sexta-feira, 12 de dezembro de 2025

Paulo Henrique Arantes: O narcisismo maligno de Hugo Motta

Pouco importa se Jair Bolsonaro amargará quinze, nove ou cinco anos atrás das grades. O marginal que tentou, sem disfarçar, destruir a democracia brasileira resta defenestrado da política junto com a dúzia de descerebrados militares que o circundaram. A tal “dosimetria” que a Câmara aprovou, e que ainda circulará pelas vias legislativas por um curto tempo antes de ir a sanção ou vetos de Lula, é mesmo vergonhosa, mas servirá na prática como um “cala-boca” aos bolsonaristas empedernidos. C’est fini para a turba, que por ora terá de abraçar a candidatura natimorta de Flávio.

O Judiciário cumpriu seu papel quanto aos golpistas. Aplicou-se o direito com celeridade e os criminosos foram todos condenados. O Brasil deu um exemplo ao mundo de funcionamento institucional diante de uma ameaça urdida no gabinete do presidente da República. O resíduo tóxico dessa jornada, contudo, sobrevive latente no Parlamento.

São bem conhecidos o corporativismo, o fisiologismo e o oportunismo do Congresso Nacional, mas na presente legislatura tais “ismos” elevaram-se ao absurdo. O que se viu na Câmara na terça-feira (9) constitui a perfeita demonstração da incapacidade do presidente Hugo Motta (Republicanos-PB) de encarar o contraditório – este, representado pelo deputado Glauber Braga (PSol-RJ) – com altivez.

Motta é um homúnculo político e usou da força policial interna para desalojar de sua cadeira um impertinente Braga, ao passo que meses atrás manteve-se dócil por 48 horas enquanto bolsonaristas ensandecidos faziam festa sobre as poltronas da mesa diretora da Câmara, sobre a dele inclusive. Desta vez, também a imprensa foi retirada do recinto “aos costumes”.

Na sequência, após um discurso protocolar de defesa institucional – ninguém diria nada diferente daquilo –, o homúnculo Motta deu andamento a uma pauta anódina para em seguida por em votação a “dosimetria”. Como a coluna fez meses atrás, a análise mais pertinente dos comportamentos do presidente da Câmara não pode prescindir da psicologia.

Hugo Motta é médico, apesar de nunca ter exercido a medicina sob tantos holofotes quanto os que lhe dão brilho no comando do corpo parlamentar mais fisiológico e reacionário de que se tem notícia. Na política, o afilhado de Arthur Lira (Progressistas-PB) vende a imagem do liberal sempre aberto do diálogo, educado, bem penteado. Um perigo.

O psiquiatra Jerrold M. Post realizou estudos importantes sobre indivíduos obscuros alçados ao poder – já escrevemos sobre isso neste espaço, e vale o reprise.  Post fundou o Centro de Análise de Personalidade Política da CIA. É autor de obras como “Dangerous Charisma: The Political Psychology of Donald Trump and His Followers” (2019) e “Leaders and Their Followers in a Dangerous World” (2004). Em sua avaliação, indivíduos que ascendem ao poder a partir da obscuridade e se tornam tiranos geralmente compartilham de um “narcisismo maligno”, distúrbio severo que beira a paranoia.

O narcisista de Post, contrariado, humilha e se vinga. Sua patologia denomina-se Síndrome do Conciliador Cativo, que costuma caracterizar moderados que, para sobreviverem politicamente, se submetem à lógica autoritária de seus aliados.

Um exemplo acabado de conciliador cativo, além de Motta, é o ex-presidente da Câmara dos Representantes dos Estados Unidos Kevin McCarthy, que se apresentava como moderado e “homem do diálogo” dentro do Partido Republicano, tendo sido eleito com promessas de governabilidade bipartidária.

Por oportuno, reprisemos a seguir parágrafo de artigo aqui publicado recentemente:

No exercício da presidência da casa legislativa, McCarthy fez repetidas concessões à extrema-direita trumpista para se manter no cargo, incluindo abertura de processo de impeachment sem provas concretas contra o presidente Joe Biden. McCarthy também permitiu que parlamentares extremistas ditassem a pauta e usassem o Congresso como palco de desinformação. Acabou destituído por seu próprio partido ao perder o controle de sua ala mais radical.

•        Sessão da Câmara transforma deputados em lutadores e jornalistas em intrusos. Por Washington Araújo

O plenário da Câmara, que deveria ser território do verbo, virou arena de corpo contra corpo. A sessão que antecedia a votação de cassação de Glauber Braga (PSOL-RJ) degenerou em pancadaria, paletó rasgado, seguranças avançando, parlamentares empurrados — enquanto a imprensa era expulsa do plenário e o sinal da TV Câmara simplesmente desaparecia do ar.

Não foi falha técnica: foi blackout político. A ausência súbita de imagem, som e registro institucional não é silêncio — é censura luminosa. É quando o poder decide calar o país, não pela palavra, mas pela interrupção dela.

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A cena registrada apenas por celulares de parlamentares e repórteres expôs fissuras profundas do Parlamento. O deputado ocupou a cadeira da presidência como protesto, algo passível de punição regimental, mas passível também de diálogo — alternativa que não foi sequer tentada.

O que chocou não foi o protesto, e sim o método para reprimi-lo: uso da força, expulsão da imprensa, corte da transmissão. Três golpes contra a democracia na mesma tarde, cometidos dentro do órgão que deveria defendê-la.

E é impossível ignorar o símbolo maior dessa escuridão momentânea: Óscar Niemeyer projetou os plenários da Câmara e do Senado sem janelas para que a imprensa fosse os olhos da sociedade brasileira. Não há vidro para o povo mirar — há câmeras. Por isso desligá-las não é simples decisão técnica: é fechar o único olho que a arquitetura deixou aberto.

Lastimável também ver o contraste na cobertura jornalística, especialmente na GloboNews. Enquanto Natuza Nery, Gabeira, Ana Flor, Otávio Guedes e Flávia Oliveira exerciam análise com sobriedade e senso crítico, havia no ar a busca pela compreensão e não pela vingança.

Já Joel Fonseca, também da GN, escorregou para o jornalismo de lado escolhido, quando a opinião vem antes do fato e o enquadramento serve ao impulso emocional. Chamou o ato de Glauber de “showzinho”, defendeu a ação violenta da polícia legislativa e tratou a cassação como espetáculo merecido.

Seus colegas não embarcaram nessa deriva ideológica. E não é coincidência que a GloboNews oscile em 0,3 pontos — cerca de 90 mil espectadores em um país com mais de 213 milhões de habitantes. Jornalismo sem pluralidade vira eco. E eco, por mais alto que reverbere, não tem força para iluminar.

Sobre Hugo Motta, presidente da Câmara, o constrangimento cresce. Vive aquilo que a rainha Elizabeth chamaria de annus horribilis: decisões erráticas, autoridade frágil, polícia legislativa que age sem coordenação clara, como se o comando fosse líquido e escorresse pelas mãos.

A cadeira que ocupa parece ter dobrado de tamanho diante dele. Alterna punições como quem busca equilíbrio visual: pune à direita aqui, à esquerda ali, imaginando que simetria formal signifique justiça material. Não significa. Justiça não nasce do espelho, mas do critério.

E é aqui que o país engasga: a Câmara tem usado e abusado de dois pesos e duas medidas. Pelo mesmo ato — ocupar a presidência do plenário — alguns parlamentares recebem advertência leve ou suspensão temporária, muitas vezes por noventa dias, enquanto outros são condenados à cassação plena, acompanhada de inelegibilidade. A régua muda conforme o rosto. A pena varia conforme o lado. A ofensa é idêntica, mas o veredito não. Chamam isso de disciplina, mas a pergunta se impõe: será justiça ou cálculo político? Democracia não pode funcionar como balança de feira — onde um lado pesa mais porque convém pesar mais.

Motta nega ter ordenado o corte da TV e a retirada de jornalistas. Mas se não ordenou, quem ordenou? Se alguém decide no lugar dele, preside pouco. Se decide e depois desmente, comunica insegurança. Há uma sombra sobre o poder quando o próprio presidente não sabe — ou não admite — quem apagou a luz.

O episódio não é isolado. Meses atrás, deputados de direita sentaram-se na mesma cadeira presidencial e transmitiram ao vivo, sob risos e celulares erguidos. Não houve força policial. Não houve blackout. Não houve escorraçamento da imprensa. A equidade claudica quando pesos distintos medem atos semelhantes — e isso fere o espírito republicano.

Não se trata de absolver Glauber. Ocupar a mesa é afronta regimental e pede resposta. Mas a resposta não pode vir vestida de truculência nem empunhada no escuro. Parlamento sem imprensa é sala fechada. E sala fechada é penumbra; penumbra é terreno fértil para abusos.

Nas imagens que escaparam pelas brechas, vemos deputadas ao chão e um cocar indígena pisoteado, símbolos em ruína sob o tapete azul. Vemos portas fechadas e jornalistas barrados tentando exercer o direito mais elementar da República: ver para contar.

O risco agora é o costume. Se o país normaliza a violência em plenário, normaliza também a invisibilidade. Cada câmera desligada é um centímetro de sombra que avança. E sombras, quando crescem, pedem morada.

O que resta é investigação. Com nome, com responsabilidade e com consequências — não apenas notas mornas ou gestos protocolares. Quem deu a ordem? Quem desligou as imagens? Quem decidiu que o povo não deveria ver o que lhe pertence por direito?

Hoje a democracia tropeçou — mas não caiu. Manca, respira e pede luz. Que amanhã as câmeras sejam ligadas antes do primeiro golpe de voz, e que ninguém ouse apagá-las. Porque política suporta gritos e crises — mas não sobrevive à escuridão.

Que se acenda a República, enquanto ainda há quem queira vê-la.

 

Fonte: Brasil 247

 

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