Há
trabalhadores que são capitalistas?
Berman
e Milanovic descobrem um fenômeno estatístico: a fusão de altas rendas do
trabalho e do capital no topo. Seria isso o fim das classes ou apenas a
financeirização da burguesia?
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Uma definição e um resultado
Sim, e
não se trata do fato de que muito capitalistas trabalham…
Yonatan
Berman e Branko Milanovic acham que sim, que tais trabalhadores existem e que
são bem numerosos na sociedade contemporânea. Eles pensam que essa condição
social é tão importante que um nome na língua de Aristóteles foi criado para
denominá-la: homoploutia.
Formada
pela composição de dois termos, homo (igual) e ploutia (riqueza), essa
palavrona chama a atenção. Com ela, querem designar gente que ganha muito
dinheiro tanto com base no trabalho tanto com base na propriedade de riqueza
capitalista acumulada ou em processo de acumulação.
O
rótulo vem evidentemente de uma estratégia de marketing acadêmico que busca o
inusitado para capturar a atenção, mas que, em última análise, descura do
necessário rigor conceitual. Contudo, o fenômeno subjacente, cuja natureza e
medida está exposta num artigo acadêmico, merece algum cuidado. Antes de
examinar aquilo que esses dois autores reivindicam como descoberta teórica, é
preciso tomar ciência dos resultados empíricos que apresentam.
Empregando
três bases de dados distintas em que pessoas ou famílias moradoras nos Estados
Unidos são listadas, assim como as suas fontes de renda, Yonatan Berman e
Branko Milanovic conseguiram descobrir quantas delas se situam nos decis
superiores simultaneamente de rendas de trabalho e rendas de propriedade, ao
longo de um período de setenta (70) anos, de 1950 a 2020. Formalmente, eles
calcularam a probabilidade de que um domicilio, que está no decil superior de
renda de trabalho ou capital, possa estar também no decil superior de renda de
capital ou trabalho, respectivamente, ao longo do tempo.
Para
tanto, desenvolveram um gigantesco esforço de pesquisa – tanto em estatística
descritiva quanto em estatística teórica – cujos detalhes, entretanto, não
serão aqui examinados. Eis que ficam para aqueles que querem tomar contato com
a pesquisa de um modo mais detalhado e mais técnico. Os resultados obtidos
encontram-se na figura em sequência. E eles são suficiente para quem quer se
inteirar sobre o teor da pesquisa que realizaram.
Como se
pode ver, aquilo que designam como homoploutia cresceu muito no período
examinado; se estava em torno de 10% por volta de 1950, avançou para
aproximadamente 30% no final do período considerado. Isso significa que, agora,
30 por cento daqueles que, nos EUA, obtêm rendas do trabalho suficientemente
altas para ficarem entre os 10% superiores nessa categoria de rendimento, são
também aqueles que obtêm rendas de propriedade suficientemente grandes para se
situarem entre os 10% superiores na outra categoria de rendimento.
Deve-se
notar que os resultados obtidos com as três bases de dados são robustos, pois
se mostram consistentes entre si, apesar de diferirem significativamente.
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Uma pretensão teórica inovadora
A
evidência estatística apresentada pelos autores é bem convincente, o que não se
pode dizer do modo como a compreendem e a avaliam teoricamente. Sustentam, com
coragem e algum cinismo, que a distinção clássica entre trabalhadores e
capitalistas se tornou menos relevante atualmente. Pois, as estatísticas
mostram que há um número não desprezível de trabalhadores que são capitalistas.
O que supostamente lhes permite distinguir um “capitalismo clássico” e um
“capitalismo moderno”.
Os
economistas clássicos, como se mostrará logo a frente, presumiam sempre que
existiam grupos distintos de pessoas e famílias que tinham distintas fontes de
renda e que, por isso, formavam distintas classes sociais. Havia para eles os proprietários de terra que
recebiam renda da terra, os empreendedores capitalistas que recebiam lucros, os
capitalistas monetários que recebiam juros e os trabalhadores assalariados que
recebiam salários, além de uma classe média pequena que vivia de trabalho
autônomo.
“No
capitalismo clássico” – espeficam –, “os capitalistas eram considerados mais
ricos que os trabalhadores e que toda sua renda vinha da propriedade. (…) Havia
dois grupos separados de pessoas, com a composição de sua renda pessoal
refletindo suas posições no processo de produção. Normalmente, claro, os
capitalistas estavam no topo da distribuição de renda e os trabalhadores no
meio ou na base”.
Contudo,
segundo eles, esse quadro de posições sociais simples e distintas umas das
outras se modificou no capitalismo moderno: “A homoploutia rompe a forte
segregação entre capital e trabalho que existia no capitalismo clássico. Se ela
se espalhasse para o restante da distribuição, também romperia a ligação entre
o aumento da participação de capital e a crescente desigualdade interpessoal.
[De qualquer modo] a homoploutia no topo da repartição da renda traz dois novos
problemas. Cria uma classe alta bem protegida contra desenvolvimentos
macroeconômicos desfavoráveis, tornando, além disso, mais difícil a tributação
(…) dos muito ricos”.
De
fato, ao se tomar como exemplo Adam Smith, lê-se em A riqueza das nações, obra
que foi publicada no começo do último quartel do século XVIII (em 1776
precisamente), que o valor total da produção anual na Grã-Bretanha, obtido por
meio do uso combinado de terra, trabalho e ferramentas, podia ser dividido em
três partes distintas, as quais eram recebidas por três categorias distintas de
indivíduos, a renda da terra pelos proprietários fundiários, os salários pela
mão-de-obra e o lucro do capital pelos empreendedores capitalistas.
Ao se
examinar agora os Princípios de Economia de Alfred Marshall, publicado cem anos
depois, ou seja, no século XIX (em 1890 precisamente) lê-se ao algo semelhante,
mesmo de a teoria do valor deixou de se fundar no trabalho para se fundar na
produtividade marginal de fatores. Para ele, nessa perspectiva, o produto
líquido gerado na nação durante um ano divide-se entre os “agentes da produção”
segundo a sua produtividade marginal, sendo eles os ganhos do trabalho, os
juros e lucros do capital e a renda da terra.
No
entanto, aí já se encontra uma referência explícita à subclasse dos gerentes e
diretores de sociedades anônimas que recebem salários e que possuem – segundo
diz – pouco capital próprio.
Karl
Marx, num capítulo importante do livro terceiro de O capital (de número 27),
registra a tendência crescente de socialização do grande capital por meio das
sociedades por ações. Com ela, surge uma subclasse de capitalista formada por
administradores e dirigentes de capital alheio que recebem “salários”, ao mesmo
tempo em que aumenta o contingente dos capitalistas monetários que recebem
lucros, juros, dividendos e bonificações.
Como o
comprometimentos de tais gerentes depende da remuneração que obtém, é de se
esperar que os seus ganhos “salariais” eram já substantivos pelos padrões do
final do século XIX. Também não é improvável que parte dos ganhos desses
gerentes provenha já então da propriedade de capital.
Como
esses dirigentes fazem trabalho útil, mas não produzem eles próprios
mais-valor, os seus ganhos sob a rubrica de “salários” provêm de algum modo do
excedente gerado pelo trabalho produtivo no âmbito do capital industrial.
Ademais, como o número de tais funcionários diletos do capital aumentaram
certamente muito durante o período que vai do último quarte do século XIX até
meados do século XX, não é de se estranhar que tenha passado a existir agora um
contingente expressivo de indivíduos que aparecem como trabalhadores e que são
também capitalistas.
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Como explicar a homoploutia
Contudo,
o que se disse acima não é suficiente para dar conta do fenômeno registrado por
Yonatan Berman e Branko Milanovic com base numa análise estatística cujo
resultado mais importante foi acima apresentado literal e graficamente.
Qualquer que seja a explicação do fenômeno, não parece haver razão para pensar
– pode-se afirmar já aqui – que as classes sociais do capitalismo deixaram de
existir.
Ao
comparar o capitalismo com o feudalismo, uma distinção avulta na questão da
repartição do produto líquido social: no primeiro há e no segundo não há
mobilidade social, mesmo se grandes diferenças de riqueza e renda subsistem
entre as classes sociais. Contudo, como ela é pequena e lenta, não pode
explicar a existência de homoploutia.
Essa
explicação, portanto, só pode ser encontrada examinando o que aconteceu no
interior da classe capitalista. Se houve um aumento desse tipo de conjunção nos
Estados Unidos, entre 1950 e 2020, é porque as gerações sucessivas de
capitalistas passaram a obter em média maiores ganhos provindo formalmente de
trabalho. Como ainda não há uma pesquisa de campo esclarecedora, a explicação
do fenômeno se mantém nos limites de conjecturas.
Uma
primeira explicação possível poderia vir da hipótese de que uma fração
crescente da subclasse dos rentistas se engajou, por razões que não parecem
claras, no comando das empresas – não talvez das empresas propriamente
industriais que produzem mercadorias e que requerem uma administração
tecnicamente apropriada. É de se notar que essa espécie de conjunção parece ter
crescido no período neoliberal em que proliferaram empresas financeiras
voltadas para os mercados monetários agora em processo de globalização. Ora,
essas empresas remuneram bem aqueles que tem especialização em gestão de
finanças.
Como
Stephen Maher e Scott Aquanno notaram, entre 1980 e 2008, surgiu um novo tipo
de poder financeiro que estabeleceu novas formas de hegemonia sobre o capital
industrial norte-americano; eis que este, agora, aliás, passara a deslocar mais
intensamente pelo mundo, para a Ásia em particular, em busca de mão-de-obra
barata.
Além da
circulação de valores monetário em rede internacionalizadas, uma expressiva
expansão dos fundos de pensão ocorrida nos EUA passou a exigir o concurso de
financistas especializados. “Uma onda de centralização e concentração de
corporações criou ‘investidores institucionais’ que passaram a ter um poder
muito significativo sobre as firmas industriais”.
Yonatan
Berman e Branko Milanovic, ao invés dessa explicação macroeconômica, preferem
tentar uma explicação microeconômica que parece quase tautológica. Conjecturam
que ocorreram fatores favoráveis ao crescimento dessa conjunção: “O que
impulsionou a evolução observada da homoploutia? Em parte, esse aumento se
deveu à abundância de indivíduos que ganhavam altos salários, economizavam uma
grande parte deles, investiam e, após alguns anos, começaram a receber rendas
de grande capitalização. Também pode ter sido motivada pela crescente
importância da herança, recebida predominantemente por indivíduos nos mais
altos escalões de renda do trabalho”.
Ou
seja, passaram a existir trabalhadores muito bem remunerados que ficaram ricos,
que acumularam fortunas, que foram capazes de dar uma educação elitista para os
seus filhos, os quais, além de estarem assim capacitados para ocuparem também
postos de trabalho bem remunerados, beneficiaram-se também de herança mais
abundante deixada por seus pais. Ou seja, a lógica da acumulação de capital
preside também a lógica do enriquecimento familiar. Até aí nada de novo.
“Além
disso, seja qual for a causa do movimento original rumo a um grau maior de
homoploutia, é provável que na próxima geração a homoploutia aumente até mais.
Isso porque indivíduos nascidos em famílias ricas em capital que podem investir
fortemente na educação das crianças provavelmente receberiam salários altos.
Nesse sentido, a alta homoploutia é um mecanismo importante que pode limitar a
mobilidade social”.
Contudo,
Yonatan Berman e Branko Milanovic aventam também uma hipótese mais
interessante, qual seja ela, de que o progresso da concentração de renda
ocorrida no período – o que ficou registrado em inúmeros estudos –
correlacionou-se positivamente com a homoploutia.
Eis que
a concentração se verificou tanto na renda provinda formalmente do trabalho,
quanto na renda provida da riqueza capitalista acumulada. Eis que os testes
estatísticos mostraram “uma forte e robusta correlação positiva entre o
crescimento da homoploutia e o crescimento da desigualdade da renda do
trabalho”.
De
qualquer forma, esses dois autores desenvolveram métodos sofisticados de
estatística teórica para investigar as causas prováveis desse fenômeno
estatisticamente registrado. Os interessados – e devidamente capacitados –
podem consultar o texto original.
Aqui,
para finalizar, lança-se uma hipótese simples: a elevação do grau de
homoploutia na economia capitalista nos EUA – e provavelmente em outras
economias capitalistas adiantadas – deve-se, grosso modo, à chamada
financeirização ocorrida no período histórico em que prevaleceu o regime de
acumulação neoliberal.
Fonte:
Por Eleutério F. S. Prado, em A Terra é Redonda

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