quinta-feira, 11 de dezembro de 2025

A envergonhada (mas voraz) privatização sob Lula 3

Prossegue, com impulso do ministério da Fazenda, a submissão ao poder dos rentistas. Por um lado, restringe-se o investimento público. Por outro, centenas de “concessões”, PPPs e PPIs entregam a interesses privados o grosso da infraestrutura do país — e até mesmo escolas e presídios...

A política de austericídio que vem sendo praticada há algumas décadas em nosso país pelos sucessivos governos que administraram o Palácio do Planalto tem provocado um conjunto nefasto de consequências. Isso ocorre em termos do aprofundamento das condições de vidada maioria da população, quer seja em termos econômicos ou em termos sociais. A combinação perversa de política monetária arrochada com austeridade fiscal rigorosa provoca a redução da capacidade de realização de despesas primárias por parte do Estado e o aumento extraordinário dos gastos financeiros com o pagamento de juros da dívida pública.

Do ponto de vista da evolução histórica, um dos elementos mais dramáticos de tal conservadorismo na condução da política econômica tem sido a política privatizante levada a cabo desde então. Na verdade, os processos de privatização caracterizam-se por um conjunto amplo de modalidades de aumento da participação do capital privado na esfera que pertencia ao Estado, por exemplo na oferta de bens e serviços públicos de forma geral. Assim, caracteriza-se como uma tentativa de narrativa enganosa o discurso de que “concessão não é privatização”, por exemplo. Trata-se de uma desculpa esfarrapada de quem se vê no incômodo de defender o indefensável, ou seja, o fato de que durante os sucessivos governos do Partido dos Trabalhadores (PT) houve um aumento das estatísticas expressando a elevação da participação do capital privado em um sem-número de atividades tradicionalmente sob a responsabilidade do setor público.

<><> O longo processo de privatização.

Os processos de privatização podem ir desde as formas mais características de venda completa de um patrimônio público ao capital privado até modelos mais sofisticados de transferência ao setor privado de espaços para acumulação que deveriam ser atribuição do Estado brasileiro.

Considerando estes casos mais extremos para ficar mais claro, temos a venda de 100% do ativo de empresas estatais para grupos privados, como foram os simbólicos leilões de venda da Embraer ou da Companhia Vale do Rio Doce, por exemplo. A primeira foi vendida na Bolsa de Valores de São Paulo em 1994, ao passo que a Vale foi vendida 3 anos depois na Bolsa de Valores do Rio de Janeiro. Em ambos os casos deu-se a utilização das chamadas “moedas podres” como meios de pagamento. Os títulos eram comprados com deságios enormes no mercado financeiro secundário e os compradores despendiam, na verde, valores muito mais baixos do que os expressos nominalmente nos papéis aceitos pelo governo nos leilões.

No entanto, o conceito de privatização é mais amplo do que o verificado nestes casos mais simbólicos de alienação integral do patrimônio público ao capital privado. Há casos de venda da participação acionária minoritária do governo em suas empresas ou ainda os processos de ampliação do volume de venda de ações dirigidas exclusivamente aos grupos privados. Com isso, o setor público ainda mantém pelo menos 50% do capital votante nas empresas, mas é inequívoca a vigência de um processo de privatização. Basta ver as limitações a que deve se submeter a Petrobrás em suas ações empresariais depois que foram realizadas operações de lançamento de suas ações na Bolsa de Nova Iorque dirigidas aos investidores estrangeiros. Esse mecanismo foi utilizado tanto por Fernando Henrique Cardoso (FHC) em 1999 quanto por Lula em 2010.

<><> Concessão e PPP são modalidades de privatização.

Mas a privatização inclui também outros processos menos evidentes de transferência de patrimônio público ao capital privado ou então de aumento da participação relativa do mesmo em setores marcados pela presença do Estado. Trata-se dos mecanismos da concessão e da Parceria Público Privada (PPP). Em ambos os casos o que se observa é o ingresso do capital em atividades até então não muito procuradas como ramo de acumulação capitalista. Aqui podemos mencionar as ofertas na área da educação e da saúde, mas que pouco a pouco foram sendo ampliadas para a assistência social, para previdência e para a segurança pública. O modelo do pacto federativo envolve a presença crescente do capital em setores oferecidos pelas administrações de estados e municípios.

Outros ramos em que se tem observado a intensificação dos processos privatizantes são os que compõem a infraestrutura. Neste caso, a institucionalidade da máquina do governo federal se sofisticou, por meio do “Programa de Parcerias de Investimentos” (PPI), criado em 2016 por meio da Lei 13.334, que foi lançado durante o golpeachment contra Dilma Roussef. De acordo com a página do programa na internet, ele tem por “finalidade ampliar e fortalecer a interação entre o Estado e a iniciativa privada por meio da celebração de contratos de parceria e de outras medidas de desestatização”.

Segundo dados oficiais, já foram concluídos 283 projetos no âmbito do PPI, com grande concentração nas áreas de transportes, energia e infraestrutura urbana. Além disso, ainda estão em andamento outros 223 projetos, com maior concentração nas áreas de transportes, infraestrutura urbana e meio ambiente. Assim, até o momento já foram cadastrados 506 projetos no âmbito do programa de PPPs do governo federal, incluindo uma gama variada de áreas, ramos e setores em que o capital privado é chamado a ocupar espaços para ampliar seu processo de acumulação.

Observa-se uma concentração em 3 áreas que representam quase 3/4 do total:

i)            transportes com 46%;

ii)           infraestrutura urbana com 15%; e

iii)          energia com 13%.

Além disso, chama a atenção no interior do aglomerado “Outros” a existência de projetos envolvendo a área prisional e o ramo de hidrovias. No primeiro caso consta a privatização de presídios, em especial por meio de PPPs, para o município gaúcho de Erechim e para o município catarinense de Blumenau. Por outro lado, o Conselho do PPI também aprovou a inclusão de importantes sistemas hidroviários da Amazônia para serem objeto de privatização. Trata-se dos projetos envolvendo os rios Madeira, Tocantins e Tapajós.

PPI – Total de projetos concluídos e em andamento

Transportes ................ 233 .....................46%

Infr. Urbana ................. 78 ......................15%

Energia ........................ 65 ......................13%

Meio Ambiente .............. 39 .......................8%

Saneamento .................. 26 ......................5%

Outros ..........................65 ......................13%

TOTAL ........................506 .......................100%

Além dos projetos acima mencionados, está em curso também a tentativa de privatização dos sistemas de trens urbanos e metrôs nas regiões metropolitanas de Porto Alegre e Recife, ambos pertencentes ao governo federal por meio da CBTU e da Trensurb. Apesar das promessas de Lula na campanha de 2022 de que não iria dar seguimento às tentativas privatizantes de Temer e Bolsonaro, os processos de transferência das referidas empresas estatais ao capital privado seguem seu curso. Postura semelhante mantém o governo federal em relação à privatização das empresas estaduais de saneamento, em especial a Agepisa do Piauí, a Compesa de Pernambuco e a Sabesp de São Paulo. Em todos os casos acima o BNDES participou de forma ativa do processo de transferência das empresas estatais ao setor privado.

Enfim, o que se percebe é que os processos de privatização seguem a todo vapor em nosso País, mesmo neste terceiro mandato de Lula. Se os casos atuais não envolvem a simbologia catastrófica de alienação absoluta e definitiva do patrimônio público ao capital privado em leilões na sede do mercado de ações, o fato é que estamos diante de um dos maiores processos de transferência de ativos públicos aos empreendedores do setor privado.

¨      Pochmann: O IBGE e um novo momento para o Brasil

A relação entre estatística e Estado moderno é profunda e estrutural. Contar, medir e classificar nunca foi um ato neutro, constituindo a forma pela qual o poder e condição do exercício da governança do território e população se estabelece. No Brasil, essa relação atravessa períodos distintos — do Império ao regime militar, da redemocratização ao marco digital contemporâneo interpenetrados por ciclos de modernização estatal, padrões de desenvolvimento e mudanças tecnológicas globais.

Nesta passagem para o segundo quarto do século 21, o Brasil vive um momento singular que aponta para a reconstrução das capacidades do Estado possível. A partir da erosão do regime neoliberal, a recentralidade necessária da governança dos dados e a imposição da soberania pública sobre as plataformas privadas constitui a base fundamental para a retomada do planejamento no país.

O sistema estatístico e geográfico nacional torna-se, nesse sentido, o pilar estratégico da reorganização do planejamento com o fortalecimento da democracia e do enfrentamento decisivo das desigualdades estruturais. Esse foi o eixo motivador que mobilizou servidores públicos durante a realização da maior Conferência Nacional de diálogos com produtores e usuários de dados no Brasil entre os dias 3 e 5 de dezembro na cidade de Salvador. Um exemplo concreto da participação democrática da superação possível do passado autoritário do sistema estatístico e geográfico brasileiro.

<><> A trajetória autoritária do Sistema Estatístico e Geográfico Nacional

O Sistema Estatístico e Geográfico oficial brasileiro tem raízes no período imperial, quando o país, inspirado pelas conferências estatísticas internacionais e pelo modelo institucional europeu, iniciou a organização sistemática da produção pública de informações oficiais. A lógica autoritária era clara: a organização das informações sobre população, território e economia era essencial para consolidar o Estado nacional durante uma sociedade agrária atrasada e assentada na escravidão. Em 1871, por exemplo, surgiu a Diretoria-Geral de Estatística vinculada à Secretaria de Estado dos Negócios da Agricultura, Comércio e Obras Públicas do Império responsável até 1930 pela realização dos censos demográficos e trabalhos estatísticos na época.

Esse processo ganhou impulso decisivo com a Revolução de 1930 a partir da criação do Instituto Nacional de Estatística, em 1934, e a sua transformação no IBGE no ano de 1938 diretamente vinculado à presidência da República. Como fundamento do planejamento da transição do longevo agrarismo para a nova sociedade urbana e industrial, a consolidação institucional do moderno Sistema Estatísticas e Geográfico Nacional somente terminou ocorrendo sob os auspícios do autoritarismo prevalecente no Estado Novo (1937-1945).

A partir da década de 1950, a transição da antiga e primitiva sociedade agrária para a urbana e industrial se afirmou em pleno acirramento da Guerra Fria (1947-1991) com a emergência do novo e importante movimento de massas em torno da defesa democrática das Reformas de Base no governo do presidente João Goulart (1961-1964). O Golpe de Estado em 1964 foi acompanhado da transformação autoritária do IBGE com prisões, afastamentos de servidores e a perda do regime de trabalho da estabilidade, ao mesmo tempo que deixou de estar vinculado diretamente à presidência da República.

A transferência do IBGE para a linha ministerial, equivalente a experiência antiga da Diretoria-Geral de Estatística, aconteceu materializada simultaneamente tanto por sua alteração institucional de autarquia para fundação pública como pela aniquilação da faculdade interpretativa dos seus servidores da própria produção científica. Com isso, o perfil dos servidores identificados como intelectuais pela capacidade de compreensão do Brasil foi remodelado pela onda da tecnocratização super qualificada.

A compensação imposta pelo Estado autoritário ocorreu com o surgimento do Instituto de Pesquisa Aplicada que a partir de 1964 passou a ser o intérprete oficial da produção científica gerada pelo IBGE. Em grande medida atendeu aos propósitos da Aliança para o Progresso lançado pelos Estados Unidos desde o início da década de 1960 para conter o avanço do comunismo após a Revolução Cubana, em 1959.

Naquele contexto global ocorreu o importante aprofundamento da modernização estatística e geográfica do IBGE a partir da internalização de parte de metodologias científicas oriundas dos Estados Unidos. Desde 1967, o Instituto passou a desenvolver pesquisas amostrais como a Pesquisa Nacional por Amostras de Domicílios, os índices de preços no final da década de 1970 e o aprimoramento das Contas Nacionais que apuram o Produto Interno Bruto iniciado ainda no começo dos anos de 1980.

Nesse sentido destaca-se a importância do Projeto Atlântico que constituiu o braço mais operativo mais amplo da Aliança para o Progresso. Por meio de diversas missões técnicas aos Estados Unidos avançaram diversas cooperações técnicas e universitárias com a formação de especialistas brasileiros nos centros avançados de estatística, geografia, economia e planejamento no Census Bureau, Bureau of Labor Statistics e Universidades de Michigan, Stanford e Wisconsin, além da Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (USAID)

<><> A modernização democrática do Sistema Estatístico e Geográfico Nacional

De forma democrática, transparente e participativa, o Brasil avança no presente a  modernização democrática do seu Sistema Estatístico e Geográfico robusto, cada vez mais alinhado às melhores práticas internacionais e às demandas de planejamento do Estado brasileiro. Isso porque, o Brasil chegou ao início da década de 2020 tendo percorrido um brutal ciclo de enfraquecimento e instabilidade institucional.

Somente entre os anos de 2016 a 2023, por exemplo, o IBGE registrou, por exemplo, cinco presidentes em apenas sete anos, cujo mandado médio foi de apenas 1,4 anos de duração. Sem concursos público para renovação dos seus servidores, a ausência de reajustes nas remunerações e a queda orçamentária que congelou estudos e pesquisas apontava para o desmanche da maior e mais importante instituição de pesquisa pública do Brasil.

Desde o ano de 2023, contudo, encontra-se em curso o reforço inédito do Sistema Estatístico e Geográfico Nacional. Uma condição fundante da reconstrução do Estado social e de planejamento. A disputa entre o Estado nacional e as big techs da atualidade exige novas políticas de soberania informacional, proteção de dados e regulação das plataformas.

Ao contrário dos períodos autoritários anteriores, a transformação digital ocorre com no Brasil com ampla e democrática participação social por meio de conferências nacionais, encontros de servidores e diversos mecanismos de escuta e transparência. Por isso, este terceiro grande ciclo transformador do Sistema Estatístico e Geográfico Nacional surgido do período agrarista Imperial–Republicano que concedeu a sua formação incipiente e de inspiração europeia, passando pela sociedade urbana e industrial de consolidação e modernização autoritária tanto no Estado Novo como na Ditadura Civil Militar, chega-se ao novo modelo em curso digital–democrático sob a soberania informacional, a governança participativa e a disputa com plataformas privadas globais.

Pela construção do Plano Geral de Informações Estatísticas e Geográficas para o período de 2026 a 2030, o IBGE consagra pela primeira vez de forma democrática e participativa o planejamento da produção oficial e soberana dos dados nacionais. Antes disso, somente em 1974 havia ocorrido o planejamento da produção estatística e geográfica sob o manto da modernização tecnocrática e profundamente autoritária.

 

Fonte: Por Paulo Kliass, em Outras Palavras/Jornal GGN

 

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