Simulacros
de universidade
As
universidades brasileiras – embora não apenas elas – atravessam um processo
acelerado de deturpação de sua missão histórica. Instituições que, na tradição
ocidental, constituíram-se como espaços de preservação e renovação do
patrimônio racional, crítico e humanista afastam-se, hoje, cada vez mais, desse
horizonte.
Em seu
lugar, proliferam estruturas híbridas que mantêm apenas a aparência de
universidade, enquanto abdicam das exigências intelectuais que a definiram por
séculos. Tornam-se simulacros que se legitimam como se fossem avanço, quando
representam retrocesso mascarado de virtude.
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Universidade do capital
A
primeira forma desse simulacro emerge da submissão progressiva à lógica do
capital e do capitalismo. Pressionadas por métricas produtivistas,
financiamentos condicionados, avaliações tecnocráticas e expectativas de
“empregabilidade imediata”, as universidades estão funcionando como empresas.
O
conhecimento deixa de ser um fim em si mesmo e converte-se em insumo; cursos
são moldados por demandas mercadológicas; a pesquisa é orientada por
indicadores e editais; o ensino volta-se para competências operacionais.
A
promessa (que, na tradição ocidental, chamamos “iluminista”; alguns têm horror
ao termo!) da formação integral do indivíduo – intelectual, ética e política –
cede espaço a currículos utilitaristas e discursos de “eficiência”. O trabalho
docente transforma-se em prestação de serviços e estudantes passam a ser
tratados como “clientes”.
As
universidades tornam-se verdadeiras usinas de certificações, cujo objetivo é
responder a demandas econômicas imediatas. Vende-se essa capitulação como se
fosse modernização inevitável, quando não passa de uma rendição mascarada de
inovação. Nesse modelo, a universidade deixa de contribuir para a construção de
sociedades democráticas e esclarecidas.
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A universidade da opção pela ignorância
A
segunda forma de simulacro vem de uma reação simétrica, igualmente
empobrecedora: a tendência, hoje difundida, de negar o legado intelectual
acumulado pela tradição ocidental sob o rótulo de “pensamento colonial
eurocêntrico”.
Sob o
pretexto de “descolonizar” a universidade, defende-se o abandono puro e simples
do estudo de filósofos, cientistas e correntes que moldaram, por séculos, o
horizonte do conhecimento moderno; e não apenas para o (mal-afamado) Ocidente.
Em certos círculos universitários, tornou-se quase uma virtude alardear
ignorância seletiva, como se desconhecer a tradição fosse uma modalidade de
coragem moral.
A
crítica à “colonialidade do saber” é legítima quando busca fazer conhecer
perspectivas historicamente ignoradas. O que se vê, porém, com frequência
crescente, é outra coisa: a demonização indiscriminada de autores sem os
conhecer, a recusa do estudo rigoroso, a substituição da análise baseada em
conhecimento teórico-filosófico-científico pela militância superficial por
ideias mal fundamentadas.
Pretende-se
renovar o pensamento eliminando justamente aquilo que permite pensar – a
memória intelectual da humanidade. Mas não há produção de conhecimento novo que
não se apoie no conhecimento anterior; não há originalidade sem tradição; não
há crítica séria sem estudo profundo.
O
resultado é uma universidade que, em nome da “justiça epistemológica” (uma
formulação imprópria em seus próprios termos), dissolve o fundamento que torna
possível a vida acadêmica: o compromisso com o rigor, a racionalidade e a
continuidade do pensamento.
Assim,
ao lutar contra suposto colonialismo e imperialismo na ciência e no pensamento,
parte da academia universitária termina por colonizar-se a si mesma com
slogans, certezas fáceis e uma autoconfiança que cresce na razão inversa de sua
erudição.
Não se
construirá um futuro emancipador, seja para o pensamento e a ciência, seja para
a sociedade, edificando-o sobre o terreno das imposições dos interesses
momentâneos do capital e do capitalismo, ou sobre o terreno do improviso, da
impostura intelectual, da simplificação grosseira das ideias científicas e
filosóficas e, sobretudo, da imposição de “pautas” à universidade que a
deturpam de sua histórica missão.
Fonte:
Por Alipio De Sousa Filho, em A Terra é Redonda

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