A
proposta de reduzir a cobertura mínima dos planos de saúde no Brasil
O campo
da saúde tem sido muito debatido, tanto no Brasil quanto ao redor do mundo,
buscando formas de otimizar os sistemas e assistir mais pessoas. O sistema
público de saúde brasileiro, o SUS (Sistema Universal de Saúde), destaca–se por
se basear em uma concepção de sistema do tipo universal, sem qualquer tipo de
barreira ao acesso, inspirado no modelo do Reino Unido, o National Health
Service, em contraste com sistemas que adotam o modelo de seguro social.
No
modelo universal, o sistema é financiado por meio de tributação sobre a
população e o acesso não é vinculado a qualquer contribuição prévia. Além
disso, o uso dos serviços de diferentes níveis de atenção (primária,
secundária, terciária ou quaternária) é ordenado a partir do grau de
complexidade dos casos. Segundo o Ministério da Saúde, a atenção primária tem
potencial para resolver entre 80% e 90% das necessidades de saúde da população.
Já no segundo modelo, o seguro social, o serviço é intermediado por
seguradoras, e o acesso se dá em geral por demanda do próprio paciente ou por
orientação de seu médico, e tende a constituir um arranjo mais fragmentado e
com enfoque na saúde individual.
Apesar
de o Brasil contar com um sistema de saúde universal, a liberdade de exploração
de serviços de saúde pela iniciativa privada também está prevista na
Constituição. Além disso, o país possui um amplo mercado de intermediação de
saúde por meio de planos e seguros privados, a chamada Saúde Suplementar. O
setor foi regulamentado em 1998, com a promulgação da Lei nº 9.656, conhecida
como Lei dos Planos de Saúde, que organizou um mercado que já existia há
décadas, mas que até então operava com forte discricionariedade por parte das
operadoras e sem qualquer controle em termos padrões mínimos e sustentabilidade
financeira.
Para
complementar a regulamentação, em 2000, foi criada a ANS (Agência Nacional de
Saúde Suplementar), órgão vinculado ao Ministério da Saúde e responsável por
aplicar e fiscalizar a Lei dos Planos de Saúde. Os planos podem ser contratados
nas modalidades: 1) Plano individual ou familiar, adquirido diretamente pelo
beneficiário, com ou sem o seu grupo familiar; 2) Plano coletivo empresarial ou
por adesão. O empresarial é contratado por empresas para seus funcionários, em
decorrência de vínculo empregatício. Já o plano coletivo por adesão é
contratado por entidades como sindicatos, conselhos profissionais ou
associações de classe, sendo oferecido a seus membros ou associados. A
modalidade de contratação coletiva empresarial corresponde a cerca de 70% dos
planos ativos no país.
Em
fevereiro de 2025, a ANS anunciou a proposta de criar um ambiente regulatório
experimental – conhecido como “sandbox” regulatório – para testar os chamados
“planos de saúde simplificados” por um período máximo de 24 meses, que poderia
ser descontinuado a qualquer momento ou, excepcionalmente, estendido por apenas
12 meses; eles são mais baratos que os planos convencionais, mas ofereceriam
cobertura apenas para consultas eletivas e exames simples; ou seja, não
incluiriam atendimentos de urgência e emergência, internações, terapias ou
tratamentos como psicoterapia e tratamento oncológico. A Agência defendeu a
medida como uma forma de garantir e ampliar o acesso à atenção primária e
secundária, alegando que apenas cerca de ¼ da população brasileira possui plano
de saúde, no entanto, o fez dispensando a Análise de Impacto Regulatório (AIR),
ferramenta que buscaria aferir o risco da medida. Após contestações do
Instituto de Defesa do Consumidor (Idec), do Ministério Público, a proposta foi
temporariamente suspensa.
O
sandbox regulatório proposto pela Agência consistiria em um ambiente
“controlado” em que operadoras poderiam criar e registrar novos planos de
saúde, no formato coletivo por adesão e com limite de 30% de coparticipação,
seguindo as diretrizes estabelecidas pela ANS. O período de testes seria de
dois anos e, após esse prazo, o modelo seria avaliado. Entretanto, depois de
muitas críticas, a proposta foi temporariamente suspensa. Segundo o agora
ex-diretor presidente da Agência, a suspensão ocorreu para “assegurar” a
harmonização entre as esferas administrativas e judicial”, referência ao fato
de estar em curso o julgamento de ação civil pública que busca obrigar a ANS a
regular os cartões de descontos e benefícios, segmento que também disputa os
consumidores das classes populares.
Como
mostra a reportagem de 2016, O plano B ao SUS, as iniciativas para o
desenvolvimento de planos com cobertura reduzida são recorrentes na história da
saúde suplementar. Entrevistado pela publicação, Mario Scheffer, professor da
Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP) destaca que, em 2001,
o governo FHC editou uma Medida Provisória estabelecendo planos subsegmentados,
que poderiam não oferecer determinadas coberturas, a depender dos serviços
disponíveis em determinada cidade ou região. Em 2013, foi discutida uma
proposta que visava expandir o mercado de planos populares através de subsídios
públicos. O professor ainda ressalta:
“Por
mais de 30 anos essas empresas atuaram sem nenhuma regra. A cobertura reduzida
era a grande característica dos produtos que elas vendiam. Por exemplo,
excluíam doenças infecciosas e cardíacas, órteses e próteses, fisioterapia. Os
planos tinham segmentação de dias de internação, não atendiam internação em UTI
até tantos dias. Esse caos total levou a uma grande reação na década de 1990.”
(SCHEFFER apud MATHIAS, 2016).
Outro
motivo para o desenvolvimento da proposta do sandbox é permitir que o mercado
explore uma alternativa aos cartões de desconto – como o Cartão de Todos ou Dr.
Consulta – que, embora não sejam ilegais, não possuem regulamentação pela ANS.
Segundo a Agência, cerca de 50 milhões de brasileiros utilizam o produto,
sobretudo pessoas da classe C. Esse modelo exige o pagamento de uma taxa mensal
para o seu uso e oferece descontos em consultas, exames e procedimentos mais
simples, que são negociados diretamente com o estabelecimento que oferta o
atendimento. Também existem clínicas populares que oferecem esses mesmos
serviços por valores mais acessíveis e sem a necessidade de se ter o cartão.
A
principal diferença entre o plano de saúde simplificado, atualmente em
discussão pela ANS, e os cartões de desconto já em funcionamento é que o plano
teria um valor fixo em torno de R$100 mensais, de acordo com reportagem da Veja
– ao contrário do modelo adotado pelos cartões, em que o valor pago pelo
paciente varia conforme o uso dos serviços. A regulamentação permitiria que as
operadoras de saúde comercializassem o produto. Além disso, a proposta prevê a
integração entre o plano simplificado e o SUS, de modo que, quando o paciente
necessitar de um serviço mais complexo – como uma cirurgia, por exemplo – ele
seja diagnosticado pela rede privada e, então, encaminhado para tratamento em
um serviço público. A ANS, estima que o novo plano possa atrair entre 8 e 10
milhões de brasileiros.
Indagada
pela Revista Piauí, na reportagem Um plano de saúde ‘melhoral e copo d’água, a
Fenasaúde – entidade que representa as operadoras de saúde 0 – defendeu a
medida proposta pela agência reguladora. Para a entidade, um plano simplificado
“pode contribuir para tornar os planos de saúde mais acessíveis” e aliviar a
demanda sobre o SUS por consultas eletivas e exames, reduzindo a fila de
espera. A Associação Brasileira de Planos de Saúde (Abramge) endossou o
posicionamento da Fenasaúde.
Em um
sentido contrário ao das operadoras, o professor titular da Faculdade de Saúde
Pública da Universidade de São Paulo, Fernando Aith, argumenta que os planos
simplificados tendem a sobrecarregar o SUS. No artigo Sandbox regulatório da
ANS para planos de consultas e exames é ilegal publicado no portal JOTA, o
professor defende que o sistema público opera com uma “lógica sofisticada” no
atendimento dos pacientes, considerando os níveis de atenção primária,
secundária e terciária – que variam conforme as necessidades identificadas
durante a avaliação médica. Aith ainda pondera:
“Os
planos ultra segmentados, como os sugeridos pela norma proposta pela ANS,
somente irão bagunçar ainda mais o SUS, na medida em que o paciente, munido de
prescrições médicas privadas e de exames laboratoriais privados, irá procurar o
SUS já em fase avançada de seu quadro clínico e com propostas terapêuticas que
não necessariamente dialogam com os protocolos clínicos e diretrizes
terapêuticas fixados no âmbito do SUS.”.
Em Nota
Técnica conjunta, o Grupo de Pesquisa e Documentação sobre Empresariamento da
Saúde da Universidade Federal do Rio de Janeiro (GPDES/UFRJ) e o Grupo de
Estudos sobre Plano de Saúde da Universidade de São Paulo (GEPS/USP) questionam
se a proposta traria um alívio ao SUS, além de apontar “falsos mistérios”,
como: a dificuldade de contratação dos planos; o sumiço de planos individuais;
e o crescimento dos falsos coletivos (planos empresariais coletivos com poucas
vidas), que buscam contornar ferramentas de fiscalização e controle da ANS.
Os
pesquisadores discordam ainda que a relação entre o mercado de saúde
suplementar e o SUS seja cooperativa; na sua avaliação existe, na verdade, uma
disputa entre ambos por “recursos econômicos, políticos e simbólicos” (p. 26).
Além disso, caso a medida entre em vigor, ao invés de auxiliar o sistema
público criará um mecanismo de “fura-fila” para os pacientes que têm condições
de pagar um plano de saúde (p.27). Na prática, a medida imputará ao SUS os
maiores gastos com procedimentos complexos que não serão disponibilizados na
rede privada.
Nessa
perspectiva, segundo Levi (2016):
“Há uma
competição latente entre os fundos público e privado, que em determinadas
situações se torna explícita, aberta. De um lado, esquemas privados somente
podem prosperar se lograrem atrair uma parte da clientela do sistema público
para seus mecanismos de acesso restrito. De outro, ambos os lados competem pelo
uso das estruturas de provisão de serviços, ou dos meios necessários para a
disponibilização direta de tais serviços (como a força de trabalho médica, as
estruturas de provisão de exames e a capacidade de realização de internações,
por exemplo).”
Definitivamente,
o objetivo da proposta apresentada pela ANS passa ao largo do desenvolvimento
do sistema de saúde universal e integral previsto na Constituição Federal e
concretizado na política do SUS. O crescimento de “semi-planos” não apenas
agravaria a crise de financiamento do SUS via elevação dos gastos tributários,
ou seja, das isenções fiscais que reduzem os recursos para as políticas
públicas, como também resultaria em desorganização assistencial, fragmentação
da demanda e sobrecarga dos serviços não cobertos pelo plano desregulado em que
se pretende prestar, coincidentemente, apenas os serviços que apresentam menor
custo. Outra preocupação em relação a proposta é de que as empresas menores,
associações e entidades por exemplo, migrem para um plano simplificado, mais
barato, abrindo mão do seguro de cobertura mais ampla, o que resultaria tanto
em perda de cobertura quanto de recursos já aportados aos planos, além do uso
do sistema público para procedimentos mais complexos.
Em NOTA
TÉCNICA Nº 3/2024/DIPRO, a ANS levanta como problema “a dificuldade de acesso a
planos de saúde por pessoas naturais” em função da baixa oferta de planos
individuais ou familiares e pelas restrições impostas para a admissão nos
planos coletivos. Entretanto, o baixo fornecimento de planos individuais ou
familiares ocorre pela falta de interesse das operadoras em comercializá-los
devido às medidas protetivas aplicadas mais rígidas com relação ao reajuste das
mensalidades anuais que são regulamentados pela ANS (tendo seu máximo de 6,06%
no período entre maio de 2025 e abril de 2026) diferente do plano coletivo que
é negociado entre a OPS e a contratante e a possibilidade de rescisão
unilateral por parte das OPS; diminuindo o interesse de mercado e comercialização
desses planos por parte das operadoras.
A
“solução” para esse problema seria a flexibilização e precarização dos direitos
dos usuários, conquistados por meio da Lei 9.656, o que, segundo Aith (2025)
viola os requisitos mínimos do plano-referência previstos no art. 10 da Lei, ou
seja, “(…) cobertura assistencial médico-ambulatorial e hospitalar,
compreendendo partos e tratamentos(…)”.
Como
forma de contornar a lei, a ANS recorre ao sandbox para criar um ambiente
regulatório experimental que valida e legaliza a aplicação do plano-referência
por dois anos, como meio de testar a capacidade da ampliação ao acesso a planos
de saúde por pessoas naturais, visando suprir os interesses das seguradoras em
recuperar seus clientes perdidos na crise econômica e aumentar seu mercado
consumidor, buscando fazer frente ao mercado desregulado de cartões,
responsabilidade da própria ANS.
Assim,
a medida apresentada pela Agência oferece uma solução à sua própria omissão em
relação à política de regulação dos reajustes, que levou à dificuldade da
população em adquirir planos individuais, obrigando-a recorrer aos falsos
coletivos, reajustados pelo “mercado”, ou aos cartões, produtos financeiros sem
qualquer regulação, geralmente mais acessíveis e atrativos, em especial, à
classe C.
Fonte:
Por Daniela Varnier Sales, Lucas Petareli Garbulho, Lucas Rodrigues da Silva e
Maria Luiza Guide, no Le Monde

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