Luciano
Huck e os indígenas: o colonialismo digital que rouba dados, histórias e
futuros
Durante
a COP30, em Belém, estive presente numa fala de Davi Kopenawa Yanomami. Na
ocasião, Carlos Nobre perguntou a Davi se era possível eles, as pessoas
brancas, se tornarem indígenas, no sentido de haver uma possibilidade de eles
voltarem a serem indígenas.
Davi
Kopenawa respondeu seco que não, Carlos Nobre insistiu e Davi sacudiu a cabeça
que não. O interlocutor solicitou uma explicação, então Davi Kopenawa pegou o
microfone e saíram de seu corpo palavras que, para mim, pareciam sereias
bailarinas a voar-nadar no ar.
Ele
explicou que os Yanomami vieram de Omama, que foi quem criou a floresta, os
rios, o céu, os próprios Yanomami e transmitiu seus costumes a eles.
Prosseguindo, enquanto os Yanomami são filhos de Omama, os brancos vieram dos
macacos. É claro! É muito diferente ser filho de Omama, do que ser resultado de
uma teoria evolucionista sem alma, eu pensei.
Nesse
sentido, se os brancos voltarem às origens, eles se aproximarão dos macacos,
enquanto Davi Kopenawa está de mãos dadas com Omama. Percebi um semblante de
completa frustração, como se o sentido da vida tivesse desaparecido por alguns
instantes da face de Carlos Nobre. A pequena platéia acomodada num espaço
improvisado dentro de um barco ficou impactada.
Luciano
Huck está lá há 10 anos, segundo ele, trabalhando com povos indígenas. Até o
momento ele não se tornou nem 1% indígena. Ao contrário, a construção da sua
casa na Área de Preservação Ambiental (APA) de Tamoios, é cercada de
especulações sobre construções irregulares, danos ambientais e privatização da
praia e do mar em frente à sua mansão. Esse território ocupado pelo
apresentador é considerado tradicionalmente indígena/caiçara, apesar de não
haver demarcação.
O
tamanho da indiferença de Luciano Huck é proporcional à força contrária que o
poder do capital exerce sobre ele. E é assim mesmo que acontece com as pessoas
brancas. Mesmo as que se tornam “aliadas”, por mais bem intencionadas que
sejam, elas jamais compreenderão na pele, na alma, a complexidade de ser
indígena.
Primeiro,
porque para ser indígena é preciso ter memória, estar conectado no “wifi” da
ancestralidade. Segundo, porque ela nunca passou pelo apagamento, não foi
criada por uma mãe que sofreu processo de escravização, nunca teve sua casa
queimada, nunca teve seus amigos próximos assassinados, nunca passou fome e por
aí vai.
Terceiro,
porque na sociedade da moeda as pessoas são transformadas em consumidoras, como
constatou Pepe Mujica. Esses são apenas alguns pontos para exemplificar.
Reforçar
no imaginário das massas a imagem estereotipada indígena é vantajoso para
pessoas como Luciano Huck. O que os brancos “aliados” buscam hoje é, acima de
tudo, uma pessoa de cocar ou com traços étnicos lidos socialmente como
indígena, para validar suas próprias falas a respeito das pautas indígenas que
estão na centralidade do debate sobre a crise climática.
Ou você
já viu alguma pessoa branca ceder seu próprio espaço de poder para alguma
pessoa indígena que é sua fonte de informação ou que atua no mesmo campo? Se
viu, isso pode ser uma rara exceção.
O
processo que levou a criação do Parque Indígena do Xingu guarda uma das
histórias recentes mais sangrentas do Brasil. Ver o aclamado cineasta Takumã
Kuikuro se autoresponsabilizar pela ignorância e falta de autocrítica de
Luciano Huck, me cortou o coração. Os povos do Xingu não merecem essa
humilhação. Continuo te admirando Kuikuro, obrigada por existir! Sei que nem
você e nem os trabalhadores da produção são responsáveis pela postura
colonizadora que vimos nos bastidores daquela ingrata visita.
A cada
instante precisamos estar atentos às ciladas do sistema. Nos tempos atuais,
nossos principais inimigos são as big techs, justamente essas que desenvolvem
os sistemas operacionais e os principais aplicativos que rodam nos celulares.
Esse aparelho nos escuta e coleta nossos dados 24/7, 24 horas durante os sete
dias da semana. Por isso, é urgente pensarmos, não apenas que indígenas podem
usar celular, mas que deve haver soberania digital indígena.
O
extrativismo de dados, que em grande parte se dá por meio dos aparelhos
celulares, inaugurou uma outra forma de colonialismo, o Colonialismo Digital.
Informações sobre as línguas, culturas e segredos das comunidades indígenas
estão indo parar em bancos de dados hospedados fora do país e estão alimentando
sistemas de Inteligência artificial.
Através
dos algoritmos das big techs, a população é vigiada, modulada e controlada.
Temos a falsa sensação de estarmos com todas as informações do mundo na palma
das nossas mãos, quando na verdade, acessamos somente as informações que essas
empresas privadas neoliberais nos permitem acessar.
Além
disso, a corrida pelo desenvolvimento da Inteligência artificial entre China e
EUA afeta os territórios tradicionais no Brasil. Isso tem resultado no
crescente interesse na extração de terras raras e na instalação de datas
centers, que consomem grande volume de água e energia elétrica. Esses são
alguns pontos que mostram a urgência da participação indígena na tomada de
decisão sobre políticas públicas e regulamentações das tecnologias digitais.
A
soberania informacional é um dos requisitos para se obter a soberania digital.
Isso significa, que a capacidade das entidades públicas e políticas de
otimizarem a comunicação com o objetivo de melhorar a formação cidadã, importa
para o sistema democrático. Apesar das redes sociais seguirem as regras dos
algoritmos que favorecem a extrema direita, os grupos políticos indígenas estão
dando aula de como mobilizar a sociedade civil através dessas redes. Luciano
Huck sabe dessa força na qual imaginou que poderia nadar de braçada, quando no
auge do seu excesso de autoconfiança, foi arrastado pela pororoca.
O
apresentador afirmou ter interesse em se candidatar à presidência da República,
em entrevista à Revista Cidade Jardim (2025). Os maiores financiadores de
campanhas eleitorais são milionários que acumularam capital durante gerações às
custas da degradação planetária, muitos deles, amigos íntimos do futuro
candidato. Luciano Huck pode até conseguir ser presidente do Brasil algum dia,
mas jamais conseguirá ser um Davi Kopenawa Yanomami. Davi, além de liderança
política é uma liderança espiritual, um xamã que canta com os xapiri.
Fonte:
Por Suellen Tobler, em A Terra é Redonda

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