Governo
Lula está 'de mãos amarradas' com PL da dosimetria, diz analista político
O
avanço no Congresso do projeto de lei da dosimetria — que altera as penas de
prisão do ex-presidente Jair Bolsonaro e de outros condenados por tentativa de
golpe de Estado — deixa o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva de
"mãos amarradas", na avaliação do analista político Creomar de Souza,
sócio-fundador da consultoria Dharma e professor da Fundação Dom Cabral.
Para
ele, o governo foi um dos principais perdedores com a aprovação do projeto de
lei na Câmara dos Deputados na madrugada desta quarta-feira (10/12) — já que a
plataforma do presidente Lula tem sido se ôpor a qualquer tipo de
flexibilização das penas dos envolvidos na invasão de Brasília de 8 de janeiro
de 2023.
Lula
teria teoricamente o poder de vetar o PL da dosimetria — mas Souza acredita que
qualquer veto acabaria derrotado pelo Centrão, provocando ainda mais desgaste
ao governo.
"O
Centrão sempre vence", disse o analista em entrevista à BBC News Brasil
nesta quinta-feira (10/12).
Na sua
avaliação, o bolsonarismo também teve uma vitória parcial — apesar de ainda não
ter conseguido seu objetivo principal, que é uma anistia total.
O
analista afirma que o governo se vê agora com as mãos amarradas — sem poder
derrubar o projeto de lei da dosimetria, e precisando aceitar as decisões que
vêm do Legislativo, hoje controlado pelo Centrão.
O texto
foi aprovado pelo Plenário com 291 votos. Votaram contra 148 parlamentares. O
chamado PL da Dosimetria segue agora para o Senado, onde será relatado pelo
senador Esperidião Amin (Progressistas-SC).
O
presidente da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado, Otto Alencar
(PSD-BA), disse que há um acordo para a PL da dosimetria ser votada na próxima
semana dentro da comissão, e em seguida, no mesmo dia, ser apreciada pelo
Plenário.
A nova
regra prevista no projeto de lei faz com que as penas por dois crimes — golpe
de Estado e abolição do Estado democrático de direito — não sejam mais somadas.
Passa a prevalecer apenas a pena maior, para tentativa de golpe de Estado, de 4
a 12 anos. Com isso, as penas totais de Bolsonaro e dos demais condenados no
julgamento de setembro seriam reduzidas.
Deputados
alinhados ao governo tentaram retirar o projeto da pauta da Câmara na terça,
mas sua solicitação para isso foi derrotada por 294 votos a 146.
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Confira abaixo trechos da entrevista:
• O senhor tem alguma avaliação política
de quem sai ganhando e perdendo com o avanço da PL da dosimetria?
Creomar
de Souza - Eu acho que quem sai perdendo é o governo do ponto de vista
político, porque o governo teoricamente construiu um pedaço da sua plataforma
em torno da ideia de que não deveria haver nenhum tipo de flexibilização com
relação aos envolvidos no 8 de janeiro.
Eu acho
que perde também a própria posição do Supremo Tribunal Federal, que é parte
negociadora da transformação pelo Paulinho da Força [do projeto] de anistia em
dosimetria.
Mas é
preciso levar em consideração o contexto dessa aprovação. É uma semana em que o
STF está na defensiva, tentando lidar com os estragos do Banco Master e os
impactos disso sobre a figura do ministro Dias Toffoli. E isso tem um impacto
político.
Em
termos de quem vence, eu creio que o grande vencedor é o Centrão. O Centrão
sempre vence. Porque em algum sentido vem um desenho que atende aos interesses
eleitorais do Centrão.
E para
o bolsonarismo, cuja pauta gira em torno de transformar a eleição de 2026 em um
plebiscito sobre Jair Bolsonaro e seu legado, não me parece ruim o avanço da
dosimetria, porque eles ganham alguma coisa. Antes não se tinha nada.
• Quais as opções para o presidente Lula
agora? Ele pode vetar a PL da dosimetria, mas corre o risco de ver seu veto ser
derrubado.
Souza -
Eu acho que o governo pode fazer muito pouco. Porque se o presidente vetar, o
veto vai cair. Essa é uma legislatura que tem derrubado muitos vetos
presidenciais, inclusive vetos em que o governo se engaja na ideia de que eles
efetivamente sejam derrubados.
O
espaço de manobra é muito pequeno, tendo em vista a conjuntura eleitoral
próxima.
É óbvio
que, do ponto de vista de agregação de militância, o governo pode optar por um
veto, mas isso vai ser efetivamente pouco eficaz. A expectativa acaba se
debruçando dentro de um padrão que a gente identificou aqui na Dharma, que
seria dessa espécie de presidencialismo jurisdicional — uma coalizão informal
entre a presidência e o STF.
Mas
tendo em vista o fato de que na atual conjuntura o governo está mal com a
Câmara, está mal com o Senado e tem uma questão da necessidade de tentar
aprovar um nome à feição do presidente, que seria do Jorge Messias para o STF,
fica meio uma situação de mãos amarradas, em que vai se esperar efetivamente,
como a Suprema Corte vai ler a decisão.
• Vale a pena para o governo comprar essa
briga da dosimetria? Um cálculo possível é que, para o governo, é melhor haver
dosimetria do que anistia. Então se a dosimetria ajudar a enterrar os pedidos
por anistia, poderia haver uma vantagem para o governo.
Souza -
Eu acho que se o governo for muito pragmático, ele pode fazer esse mesmo
cálculo que você expôs — de que a dosimetria resolve a questão e vamos embora.
O
problema é que, ao mesmo passo que eu não considero que esse governo é hiper
pragmático nesse nível, tem os embates da própria narrativa política pensando o
ano eleitoral.
E aí
existe um elemento gerador de confusão nesse processo, que é a leitura que o
bolsonarismo vai fazer caso o governo abra mão de qualquer tipo de embate.
Porque eu acho que o bolsonarismo ainda seguirá gritando, dizendo "olha,
avançamos a dosimetria que prova o nosso ponto, mas a gente quer anistia,
porque a turma é inocente".
E nessa
dinâmica, se o governo der um sinal muito expresso de fraqueza ou de concessão,
ele alimenta o discurso sem ganho eleitoral.
Do
outro lado, se ele criar um discurso que gera alguma resistência, ele pode
fazer um movimento que o afaste ainda mais do Legislativo, mas ele pode
trabalhar com horizonte futuro de uma possibilidade de vitória eleitoral ou de
ganho eleitoral no curto prazo.
Acho
que esses dilemas vão estar na mesa. Seria irresponsável da minha parte tentar
prognosticar o que o governo vai fazer.
Mas o
que a gente tem visto de padrão é que o governo normalmente está oscilando esse
entre esses dois lados, porque é fruto também da própria dificuldade na tomada
de decisão do governo.
• Diz-se que parte do Centrão não quer a
candidatura de Flávio Bolsonaro à Presidência, preferindo outros candidatos
para a direita. Com a aprovação da dosimetria, o Centrão poderia negociar para
que Flávio desista de sua candidatura?
Souza -
Eu acho que a liberdade de Jair Bolsonaro é algo que a família coloca na mesa
em qualquer processo de negociação ou transferência de apoio. Era assim com o
Bolsonaro na prisão domiciliar. É assim com a presença do Flávio.
O que
me levaria a ter um pouco mais de cautela é observar os desdobramentos da
apreciação. O texto vai ainda ao Senado Federal. Ele vai ter uma relatoria que
é do Esperidião Amin. O Esperidião Amin tem um interesse óbvio de ficar nas
boas graças do bolsonarismo, porque ele é candidato à reeleição ao Senado.
E deve
ter uma disputa entre ele e a Carol De Toni [deputada federal pelo PL-SC] para
ver quem fica com a segunda vaga [ao Senado], mantidas as condições de que o
Carlos [Bolsonaro] saia candidato ao Senado por Santa Catarina.
Então
acho que isso é uma parte do cálculo.
Do
ponto de vista nacional, a perspectiva da família Bolsonaro de aprovação do
texto pode fazer com que o Flávio, em algum sentido, dê um passo para trás —
caso se faça algum tipo de arranjo para uma composição de uma chapa que fique
mais à feição do Centrão, mas que não coloque o bolsonarismo em uma condição
hiperperiférica.
E aí,
eu acho que para o bolsonarismo, quanto mais tarde vier essa solução, melhor
será para se reter capital político.
Lembrando
a decisão do PT e do Lula pelo [lançamento da candidatura de] Haddad em 2018.
Se segurou o máximo possível [a candidatura de Haddad] para que o nome do Lula
continuasse sendo falado.
Não
importa o fato de Bolsonaro não ser candidato. O importante é fazer com que a
eleição seja o máximo possível sobre o Bolsonaro.
• Como fica a relação do Congresso com o
STF? Por um lado, a PL da dosimetria parece ser uma afronta às penas decididas
pela Primeira Turma no julgamento de Bolsonaro e demais réus. Mas por outro
lado, houve uma reunião com presença do Paulinho da Força, do ex-presidente
Michel Temer e do ministro Alexandre de Moraes em que se costurou a ideia de
mudar a dosimetria das penas.
Afinal:
esse PL é uma afronta do Congresso ao STF ou um acordo?
Souza -
Vamos brincar com as palavras: talvez seja um acordo afrontoso (risos) em um
momento do jogo político de atrito do Legislativo contra os outros poderes, e
em que o Legislativo já derrotou o Executivo.
Eu acho
que as emendas orçamentárias são uma prova de que o Legislativo derrotou o
Executivo. O Legislativo tem quase tanto dinheiro de emenda parlamentar quanto
o governo federal tem de PAC.
A
segunda parte do embate é com o Judiciário. E esse embate com o Judiciário, eu
acho que tem mais camadas.
Uma
camada é o julgamento da constitucionalidade das emendas de orçamentárias pelo
Flávio Dino. Uma outra camada é o inquérito das Fake News com Alexandre de
Moraes. E uma terceira camada é a eventual permanência em cárcere daqueles
envolvidos no 8 de janeiro.
Para
cada uma dessas camadas, me parece que há um processo de negociação que tem um
componente de paralelismo — o papel do Gilmar, a presença do próprio Alexandre,
do ex-presidente Michel Temer, negociando o PL da Dosimetria e à feição dos
interesses do STF com o Paulinho da Força.
E em
outros temas, o jogo fica meio que em aberto.
A
impressão que nós temos olhando de cá, e essa é uma hipótese que a gente
trabalha, é que, em alguns sentidos, algumas forças políticas que eram muito
pujantes em 2013 e 2014 — como o próprio Michel Temer, Aécio Neves, Marconi
Pirillo — estivessem usando esse momento de negociação da dosimetria para se
recolocar.
A
primeira foto do Paulinho foi com o Aécio e o Temer, logo que ele foi indicado
para a relatoria pelo Hugo Motta. É como se o Centrão estivesse, para além da
posição de grande operador das emendas e das decisões legislativas, tentando
recolocar e reposicionar os seus nomes como atores inescapáveis do debate
político.
O que,
em algum sentido, acaba dizendo: "o lugar do antipetismo é de alguns
desses caras aqui, não é desse pessoal que chegou agora, não é dos novos
ricos".
É da
turma que tradicionalmente já fazia isso há muito tempo.
Então
eu creio que existem esses elementos que dariam essa feição de um acordo
afrontoso, de um acordo no limite.
• O governo já acumula muitas derrotas
para o Centrão no Congresso. Quando existe um grande embate, o Centrão acaba
ganhando. Isso já virou uma regra do jogo político?
Souza -
Eu acho que essa é uma regra. É uma regra que se apresenta não só para o
governo Lula, mas se apresenta também no governo Bolsonaro e nos governos da
Dilma e do Temer.
Da Lava
Jato para cá, mas sobretudo a partir do impeachment da Dilma para cá, todos os
governos tiveram que, em determinado sentido, entregar a chave do cofre para o
Legislativo.
E
quando a gente está falando do Legislativo, estamos falando basicamente o
Centrão.
O
Legislativo foi capaz de ir construindo instrumentos de anteparo para sua
própria proteção. Em uma escala em que o Executivo sempre começa o jogo já
perdendo.
A
administração Bolsonaro já tinha entendido que não valia um embate.
É
sempre bom lembrar da fala do Bolsonaro "mas eu era do Centrão, sempre fui
do Centrão".
E
quando vem o Lula, ele tem uma ideia muito consolidada de um presidencialismo
de coalizão clássico, em que o governo tem um controle do orçamento e usa isso
para efetivamente dizer quem recebe o que a partir das votações no Congresso.
E eu
acho que o Lula tentou reconstruir esse presidencialismo de coalizão clássico.
O que o
Lula não contava ou o que o governo não conseguiu entender é que a partir
desses baixos números que o governo tem de apoio robusto, principalmente na
Câmara, essa tarefa se torna quase impossível.
• Como fica o eleitor no meio de toda essa
discussão no PL da dosimetria? O que estava em discussão originalmente eram as
penas de prisão, mas o que acaba entrando também no debate é a pré-candidatura
do Flávio Bolsonaro ou a disputa por vagas no Senado em Santa Catarina.
Souza -
O grau de degradação institucional que a gente está vendo, que afeta a
reputação de todos os poderes, se manifesta na cabeça do eleitor. Eles pensam:
"os caras não se importam".
A
imagem do Congresso é muito ruim, tanto que se nós olharmos para hashtags que
são desqualificadoras ao Congresso — "Congresso, O inimigo do povo" —
elas funcionam muito bem. Elas têm muito alcance, porque há um processo de
descolamento entre o eleitor e a instituição, que no fim é muito perigoso.
O
congressista sabe, sobretudo na Câmara dos deputados, devido ao enorme número
de atores políticos envolvidos, que é possível diluir esse estrago. No fim, a
figura que aparece é a do Hugo Motta.
Me
parece que o impacto direto desse tipo de processo sobre o eleitor é mais um
degrauzinho subido na escala de divórcio entre a cidadania e a representação —
que é algo muito perigoso e que deu muita robustez da ideia de uma agenda
anti-política e antissistema nas eleições de 2018, que continuou presente nas
eleições de 2022, com essa bancada que é muito grande, de apoiadores do
ex-presidente Bolsonaro.
E que
acaba sendo fomentada e estimulada por ações também dos outros poderes.
Questões que envolvem o STF, questões que envolvem o executivo, acabam
fomentando também um tipo de discurso de descrença.
Acaba
que, como o Congresso está muito direcionado e povoado pelas bolhas, isso
atende a uma turma de uma outra de uma bolha. Os outros ficam meio indiferentes
e a vida segue.
Fonte:
BBC News Brasil

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