Bets
e SUS: como agir antes do leite derramado
O
futebol ocupa um lugar central na cultura brasileira: move multidões,
influencia hábitos, permeia conversas cotidianas e se consolidou como um dos
principais símbolos de identidade nacional. Mais do que um esporte, tornou-se
um fenômeno social capaz de pautar debates públicos, unir torcedores de
diferentes regiões e classes sociais e mobilizar a economia.
Dono da
maior torcida brasileira, em 2025 o Clube de Regatas Flamengo é campeão
isolado, mas dessa vez, não estamos falando do último campeonato brasileiro. O
clube deve receber R$ 268 milhões de uma única empresa, segundo informações de
um levantamento publicado no portal de notícias G1. Esse valor é o mais alto já
registrado no futebol nacional e revela a ascensão avassaladora de um mercado:
o de apostas online, conhecidas como bets.
A
associação de empresas de apostas a grandes clubes tornou-se uma estratégia
decisiva para garantir presença contínua e destacada na mente do público. Hoje
não há uma partida de futebol em que o espectador não seja bombardeado por uma
sequência massiva de propagandas de bets. Esse estímulo ininterrupto tem
impacto direto no Sistema de Saúde brasileiro.
Um
estudo elaborado pelo Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS) e
pela Umane, em parceria com a Frente Parlamentar Mista para Promoção da Saúde
Mental (FPSM), revelou que os danos à saúde associados às bets podem gerar um
custo de R$ 30,6 bilhões ao ano. Desse montante, R$ 17 bilhões se referem a
mortes por suicídio, R$ 10,4 bilhões à perda de qualidade de vida e R$ 3
bilhões a tratamentos para depressão. O documento aponta que o crescimento
acelerado do setor já provoca impactos relevantes no endividamento das
famílias, além de consequente agravamento do sofrimento mental e aumento de
casos de transtorno do jogo.
Além
disso, aponta-se que este setor vive uma tríade: lucros elevados, arrecadação
modesta e poucos empregos gerados. Contrariando a retórica de que o mercado de
apostas pode dinamizar a economia e gerar empregos, dados da Relação Anual de
Informações Sociais (RAIS) mostram que a contribuição do setor para o mercado
de trabalho é irrisória: havia apenas 1.144 empregos formais ativos em 2024 com
60 empregadores formais. Assim, de cada R$ 291 de receita obtida pelas empresas
de apostas, apenas R$ 1 se transforma em salário formal.
O
governo federal tenta reagir. No início deste mês, os ministérios da Saúde e
Fazenda lançaram o Observatório Saúde Brasil de Apostas Eletrônicas para ações
integradas de prevenção à dependência. Ao reconhecer que os danos provocados
pelas bets extrapolam o campo fiscal e regulatório, o Estado brasileiro passa a
tratar as apostas online como um problema de Saúde Pública. O acordo prevê
ações como a criação de uma plataforma nacional de autoexclusão, o
desenvolvimento de campanhas de prevenção, a elaboração de diretrizes clínicas
para o SUS, a ampliação da produção de dados e a definição de protocolos
integrados de cuidado.
Um
destes protocolos foi lançado na mesma data e anuncia os desafios do cuidado
das pessoas com uso problemático dos jogos. Temos os desafios dos territórios
digitais, que nos obrigam a ampliar a lógica do cuidado para além dos encontros
presenciais dentro dos consultórios. Assim, este público necessita de outras
modalidades de contato para a produção de vínculos, onde práticas de escuta
devem ter modelos diversos, já que a “cena de uso” tradicional de uma ação
psicoativa foi substituída ou expandida para os territórios virtuais.
As
medidas anunciadas pelo governo representam avanços importantes, mas ainda
estão centradas no comportamento do apostador, sem enfrentar de forma
estrutural as engrenagens que alimentam a expansão das bets no país. Corremos o
risco de recairmos na culpabilização dos usuários dos jogos e rapidamente
transformar um problema recentemente criado e ampliado em um diagnóstico
estabelecido. Quando lemos tais documentos governamentais, temos a impressão de
que a dependência de jogos é um fato consumado e que sempre existiu, à medida
que as ações são focadas em formas de tratamento, acolhimento e identificação
do problema enquanto diagnóstico. Toda a indústria que promove os jogos é
esquecida.
Assim,
é fundamental e necessário uma virada de chave: sair de um modelo regulatório
orientado pelo mercado e de um modelo de atenção voltado apenas para o
tratamento do “leite derramado”, para um modelo sanitário, que reconheça as
apostas como um produto de risco e ataque suas causas sistêmicas.
Nesse
sentido, medidas como:
(1) a
proibição de publicidade, hoje um dos maiores vetores de estímulo e
normalização do jogo;
(2) a
regulamentação e limitação do uso das plataformas de apostas; e
(3) o
aumento da arrecadação destinada à saúde são passos essenciais para equilibrar
o impacto econômico e social desse setor.
As
ações recentes sinalizam que o país começa a corrigir um atraso regulatório
acumulado nesses últimos anos de expansão descontrolada. Mais do que reconhecer
o problema, o desafio agora é transformar evidências em ação: estruturar uma
resposta pública potente, intersetorial e contínua, que permita ao Brasil
proteger sua população, especialmente jovens e famílias de baixa renda, dos
impactos cada vez mais profundos das apostas online.
Fonte:
Por Filipe Asth, Deivisson Vianna Dantas dos Santos, Rebeca Freitas e Dayana
Rosa, em Outra Saúde

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