A
envergonhada (mas voraz) privatização sob Lula 3
Prossegue,
com impulso do ministério da Fazenda, a submissão ao poder dos rentistas. Por
um lado, restringe-se o investimento público. Por outro, centenas de
“concessões”, PPPs e PPIs entregam a interesses privados o grosso da
infraestrutura do país — e até mesmo escolas e presídios...
A
política de austericídio que vem sendo praticada há algumas décadas em nosso
país pelos sucessivos governos que administraram o Palácio do Planalto tem
provocado um conjunto nefasto de consequências. Isso ocorre em termos do
aprofundamento das condições de vidada maioria da população, quer seja em
termos econômicos ou em termos sociais. A combinação perversa de política
monetária arrochada com austeridade fiscal rigorosa provoca a redução da
capacidade de realização de despesas primárias por parte do Estado e o aumento
extraordinário dos gastos financeiros com o pagamento de juros da dívida
pública.
Do
ponto de vista da evolução histórica, um dos elementos mais dramáticos de tal
conservadorismo na condução da política econômica tem sido a política
privatizante levada a cabo desde então. Na verdade, os processos de
privatização caracterizam-se por um conjunto amplo de modalidades de aumento da
participação do capital privado na esfera que pertencia ao Estado, por exemplo
na oferta de bens e serviços públicos de forma geral. Assim, caracteriza-se
como uma tentativa de narrativa enganosa o discurso de que “concessão não é
privatização”, por exemplo. Trata-se de uma desculpa esfarrapada de quem se vê
no incômodo de defender o indefensável, ou seja, o fato de que durante os
sucessivos governos do Partido dos Trabalhadores (PT) houve um aumento das
estatísticas expressando a elevação da participação do capital privado em um
sem-número de atividades tradicionalmente sob a responsabilidade do setor
público.
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O longo processo de privatização.
Os
processos de privatização podem ir desde as formas mais características de
venda completa de um patrimônio público ao capital privado até modelos mais
sofisticados de transferência ao setor privado de espaços para acumulação que
deveriam ser atribuição do Estado brasileiro.
Considerando
estes casos mais extremos para ficar mais claro, temos a venda de 100% do ativo
de empresas estatais para grupos privados, como foram os simbólicos leilões de
venda da Embraer ou da Companhia Vale do Rio Doce, por exemplo. A primeira foi
vendida na Bolsa de Valores de São Paulo em 1994, ao passo que a Vale foi
vendida 3 anos depois na Bolsa de Valores do Rio de Janeiro. Em ambos os casos
deu-se a utilização das chamadas “moedas podres” como meios de pagamento. Os
títulos eram comprados com deságios enormes no mercado financeiro secundário e
os compradores despendiam, na verde, valores muito mais baixos do que os
expressos nominalmente nos papéis aceitos pelo governo nos leilões.
No
entanto, o conceito de privatização é mais amplo do que o verificado nestes
casos mais simbólicos de alienação integral do patrimônio público ao capital
privado. Há casos de venda da participação acionária minoritária do governo em
suas empresas ou ainda os processos de ampliação do volume de venda de ações
dirigidas exclusivamente aos grupos privados. Com isso, o setor público ainda
mantém pelo menos 50% do capital votante nas empresas, mas é inequívoca a
vigência de um processo de privatização. Basta ver as limitações a que deve se
submeter a Petrobrás em suas ações empresariais depois que foram realizadas
operações de lançamento de suas ações na Bolsa de Nova Iorque dirigidas aos
investidores estrangeiros. Esse mecanismo foi utilizado tanto por Fernando
Henrique Cardoso (FHC) em 1999 quanto por Lula em 2010.
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Concessão e PPP são modalidades de privatização.
Mas a
privatização inclui também outros processos menos evidentes de transferência de
patrimônio público ao capital privado ou então de aumento da participação
relativa do mesmo em setores marcados pela presença do Estado. Trata-se dos
mecanismos da concessão e da Parceria Público Privada (PPP). Em ambos os casos
o que se observa é o ingresso do capital em atividades até então não muito
procuradas como ramo de acumulação capitalista. Aqui podemos mencionar as
ofertas na área da educação e da saúde, mas que pouco a pouco foram sendo
ampliadas para a assistência social, para previdência e para a segurança
pública. O modelo do pacto federativo envolve a presença crescente do capital
em setores oferecidos pelas administrações de estados e municípios.
Outros
ramos em que se tem observado a intensificação dos processos privatizantes são
os que compõem a infraestrutura. Neste caso, a institucionalidade da máquina do
governo federal se sofisticou, por meio do “Programa de Parcerias de
Investimentos” (PPI), criado em 2016 por meio da Lei 13.334, que foi lançado
durante o golpeachment contra Dilma Roussef. De acordo com a
página do programa na internet, ele tem por “finalidade ampliar
e fortalecer a interação entre o Estado e a iniciativa privada por meio da
celebração de contratos de parceria e de outras medidas de desestatização”.
Segundo
dados oficiais, já foram concluídos 283 projetos no âmbito do PPI, com grande
concentração nas áreas de transportes, energia e infraestrutura urbana. Além
disso, ainda estão em andamento outros 223 projetos, com maior concentração nas
áreas de transportes, infraestrutura urbana e meio ambiente. Assim, até o
momento já foram cadastrados 506 projetos no âmbito do programa de PPPs do
governo federal, incluindo uma gama variada de áreas, ramos e setores em que o
capital privado é chamado a ocupar espaços para ampliar seu processo de
acumulação.
Observa-se
uma concentração em 3 áreas que representam quase 3/4 do total:
i)
transportes
com 46%;
ii)
infraestrutura
urbana com 15%; e
iii)
energia
com 13%.
Além
disso, chama a atenção no interior do aglomerado “Outros” a existência de
projetos envolvendo a área prisional e o ramo de hidrovias. No primeiro caso
consta a privatização de presídios, em especial por meio de PPPs, para o
município gaúcho de Erechim e para o município catarinense de Blumenau. Por
outro lado, o Conselho do PPI também aprovou a
inclusão de importantes sistemas hidroviários da Amazônia para serem objeto de
privatização. Trata-se dos projetos envolvendo os rios Madeira, Tocantins e
Tapajós.
PPI
– Total de projetos concluídos e em andamento
Transportes
................ 233 .....................46%
Infr.
Urbana ................. 78 ......................15%
Energia
........................ 65 ......................13%
Meio
Ambiente .............. 39 .......................8%
Saneamento
.................. 26 ......................5%
Outros
..........................65 ......................13%
TOTAL
........................506 .......................100%
Além
dos projetos acima mencionados, está em curso também a tentativa de
privatização dos sistemas de trens urbanos e metrôs nas regiões metropolitanas
de Porto Alegre e Recife, ambos pertencentes ao governo federal por meio da
CBTU e da Trensurb. Apesar das promessas de Lula na campanha de 2022 de que não
iria dar seguimento às tentativas privatizantes de Temer e Bolsonaro, os
processos de transferência das referidas empresas estatais ao capital privado
seguem seu curso. Postura semelhante mantém o governo federal em relação à
privatização das empresas estaduais de saneamento, em especial a Agepisa do
Piauí, a Compesa de Pernambuco e a Sabesp de São Paulo. Em todos os casos acima
o BNDES participou de forma ativa do processo de transferência das empresas estatais
ao setor privado.
Enfim,
o que se percebe é que os processos de privatização seguem a todo vapor em
nosso País, mesmo neste terceiro mandato de Lula. Se os casos atuais não
envolvem a simbologia catastrófica de alienação absoluta e definitiva do
patrimônio público ao capital privado em leilões na sede do mercado de ações, o
fato é que estamos diante de um dos maiores processos de transferência de
ativos públicos aos empreendedores do setor privado.
¨
Pochmann: O IBGE e um novo momento para o Brasil
A
relação entre estatística e Estado moderno é profunda e estrutural. Contar,
medir e classificar nunca foi um ato neutro, constituindo a forma pela qual o
poder e condição do exercício da governança do território e população se
estabelece. No Brasil, essa relação atravessa períodos distintos — do Império
ao regime militar, da redemocratização ao marco digital contemporâneo
interpenetrados por ciclos de modernização estatal, padrões de desenvolvimento
e mudanças tecnológicas globais.
Nesta
passagem para o segundo quarto do século 21, o Brasil vive um momento singular
que aponta para a reconstrução das capacidades do Estado possível. A partir da
erosão do regime neoliberal, a recentralidade necessária da governança dos
dados e a imposição da soberania pública sobre as plataformas privadas
constitui a base fundamental para a retomada do planejamento no país.
O
sistema estatístico e geográfico nacional torna-se, nesse sentido, o pilar
estratégico da reorganização do planejamento com o fortalecimento da democracia
e do enfrentamento decisivo das desigualdades estruturais. Esse foi o eixo
motivador que mobilizou servidores públicos durante a realização da maior
Conferência Nacional de diálogos com produtores e usuários de dados no Brasil
entre os dias 3 e 5 de dezembro na cidade de Salvador. Um exemplo concreto da
participação democrática da superação possível do passado autoritário do
sistema estatístico e geográfico brasileiro.
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A trajetória autoritária do Sistema Estatístico e Geográfico Nacional
O
Sistema Estatístico e Geográfico oficial brasileiro tem raízes no período
imperial, quando o país, inspirado pelas conferências estatísticas
internacionais e pelo modelo institucional europeu, iniciou a organização
sistemática da produção pública de informações oficiais. A lógica autoritária
era clara: a organização das informações sobre população, território e economia
era essencial para consolidar o Estado nacional durante uma sociedade agrária
atrasada e assentada na escravidão. Em 1871, por exemplo, surgiu a
Diretoria-Geral de Estatística vinculada à Secretaria de Estado dos Negócios da
Agricultura, Comércio e Obras Públicas do Império responsável até 1930 pela
realização dos censos demográficos e trabalhos estatísticos na época.
Esse
processo ganhou impulso decisivo com a Revolução de 1930 a partir da criação do
Instituto Nacional de Estatística, em 1934, e a sua transformação no IBGE no
ano de 1938 diretamente vinculado à presidência da República. Como fundamento
do planejamento da transição do longevo agrarismo para a nova sociedade urbana
e industrial, a consolidação institucional do moderno Sistema Estatísticas e
Geográfico Nacional somente terminou ocorrendo sob os auspícios do
autoritarismo prevalecente no Estado Novo (1937-1945).
A
partir da década de 1950, a transição da antiga e primitiva sociedade agrária
para a urbana e industrial se afirmou em pleno acirramento da Guerra Fria
(1947-1991) com a emergência do novo e importante movimento de massas em torno
da defesa democrática das Reformas de Base no governo do presidente João
Goulart (1961-1964). O Golpe de Estado em 1964 foi acompanhado da transformação
autoritária do IBGE com prisões, afastamentos de servidores e a perda do regime
de trabalho da estabilidade, ao mesmo tempo que deixou de estar vinculado
diretamente à presidência da República.
A
transferência do IBGE para a linha ministerial, equivalente a experiência
antiga da Diretoria-Geral de Estatística, aconteceu materializada
simultaneamente tanto por sua alteração institucional de autarquia para
fundação pública como pela aniquilação da faculdade interpretativa dos seus
servidores da própria produção científica. Com isso, o perfil dos servidores
identificados como intelectuais pela capacidade de compreensão do Brasil foi
remodelado pela onda da tecnocratização super qualificada.
A
compensação imposta pelo Estado autoritário ocorreu com o surgimento do
Instituto de Pesquisa Aplicada que a partir de 1964 passou a ser o intérprete
oficial da produção científica gerada pelo IBGE. Em grande medida atendeu aos
propósitos da Aliança para o Progresso lançado pelos Estados Unidos desde o
início da década de 1960 para conter o avanço do comunismo após a Revolução
Cubana, em 1959.
Naquele
contexto global ocorreu o importante aprofundamento da modernização estatística
e geográfica do IBGE a partir da internalização de parte de metodologias
científicas oriundas dos Estados Unidos. Desde 1967, o Instituto passou a
desenvolver pesquisas amostrais como a Pesquisa Nacional por Amostras de
Domicílios, os índices de preços no final da década de 1970 e o aprimoramento
das Contas Nacionais que apuram o Produto Interno Bruto iniciado ainda no
começo dos anos de 1980.
Nesse
sentido destaca-se a importância do Projeto Atlântico que constituiu o braço
mais operativo mais amplo da Aliança para o Progresso. Por meio de diversas
missões técnicas aos Estados Unidos avançaram diversas cooperações técnicas e
universitárias com a formação de especialistas brasileiros nos centros
avançados de estatística, geografia, economia e planejamento no Census Bureau,
Bureau of Labor Statistics e Universidades de Michigan, Stanford e Wisconsin,
além da Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (USAID)
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A modernização democrática do Sistema Estatístico e Geográfico Nacional
De
forma democrática, transparente e participativa, o Brasil avança no presente
a modernização democrática do seu Sistema Estatístico e Geográfico
robusto, cada vez mais alinhado às melhores práticas internacionais e às
demandas de planejamento do Estado brasileiro. Isso porque, o Brasil chegou ao
início da década de 2020 tendo percorrido um brutal ciclo de enfraquecimento e
instabilidade institucional.
Somente
entre os anos de 2016 a 2023, por exemplo, o IBGE registrou, por exemplo, cinco
presidentes em apenas sete anos, cujo mandado médio foi de apenas 1,4 anos de
duração. Sem concursos público para renovação dos seus servidores, a ausência
de reajustes nas remunerações e a queda orçamentária que congelou estudos e
pesquisas apontava para o desmanche da maior e mais importante instituição de
pesquisa pública do Brasil.
Desde o
ano de 2023, contudo, encontra-se em curso o reforço inédito do Sistema
Estatístico e Geográfico Nacional. Uma condição fundante da reconstrução do
Estado social e de planejamento. A disputa entre o Estado nacional e as big
techs da atualidade exige novas políticas de soberania informacional,
proteção de dados e regulação das plataformas.
Ao
contrário dos períodos autoritários anteriores, a transformação digital ocorre
com no Brasil com ampla e democrática participação social por meio de
conferências nacionais, encontros de servidores e diversos mecanismos de escuta
e transparência. Por isso, este terceiro grande ciclo transformador do Sistema
Estatístico e Geográfico Nacional surgido do período agrarista
Imperial–Republicano que concedeu a sua formação incipiente e de inspiração
europeia, passando pela sociedade urbana e industrial de consolidação e
modernização autoritária tanto no Estado Novo como na Ditadura Civil Militar,
chega-se ao novo modelo em curso digital–democrático sob a soberania
informacional, a governança participativa e a disputa com plataformas privadas
globais.
Pela
construção do Plano Geral de Informações Estatísticas e Geográficas para o
período de 2026 a 2030, o IBGE consagra pela primeira vez de forma democrática
e participativa o planejamento da produção oficial e soberana dos dados
nacionais. Antes disso, somente em 1974 havia ocorrido o planejamento da
produção estatística e geográfica sob o manto da modernização tecnocrática e
profundamente autoritária.
Fonte:
Por Paulo Kliass, em Outras Palavras/Jornal GGN

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