir
o “breve século XX”, de 1917 a 1989-91.
Entre
1917 e 1953, o território que hoje conhecemos como União Soviética passou por
uma sucessão de crises. A revolução e a guerra civil deram lugar a um período
de estabilidade sob a Nova Política Econômica, antes da experiência da
coletivização e industrialização, da repressão em massa e da invasão nazista
durante as décadas de 1930 e 1940. Após a vitória na guerra, houve uma nova
onda de repressão, à medida que Josef Stalin se tornava cada vez mais paranoico
nos últimos anos de seu governo.
Mas, ao
longo desse período, o país continuou avançando. Sob o regime de Stalin, como
afirmou Isaac Deutscher de forma memorável, a URSS fez a transição de “uma
Rússia que trabalhava com arado de madeira” para uma terra “equipada com armas
atômicas”. Depois disso, estabeleceu-se em um padrão de desenvolvimento mais
pacífico, tornando-a o principal inimigo do Ocidente na Guerra Fria.
Uma
nova geração de historiadores investiga seu passado. Yakov Feygin está entre
eles. Sua obra Building
a Ruin. The Cold War Politics of Soviet Economic Reform examina os tortuosos
debates econômicos que ocorreram após a morte de Stalin. No centro desses
debates, escreve Feygin, estava a busca por “um sistema econômico melhorado e
mais flexível” que pudesse começar a fornecer “tanto armas quanto bens de
consumo”.
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Políticas de produtividade
Feygin
se baseia em material de arquivo que não estava disponível para aqueles de nós
que tínhamos idade suficiente para observar alguns desses eventos à distância.
Ele também contextualiza a experiência soviética em um panorama muito mais
amplo. Building a Ruin utiliza a ideia de Charles Maier de que
os governos ocidentais responderam à crise internacional criada pela Revolução
Russa e às novas condições que se formaram após 1945 buscando uma “política de
produtividade” tecnocrática.
“Entre
1917 e 1953, o território que hoje conhecemos como União Soviética passou por
uma sucessão de crises.”
A
produtividade era o meio pelo qual os Estados podiam fortalecer-se para
competir entre si e proporcionar melhores padrões de vida aos seus cidadãos,
mitigando assim a ameaça do conflito de classes. Segundo Feygin, a liderança
soviética e seus conselheiros também internalizaram uma política de
produtividade, o que contribuiu para moldar os debates econômicos sobre o
funcionamento do sistema.
Tenho
duas críticas à análise de Feygin. A primeira é que os debates que ele descreve
eram frequentemente acompanhados de perto no Ocidente na época, apesar de
estarem parcialmente ocultos pelo véu do sigilo soviético. Mas há poucas
referências a essas análises contemporâneas.
A
segunda crítica, e a mais substancial, é que a análise de Feygin me parece
subestimar o impacto do mundo exterior sobre os desenvolvimentos internos da
URSS. Isso é uma pena, porque uma das mudanças interessantes nos trabalhos
recentes sobre a história da URSS e seus satélites tem sido explorar como eles
foram “integrados” à economia mundial e as diferentes formas que essa
integração assumiu.
Feygin
talvez considere isso uma crítica perversa, pois uma noção vaga do global
permeia sua narrativa. Independentemente do discurso sobre “socialismo em um só
país” ou sistemas diferentes, a liderança soviética tinha consciência de que
seu Estado existia em uma única economia mundial. O sucesso dependeria da
capacidade da URSS de mensurar e igualar os níveis de produtividade dos Estados
Unidos, da Europa Ocidental e (em determinado momento) do Japão. É fascinante
observar como Feygin traça os caminhos pelos quais as novas gerações de
economistas soviéticos se tornaram sensíveis ao acompanhamento dos (e à
tentativa de aprender com os) desenvolvimentos no Ocidente.
Contudo,
não há uma discussão real que relacione os desenvolvimentos soviéticos a
dinâmicas globais mais específicas. Não vemos, exceto incidentalmente, como
mudanças específicas no ambiente externo criaram dificuldades e, mais
raramente, oportunidades. Os principais marcos da Guerra Fria mal são
mencionados.
Criado
na década de 1930, o complexo militar-industrial soviético paira sombrio no
pano de fundo dessa narrativa. Feygin cita uma observação reveladora do
vice-diretor da Agência Central de Estatística: “Em assuntos militares,
costuma-se dizer que quem fica para trás está morto. O mesmo acontece na
economia, só que mais lentamente”. Contudo, ele não aprofunda essa tensão.
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O posicionamento das vírgulas
Ainda
há muitos pontos interessantes na abordagem de Feygin, sobretudo ao explorar
como diferentes gerações tentaram pensar em maneiras de aprimorar o sistema
soviético. Debates econômicos podiam facilmente descambar para debates
políticos, o que às vezes era perigoso para os participantes, embora Feygin
mantenha o foco em questões econômicas mais específicas.
Fundamentalmente,
ele não descarta abordagens mais conservadoras dentro desse campo. A maioria
dos economistas, gestores e líderes políticos envolvidos não estava satisfeita
com o status quo. Eles estavam divididos sobre se formas de mudança mais
radicais ou mais restritas representavam o melhor caminho a seguir. Mas ele vê
os participantes como pessoas inteligentes que, mesmo que estivessem sob a
influência do regime, ainda assim devem ser levadas a sério.
“Os
debates econômicos podiam facilmente descambar para debates políticos, o que
por vezes era perigoso para os participantes.”
Em
1985, a União Soviética tinha uma população de 285 milhões de habitantes, dos
quais 66% viviam em áreas urbanas. Possuía um arsenal nuclear formidável, além
de satélites no espaço e mais de cinco milhões de estudantes no ensino
superior. Dirigir esse sistema, apesar de todas as deficiências de seus
governantes, era uma tarefa que exigia certo talento. Observamos vislumbres de
um certo grau de respeito mútuo que se desenvolveu à medida que os ocidentais
se deparavam com seus homólogos soviéticos.
A
análise de Feygin sobre os argumentos econômicos acerca da natureza do sistema
soviético divide-se em quatro partes. Primeiramente, ele discute a criação do
sistema econômico stalinista, construído em torno do impulso para a
industrialização da economia e o desenvolvimento da indústria pesada e das
forças armadas.
As
preocupações pragmáticas predominavam. A teoria econômica era pouco mais do que
política racionalizada, baseada na vaga ideia da “lei do desenvolvimento
proporcional planejado” e em debates (como Feygin coloca) sobre “o
posicionamento das vírgulas no texto Problemas Econômicos do Socialismo
na URSS, de Stalin”.
A
industrialização exigia investimento e a supressão do consumo. Isso violava a
lógica de mercado e, se reduzíssemos a lei do valor à ideia restrita de
relações de mercado, significaria que essa lei aparentemente não se aplicava na
URSS.
Ou será
que sim? Nem a liderança nem os economistas da época conseguiam chegar a uma
conclusão. Com o tempo — em parte por influência do próprio Stalin —
inclinaram-se para o argumento de que talvez, afinal, tivesse se aplicado sim.
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Tirando o atraso
Asegunda
fase foi a dos anos de Nikita Khrushchev. Externamente, o principal concorrente
da URSS passou a ser os Estados Unidos. Houve também um novo grau de competição
interblocos, impulsionada pelos satélites da Europa Oriental, e os líderes
soviéticos vislumbraram oportunidades crescentes de influência nos países em
processo de descolonização.
A
competição global deslocou-se mais para a competição militar de alta tecnologia
e para uma competição econômica generalizada, com o objetivo de “alcançar e
ultrapassar” o Ocidente e vencer a batalha mais ampla por influência.
Internamente, a economia também cresceu em escala e complexidade, e a privação
dos anos stalinistas deu lugar a uma maior ênfase no consumo.
Abriu-se
uma oportunidade para a “economia” como disciplina, e os economistas
encontraram espaço em novas instituições. Começaram a debater a alocação de
recursos entre os ramos da economia, o papel das empresas e melhores maneiras
de adequar a oferta à demanda ou aumentar a eficiência e a qualidade da
produção.
“Os
líderes soviéticos tinham como objetivo manter o planejamento, ao mesmo tempo
que aprimoravam sua execução, utilizando ferramentas matemáticas e
econométricas mais sofisticadas.”
Durante
esse período, a questão do funcionamento da lei do valor voltou à tona, e os
planejadores retomaram cautelosamente a discussão sobre o papel do planejamento
e do mercado na política econômica. Na prática, isso culminou nas reformas
econômicas de Kosygin, de 1964 a 1969, após a queda de Khrushchev, que buscaram
flexibilizar o sistema.
A
terceira fase foi a dos anos de Leonid Brezhnev. Quando as reformas de Kosygin
não produziram as melhorias esperadas, a atenção se voltou para a possibilidade
de incentivar uma “revolução técnico-científica” que impulsionasse a economia.
Sob Brezhnev, havia o desejo de estabilidade política. No entanto, por meio do
desenvolvimento da revolução técnico-científica, os líderes soviéticos visavam
manter o planejamento, ao mesmo tempo que aprimoravam sua execução com o uso de
ferramentas matemáticas e econométricas mais sofisticadas, obtendo, assim, mais
recursos e mais bens materiais.
Os
teóricos soviéticos, e aqueles envolvidos em níveis mais práticos, puderam se
inspirar em desenvolvimentos semelhantes no Ocidente. Muito se falava na época
sobre um certo grau de convergência entre os sistemas econômicos do Oriente e
do Ocidente, e isso não era apenas conversa fiada. Economistas soviéticos de
alto escalão, embora frequentemente a portas fechadas, procuravam acompanhar os
desenvolvimentos e se encontrar com seus pares ocidentais, especialmente na
área de pesquisa em gestão.
Contudo,
essa fase também não produziu resultados satisfatórios. A questão das escalas
econômicas persistiu, assim como a escassez no sistema soviético. Parecia haver
um retorno decrescente sobre o investimento. Com pouca flexibilidade nos
preços, sempre havia consumidores capazes de comprar tudo o que chegava ao
mercado, e as filas eram uma parte comum do cotidiano.
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Jogando o jogo
Com a
ascensão de Mikhail Gorbachev, houve uma nova tentativa de revitalizar o
sistema, desta vez inclinando-se mais para as reformas de mercado. Building
a Ruin é um título provocativo porque, em 1985, a URSS estava longe da
ruína. Gorbachev e seus assessores ainda buscavam novas maneiras de avançar.
Eles não faziam ideia de que desencadeariam um processo que levaria o sistema à
implosão, como de fato aconteceu.
“Com a
ascensão de Mikhail Gorbachev, houve uma nova tentativa de revitalizar o
sistema, desta vez inclinando-se novamente para as reformas de mercado.”
O
relato de Feygin sobre o desfecho desse processo é um tanto superficial. Ele
descreve brevemente como as reformas saíram do controle com a formação de novos
grupos de interesse. Talvez fosse melhor para o autor ter refletido mais sobre
como dar sentido aos processos mais amplos que descreve, em vez de terminar com
alguns comentários casuais sobre sua relevância para a China.
Mas
isso não deve nos impedir de reconhecer o quão interessante é sua discussão
central. Então, o que uma esquerda crítica pode aprender com isso?
Os
críticos do socialismo argumentam que dizer que a URSS não era socialista é uma
desculpa esfarrapada. Mas parece claro que, na prática, aqueles que
administravam o sistema tentavam vencer o capitalismo em seu próprio jogo. Eles
não estavam apenas presos a uma lógica competitiva, mas também limitados por
seus horizontes restritos.
É claro
que isso não nos diz como era o sistema econômico soviético. Fazer essa
pergunta, como alguns fizeram na URSS, era sair da ordem vigente e atrair
represálias. O trabalho dos economistas que Feygin discute era ajudar o sistema
a funcionar melhor.
Mesmo
alguns daqueles que estavam no centro desses debates “internos” não puderam
deixar de se perguntar exatamente o que era a URSS. Feygin cita, em particular,
Yakov Konrod, que passou quatro décadas ou mais tentando refletir não apenas
sobre reformas, mas também sobre relações de valor e a questão da alienação e
da exploração no sistema soviético (contudo, o livro de David Mandel sobre
Konrod, Democracy, Plan and Market [Democracia
Planejamento e Mercado], não é mencionado).
No fim
das contas, a URSS e o bloco liderado pelos soviéticos entraram em colapso,
tornando-se a “ruína” mencionada no título de Feygin. Não conseguiram alcançar
(muito menos ultrapassar) o Ocidente e falharam em satisfazer as aspirações de
sua própria população. A ideia de socialismo de cima para baixo, dirigido por
um plano, não se recuperou de fato. Quando pensamos, portanto, em ir além do
capitalismo, devemos pensar em fins diferentes, bem como em meios diferentes.
Um
sistema participativo e de baixo para cima pode muito bem ser complexo de
diversas maneiras, mas precisa envolver as pessoas. Na URSS, os trabalhadores
soviéticos nunca foram agentes conscientes do próprio destino. Eles figuravam
apenas como uma restrição, e possivelmente quando se revoltavam, como em
Novocherkassk, em 1962, onde as tropas mataram duas dezenas de pessoas e
feriram setenta (várias outras foram executadas posteriormente). Feygin
menciona Novocherkassk, mas é revelador que, embora “consumo” e “bens de
consumo” sejam frequentemente citados em seu índice, “trabalhadores” não
apareçam em nenhum momento.
Fonte: Por Mike
Haynes - Tradução Pedro Silva, em Jacobin Brasil

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