A
notável expansão das cooperativas digitais
O
movimento cooperativo já é tradicional: mais de 12% da humanidade, mais de um
bilhão de pessoas são membros de alguma das 3 milhões cooperativas no mundo.
Seus trabalhadores representam algo com 10% dos empregos. As cooperativas
permitem formas diferentes de as pessoas se organizarem, precisamente de forma
cooperativa, em vez de simplesmente conseguir um “emprego” e fazer o que
mandam. De certa forma, asseguram uma cidadania econômica, ao tornar seus
membros parte ativa do próprio projeto, co-organizadores. O que hoje muda é a
facilidade de conectar-se online, de se articular em rede sem a necessidade das
reuniões presenciais, de gerar um território mais participativo, ou de ir além
do território, construindo atividades conectadas por convergência de interesses.
Ao conectar as transformações da revolução digital com as mudanças no mundo do
trabalho, Scholtz nos mostra o universo que emerge com força: as plataformas
cooperativas. O pano de fundo é que hoje o principal fator de produção é o
conhecimento, e este se gere de maneira muito mais eficiente por meio de
colaboração do que por competição.
O
universo digital pode ser resgatado e permitir a rearticulação da sociedade
pela base. Hoje, este espaço é dominantemente capturado pelos gigantes da
indústria da atenção – Google (Alphabet), Apple, Facebook (Meta), Amazon,
Microsoft, o chamado GAFAM, que se apropria da internet para extrair dados
privados e lucrar com a indústria da atenção. Isso pode mudar. Para dar um
exemplo, o Uber que se apropria de grande parte do que o cliente paga, é um
gigante dos transportes que não possui carros nem empregados, apenas faz
intermediação. Está sendo substituído em tantos lugares por plataformas
cooperativas (como a Drivers Cooperative, por exemplo em Nova York, com 9 mil
motoristas). Os lucros são distribuídos entre os cooperados, que definem eles
mesmos as regras de funcionamento. Nas palavras do autor, “podemos começar a
considerar o redesenho da apropriação da economia digital”.
É
interessante considerar a que ponto falta democracia no espaço do trabalho, a
chamada workplace democracy. A era da internet permite justamente a organização
em rede, a colaboração online, e formas de organização que adotam a forma legal
básica de cooperativa, aproveitando todo o potencial da conectividade muito
mais ágil das plataformas digitais, abrindo inclusive uma nova forma de
articulação social com os tradicionais movimentos sindicais de trabalhadores.
“As
plataformas cooperativas combinam o modelo comprovado da cooperativa, que foi
adotado por um bilhão de pessoas no mundo, com o modelo dinâmico da plataforma
digital (…) Priorizam o benefício da comunidade mais do que a extração de
lucro, resultando em um modelo de negócios mais sustentável e equitativo, que
gera valor para a comunidade e assegura valor de longo prazo tanto para os
fundadores como para os trabalhadores — ao contrário dos motoristas de Uber,
que geram lucros para acionistas distantes milhares de quilômetros”.( Trata-se
de romper a exploração pelos absentee owners, os proprietários ausentes, e
resgatar tanto os recursos gerados como o controle da gestão. É questão de nos
reapropriarmos dos avanços tecnológicos pela base, em vez de sermos manipulados
e explorados por corporações transnacionais no topo. A conectividade em rede
permite articulações horizontais e colaborativas em rede, saindo das pirâmides
verticalizadas de exploração.
Trata-se
de uma transformação sistêmica. É natural que no início as tecnologias e o seu
potencial tivessem sido apropriados por gigantes financeiros e da informação,
com as fortunas de que dispõem, e sua abrangência global. Gerou-se uma
oligopolização aproveitando recursos que são da natureza, os fótons, os
elétrons, as ondas eletromagnéticas, comprando os eventuais concorrentes, e
enriquecendo pela venda da nossa atenção. A compreensão das deformações sociais
que isso acarreta podem ser encontradas por exemplo no livro A Geração Ansiosa,
de Jonathan Haidt, que foca, em particular, no impacto sobre as crianças e a
juventude, ou em A máquina do caos, de Max Fisher, centrado nas manipulações
políticas. Uma visão de conjunto pode ser encontrada nos trabalhos de Shoshana
Zuboff, em particular A Era do Capitalismo de Vigilância. Brett Christophers,
no livro Rentier Capitalism, mostra como essas deformações se organizam no
mundo das finanças, no universo imaterial do dinheiro virtual, juros e
dividendos. A exploração é hoje dominantemente digital, e a desigualdade
explode.
A força
do livro de Scholtz é apresentar como pode ser invertido o “sinal” deste
universo tecnológico, de negativo para positivo, justamente através da sua
apropriação na base da sociedade. Muitas cidades estão gerando sistemas
colaborativos de gestão em rede, reapropriando-se da gestão das informações
(data sovereignty, soberania dos dados), e colocando o sistema a serviço da
comunidade. Gera-se o que o autor chama de smart cities baseadas em princípios
cooperativos digitais. Isso nos leva a pensar de maneira mais ampla o processo
decisório que nos rege. “O Estado-nação individual é demasiado grande para
assegurar envolvimento significativo, e também pequeno demais para enfrentar os
desafios globais. Neste sentido, a Rebel City Alliance emerge como uma liga de
cidades e municipalidades progressistas, incluindo Kerala na Índia, a região da
Emilia-Romagna na Itália, as regiões autônomas basca e catalã na Espanha, a
cidade de Nova York e a California.”
Essa
aliança, segundo o autor, “visa expandir e fortalecer o movimento, estimulando
redes entre os seus membros. Essas redes facilitam a troca de dados, kits de
ferramentas e sistemas financeiros que podem ser utilizados entre cidades.
Também permitem que os municípios comuniquem políticas que deram certo além de
seus limites, colaborando nos avanços tecnológicos, e aproveitando o imenso
potencial dos seus esforços coletivos. Essas colaborações resultaram em
municípios que implementam políticas que
asseguram preferência aos negócios de propriedade dos trabalhadores, dando-lhes
preferência nas políticas de compras.” Trata-se, na realidade de aproveitar “as
oportunidades e desafios únicos da era digital.”
O que
descobrimos, nos inúmeros exemplos trazidos por Scholtz, é justamente como as
comunidades, empresas, grupos de interesses diversificados, estão redesenhando
as formas de funcionamento no quadro da revolução digital. Trata-se de
“resgatar a internet como um bem público, estimular um mundo digital como bem
comum digital (digital commons), e criar um ambiente online que sustenta a sua
promessa original e promove a
apropriação pelas comunidades.” Frente ao controle global de gigantes
financeiros como BlackRock, Vanguard e State Street, que inclusive são
acionistas das grandes mídias sociais, ”o que precisamos é um reimaginar
radical do nosso sistema econômico para priorizar a equidade, justiça e
sustentabilidade, como uma questão de urgência.”
Entre
os exemplos está a rede Mondragón, no País Basco, “uma federação de 240
cooperativas de consumidores e de
trabalhadores, com 83 cooperativas e um
total de 68.743 empregados, com apoio aos Objetivos de Desenvolvimento
Sustentável da ONU.” A Amul Dairy na Índia, a maior cooperativa leiteira do
mundo, com mais de 3 milhões de pequenas fazendas como membros, é por sua vez
amplamente criticada por beneficiar agricultores de renda média ou superior, em
vez de trabalhadores pobres, tensões que aliás encontramos em grandes
cooperativas no Brasil. É um mundo em construção.
O
sistema busca novos equilíbrios, e em particular o aproveitamento das
oportunidades da gestão colaborativa em rede. O Platform Cooperativism
Consortium catalogou cerca de 543 projetos de plataformas digitais em mais de
49 países, formando um quadro de horizonte emergente que nos permite
identificar as histórias de sucesso mais importantes e os seus “tipos”, como
por exemplo a Société Mutuelle pour Artistes, mostrando a amplitude dos setores
beneficiados. O autor elenca também as experiências de plataformas cooperativas
na organização dos trabalhadores informais, em particular na Índia.
Muito
importante também é a redução das desigualdades salariais: “A Mondragón afirma
que a diferença salarial entre o trabalho executivo e o salário-básico no campo
ou na fábrica tem sido acordada em várias cooperativas, com um leque de 3:1 a
9:1, e uma mediana de 5:1. Comparem isso com os Estados Unidos, onde os CEOs
das 350 maiores companhias ganham cerca de 320 vezes do que um trabalhador
típico.”
Uma
área de particular importância é o resgate da gestão das poupanças pelas
próprias comunidades. É absurdo os bancos comerciais cobrarem juros
astronômicos sobre o dinheiro que nos emprestam, quando se trata do nosso
dinheiro, que na era digital temos de manter em bancos. O Grameen Bank de
Bangladesh é um exemplo de imenso sucesso de crédito. Scholtz apresenta o
exemplo do SEWA Cooperative Bank, o primeiro banco na Índia de propriedade e
gestão por mulheres, no Estado de Gujarat.
O autor
resume o que qualifica de economia digital cooperativa: “As plataformas
cooperativas asseguram auto-organização
e autonomia, oferecendo uma economia digital social aberta que começa no local
de trabalho. Permitem controle sobre os dados dos usuários e trabalhadores,
promovem uma orientação baseada no bem comum, e facilitam as tomadas de decisão
democráticas, com controle dentro de estruturas de propriedade distribuídas,
permitindo aos trabalhadores escapar dos ‘patrões algorítmicos’.”
Esse
enfoque de dinamizar a auto-organização dos trabalhadores tem muito a ver com a
transformação do mundo do trabalho: “Não é nenhum segredo que os sindicatos têm
lutado para se adaptar à desindustrialização e a ampliação de economias “gig” e
de serviços no século 21. Os trabalhadores “gig” operam em um ambiente
desregulado, que define um tipo inteiramente diferente de emprego.”(109) Isso
sugere, segundo Scholtz, que os sindicatos e o movimento cooperativo podem
juntar esforços para uma nova articulação do movimento de trabalhadores
adequado às novas atividades, e aproveitando as novas tecnologias para o
trabalho cooperativo em rede. É uma sinergia clara.
Um eixo
particularmente interessante de inovação é a apropriação da economia dos dados,
da informação, hoje controlados pelos data centers e gigantes da indústria da
atenção. “As cooperativas de dados estão emergindo nos diversos setores e
indústrias para assegurar que os dados sejam colhidos e controlados
democraticamente para os benefícios dos membros (…) A economia dos dados atual
(data economy) enfrenta assimetrias trágicas e insustentáveis de poder,
definidas pela centralização, vigilância e deformação do uso. (…) Há um
consenso crescente de que precisamos de um novo regime de governança dos dados,
baseado em processo decisório mais distribuído. Essa transição deve se apoiar
na compreensão de que a geração de dados é uma forma de trabalho coletivo invisível
e não pago. (…) Os dados gerados nas novas atividades digitais e relações
sociais geram valor financeiro comparável à produção econômica da era
industrial, com a economia da atenção digital servindo como uma fábrica sem
paredes, com o produto – cada um de nós – contribuindo à captura de valor pelas maiores empresas tecnológicas de forma
massiva, opaca, constante, e frequentemente involuntária.” Scholtz sugere o
conceito de “data democracy”.
O livro
termina com uma série de recomendações sobre o “como começar” uma iniciativa de
cooperativa digital, com mais exemplos. No essencial, quando o mundo do
trabalho muda, a conectividade muda, a matéria prima muda (muito mais
informação do que bens materiais). É natural que pensemos que novas
oportunidades se abrem. Eu penso nos imensos potenciais de se generalizar a
experiência do bairro de Casa Verde em São Paulo (veja Casa Verde no meu site
dowbor.org), que criou uma rede colaborativa online; nos potenciais de
articulação em rede de tantos produtores de informação independente, que
chamamos de imprensa alternativa mas que é essencialmente a imprensa da
verdade, não comercial; da articulação em rede das iniciativas de economia
solidária e tantos potenciais subutilizados como na área de entregadores.
Estamos
vivendo a revolução digital, até agora essencialmente apropriada pelos gigantes
do dinheiro, da informação, do conhecimento, enquanto buscamos preservar
direitos trabalhistas e preservação da privacidade, ou até do controle do nosso
dinheiro, mas não se trata de regressar ao passado, e sim de aproveitar o novo.
O conhecimento pode ser generalizado sem custos adicionais, podemos nos
organizar de maneira muito mais ágil com a conectividade. A luta de classes se
aprofunda mas mudou de rumos. Gostaria muito de recomendar o meu artigo A
economia política da revolução digital, que ajuda na compreensão das mudanças
sistêmicas que enfrentamos. A sistematização de propostas práticas apresentada
por Trebor Scholtz abre muitos horizontes, e constitui uma grande contribuição
prática. E leitura leve.
Fonte:
Por Ladislau Dowbor, em Outras Palavras

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