Paulo
Henrique Arantes: O narcisismo maligno de Hugo Motta
Pouco
importa se Jair Bolsonaro amargará quinze, nove ou cinco anos atrás das grades.
O marginal que tentou, sem disfarçar, destruir a democracia brasileira resta
defenestrado da política junto com a dúzia de descerebrados militares que o
circundaram. A tal “dosimetria” que a Câmara aprovou, e que ainda circulará
pelas vias legislativas por um curto tempo antes de ir a sanção ou vetos de
Lula, é mesmo vergonhosa, mas servirá na prática como um “cala-boca” aos
bolsonaristas empedernidos. C’est fini para a turba, que por ora terá de
abraçar a candidatura natimorta de Flávio.
O
Judiciário cumpriu seu papel quanto aos golpistas. Aplicou-se o direito com
celeridade e os criminosos foram todos condenados. O Brasil deu um exemplo ao
mundo de funcionamento institucional diante de uma ameaça urdida no gabinete do
presidente da República. O resíduo tóxico dessa jornada, contudo, sobrevive
latente no Parlamento.
São bem
conhecidos o corporativismo, o fisiologismo e o oportunismo do Congresso
Nacional, mas na presente legislatura tais “ismos” elevaram-se ao absurdo. O
que se viu na Câmara na terça-feira (9) constitui a perfeita demonstração da
incapacidade do presidente Hugo Motta (Republicanos-PB) de encarar o
contraditório – este, representado pelo deputado Glauber Braga (PSol-RJ) – com
altivez.
Motta é
um homúnculo político e usou da força policial interna para desalojar de sua
cadeira um impertinente Braga, ao passo que meses atrás manteve-se dócil por 48
horas enquanto bolsonaristas ensandecidos faziam festa sobre as poltronas da
mesa diretora da Câmara, sobre a dele inclusive. Desta vez, também a imprensa
foi retirada do recinto “aos costumes”.
Na
sequência, após um discurso protocolar de defesa institucional – ninguém diria
nada diferente daquilo –, o homúnculo Motta deu andamento a uma pauta anódina
para em seguida por em votação a “dosimetria”. Como a coluna fez meses atrás, a
análise mais pertinente dos comportamentos do presidente da Câmara não pode
prescindir da psicologia.
Hugo
Motta é médico, apesar de nunca ter exercido a medicina sob tantos holofotes
quanto os que lhe dão brilho no comando do corpo parlamentar mais fisiológico e
reacionário de que se tem notícia. Na política, o afilhado de Arthur Lira
(Progressistas-PB) vende a imagem do liberal sempre aberto do diálogo, educado,
bem penteado. Um perigo.
O
psiquiatra Jerrold M. Post realizou estudos importantes sobre indivíduos
obscuros alçados ao poder – já escrevemos sobre isso neste espaço, e vale o
reprise. Post fundou o Centro de Análise
de Personalidade Política da CIA. É autor de
obras como “Dangerous Charisma: The Political Psychology of Donald Trump and
His Followers” (2019) e “Leaders and Their Followers in a Dangerous World”
(2004). Em
sua avaliação, indivíduos que ascendem ao poder a partir da obscuridade e se
tornam tiranos geralmente compartilham de um “narcisismo maligno”, distúrbio
severo que beira a paranoia.
O
narcisista de Post, contrariado, humilha e se vinga. Sua patologia denomina-se
Síndrome do Conciliador Cativo, que costuma caracterizar moderados que, para
sobreviverem politicamente, se submetem à lógica autoritária de seus aliados.
Um
exemplo acabado de conciliador cativo, além de Motta, é o ex-presidente da
Câmara dos Representantes dos Estados Unidos Kevin McCarthy, que se apresentava
como moderado e “homem do diálogo” dentro do Partido Republicano, tendo sido
eleito com promessas de governabilidade bipartidária.
Por
oportuno, reprisemos a seguir parágrafo de artigo aqui publicado recentemente:
No
exercício da presidência da casa legislativa, McCarthy fez repetidas concessões
à extrema-direita trumpista para se manter no cargo, incluindo abertura de
processo de impeachment sem provas concretas contra o presidente Joe Biden.
McCarthy também permitiu que parlamentares extremistas ditassem a pauta e
usassem o Congresso como palco de desinformação. Acabou destituído por seu
próprio partido ao perder o controle de sua ala mais radical.
• Sessão da Câmara transforma deputados em
lutadores e jornalistas em intrusos. Por Washington Araújo
O
plenário da Câmara, que deveria ser território do verbo, virou arena de corpo
contra corpo. A sessão que antecedia a votação de cassação de Glauber Braga
(PSOL-RJ) degenerou em pancadaria, paletó rasgado, seguranças avançando,
parlamentares empurrados — enquanto a imprensa era expulsa do plenário e o
sinal da TV Câmara simplesmente desaparecia do ar.
Não foi
falha técnica: foi blackout político. A ausência súbita de imagem, som e
registro institucional não é silêncio — é censura luminosa. É quando o poder
decide calar o país, não pela palavra, mas pela interrupção dela.
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A cena
registrada apenas por celulares de parlamentares e repórteres expôs fissuras
profundas do Parlamento. O deputado ocupou a cadeira da presidência como
protesto, algo passível de punição regimental, mas passível também de diálogo —
alternativa que não foi sequer tentada.
O que
chocou não foi o protesto, e sim o método para reprimi-lo: uso da força,
expulsão da imprensa, corte da transmissão. Três golpes contra a democracia na
mesma tarde, cometidos dentro do órgão que deveria defendê-la.
E é
impossível ignorar o símbolo maior dessa escuridão momentânea: Óscar Niemeyer
projetou os plenários da Câmara e do Senado sem janelas para que a imprensa
fosse os olhos da sociedade brasileira. Não há vidro para o povo mirar — há
câmeras. Por isso desligá-las não é simples decisão técnica: é fechar o único
olho que a arquitetura deixou aberto.
Lastimável
também ver o contraste na cobertura jornalística, especialmente na GloboNews.
Enquanto Natuza Nery, Gabeira, Ana Flor, Otávio Guedes e Flávia Oliveira
exerciam análise com sobriedade e senso crítico, havia no ar a busca pela
compreensão e não pela vingança.
Já Joel
Fonseca, também da GN, escorregou para o jornalismo de lado escolhido, quando a
opinião vem antes do fato e o enquadramento serve ao impulso emocional. Chamou
o ato de Glauber de “showzinho”, defendeu a ação violenta da polícia
legislativa e tratou a cassação como espetáculo merecido.
Seus
colegas não embarcaram nessa deriva ideológica. E não é coincidência que a
GloboNews oscile em 0,3 pontos — cerca de 90 mil espectadores em um país com
mais de 213 milhões de habitantes. Jornalismo sem pluralidade vira eco. E eco,
por mais alto que reverbere, não tem força para iluminar.
Sobre
Hugo Motta, presidente da Câmara, o constrangimento cresce. Vive aquilo que a
rainha Elizabeth chamaria de annus horribilis: decisões erráticas, autoridade
frágil, polícia legislativa que age sem coordenação clara, como se o comando
fosse líquido e escorresse pelas mãos.
A
cadeira que ocupa parece ter dobrado de tamanho diante dele. Alterna punições
como quem busca equilíbrio visual: pune à direita aqui, à esquerda ali,
imaginando que simetria formal signifique justiça material. Não significa.
Justiça não nasce do espelho, mas do critério.
E é
aqui que o país engasga: a Câmara tem usado e abusado de dois pesos e duas
medidas. Pelo mesmo ato — ocupar a presidência do plenário — alguns
parlamentares recebem advertência leve ou suspensão temporária, muitas vezes
por noventa dias, enquanto outros são condenados à cassação plena, acompanhada
de inelegibilidade. A régua muda conforme o rosto. A pena varia conforme o
lado. A ofensa é idêntica, mas o veredito não. Chamam isso de disciplina, mas a
pergunta se impõe: será justiça ou cálculo político? Democracia não pode
funcionar como balança de feira — onde um lado pesa mais porque convém pesar
mais.
Motta
nega ter ordenado o corte da TV e a retirada de jornalistas. Mas se não
ordenou, quem ordenou? Se alguém decide no lugar dele, preside pouco. Se decide
e depois desmente, comunica insegurança. Há uma sombra sobre o poder quando o
próprio presidente não sabe — ou não admite — quem apagou a luz.
O
episódio não é isolado. Meses atrás, deputados de direita sentaram-se na mesma
cadeira presidencial e transmitiram ao vivo, sob risos e celulares erguidos.
Não houve força policial. Não houve blackout. Não houve escorraçamento da
imprensa. A equidade claudica quando pesos distintos medem atos semelhantes — e
isso fere o espírito republicano.
Não se
trata de absolver Glauber. Ocupar a mesa é afronta regimental e pede resposta.
Mas a resposta não pode vir vestida de truculência nem empunhada no escuro.
Parlamento sem imprensa é sala fechada. E sala fechada é penumbra; penumbra é
terreno fértil para abusos.
Nas
imagens que escaparam pelas brechas, vemos deputadas ao chão e um cocar
indígena pisoteado, símbolos em ruína sob o tapete azul. Vemos portas fechadas
e jornalistas barrados tentando exercer o direito mais elementar da República:
ver para contar.
O risco
agora é o costume. Se o país normaliza a violência em plenário, normaliza
também a invisibilidade. Cada câmera desligada é um centímetro de sombra que
avança. E sombras, quando crescem, pedem morada.
O que
resta é investigação. Com nome, com responsabilidade e com consequências — não
apenas notas mornas ou gestos protocolares. Quem deu a ordem? Quem desligou as
imagens? Quem decidiu que o povo não deveria ver o que lhe pertence por
direito?
Hoje a
democracia tropeçou — mas não caiu. Manca, respira e pede luz. Que amanhã as
câmeras sejam ligadas antes do primeiro golpe de voz, e que ninguém ouse
apagá-las. Porque política suporta gritos e crises — mas não sobrevive à
escuridão.
Que se
acenda a República, enquanto ainda há quem queira vê-la.
Fonte:
Brasil 247

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