A
dignidade como categoria política para o século XXI
A
recente publicação do relatório “Situação Mundial das Crianças – 2025”,
realizada pelo Unicef, colocou em evidência uma questão fundamental para a
nossa época: “a pobreza envenena a infância e, portanto, nosso futuro comum”.
Distanciando-se da possibilidade de pensar a questão somente em termos de
escassez de recursos materiais, o relatório atribui visibilidade a questões de
saúde, de desenvolvimento humano e de aprendizagem. Em países mais pobres, são
417 milhões de crianças que encontram severas privações em suas existências,
situação que adquire maior complexidade com as mudanças demográficas, a crise
climática ou mesmo o uso das novas tecnologias. De forma objetiva, o relatório
informa que 4 de cada 5 crianças enfrenta os desafios da crise climática, por
exemplo.
O
documento parte do princípio de que precisamos mobilizar nossos esforços para
construir um “futuro melhor”, engendrando iniciativas para compreender e
intervir em cenários de pobreza multidimensional. A pobreza torna vulnerável a
garantia dos direitos da infância e leva-nos a refletir sobre que vida digna é
possível de ser construída com menos de 3 dólares por dia. De acordo com o
informe da Unicef, as crianças e os adolescentes têm “o dobro de probabilidades
que os adultos de viverem na pobreza extrema”, acrescentando-se também uma
repercussão em seu bem-estar, em suas oportunidades de desenvolvimento e nas
variadas privações graves.
Com
relação às privações graves, o documento permite-nos elencar diversos
componentes da pobreza, como a nutrição, a moradia, a água, o saneamento, a
educação e a saúde. Pensar a pobreza em sua multidimensionalidade permite ainda
um olhar atento às diferenças de faixa etária, de contexto socioeconômico, de
raça e gênero, de pessoas com deficiência e também migrações e populações em
deslocamento. O documento da Unicef desafia os Estados a posicionar o
enfrentamento da pobreza na infância e na adolescência como um imperativo
fundamental, seja pela via das políticas econômicas e fiscais, seja pelo
caminho das garantias de proteção social e serviços públicos de qualidade.
Entretanto,
para a continuidade argumentativa deste texto, precisamos deslocar o olhar para
um conceito fundamental no âmbito das políticas de infância e adolescência: a
dignidade. Com Marta Nussbaum, compreendemos que existem muitas modalidades de
expressão da dignidade e que cada uma delas, de modo distinto, merece nossa
consideração e reclama um tratamento justo. Porém, vale a pena destacar um
argumento ampliado que emerge da tessitura do texto da filósofa: para garantir
o respeito dos outros não precisamos ser produtivos, nem mesmo manifestar nossa
racionalidade para que a dignidade seja garantida.
Não
somos obrigados a ser produtivos para ganharmos o respeito dos outros. Temos o
direito ao respeito em função da dignidade mesma de nossas necessidades
humanas. A sociedade se une em função de um amplo campo de afetos e
compromissos, somente alguns dos quais dizem respeito à produtividade. A
produtividade é necessária, e mesmo boa, mas não é um fim principal da vida
social (Nussbaum, 2014, p. 197).
Construir
políticas destinadas a crianças e adolescentes, com foco em sua dignidade,
ultrapassa lógicas racionalistas e produtivistas. Queremos afirmar que a
garantia da proteção social e o atendimento das necessidades humanas é uma
questão de dignidade. Essa questão leva-nos a considerar o recente diálogo
entre o filósofo Michael Sandel e o economista Thomas Piketty (2025) em que
propõem uma retomada da dignidade enquanto um conceito fundamental para o
pensamento progressista. Ainda que pareça uma solução universalista, o futuro
da esquerda – na percepção dos autores – passaria por uma reconsideração da
possibilidade política da igualdade, entendida não somente no âmbito da
redistribuição de renda, mas também na reelaboração subjetiva da dignidade.
Quando
escolhemos iniciar este texto recuperando aspectos do relatório “Situação
Mundial das Crianças – 2025”, publicado pela Unicef, nossa intenção estava em
resgatar no debate progressista uma agenda fundamental: a questão da dignidade.
Notadamente no âmbito das políticas de infância e adolescência, o contemporâneo
demanda novos conceitos ou mesmo uma releitura de elaborações clássicas, como a
dignidade. A possibilidade de redescrever a sociedade em função de afetos e
compromissos compartilhados, tal como aprendemos com Nussbaum, instaura o
compromisso com novos agenciamentos políticos. Caso a esquerda contemporânea
ainda aposte na igualdade como fundamento, precisamos defender políticas
orientadas, simultaneamente, para a redistribuição econômica e a reelaboração
subjetiva da dignidade. Este parece ser um caminho promissor e incontornável
para as políticas com foco em crianças e adolescentes!
Fonte:
Por Roberto Rafael Dias da Silva, em Outras Palavras

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