Especialista
americano defende classificar facções e milícias como terroristas: 'País está
ameaçado, é preciso arriscar'
Classificar organizações criminosas
como terroristas,
como está em discussão agora no Brasil, é uma estratégia arriscada, mas que se
torna necessária quando o Estado e a segurança da população estão ameaçados.
Essa é
a visão de Michael Miklaucic, ex-pesquisador da Universidade de Defesa
Nacional, ligada ao Departamento de Estado dos Estados Unidos, que hoje
coordena a Cátedra Oswaldo Aranha de Segurança e Defesa, um núcleo de estudos
da Universidade Federal de São Paulo (USP) dedicado à análise sobre segurança
pública.
"O
Estado está ameaçado e em risco", diz Miklaucic sobre o combate ao crime
organizado no Brasil.
"Contanto
que se consiga equilibrar os direitos dos cidadãos com a luta contra o crime
organizado transnacional, todos os elementos da força nacional devem ser
aplicados."
Para
Miklaucic, uma das maiores vantagens de equiparar as facções e milícias a
grupos terroristas é proporcionar maior liberdade às forças de segurança para
agirem contra os criminosos. "Mas há também aspectos negativos, e esse é
um equilíbrio muito delicado", pondera.
Parlamentares
e governadores de oposição ao governo federal têm se mobilizado para aprovar leis que classifiquem como
grupos terroristas facções como o Primeiro Comando da Capital (PCC) e o Comando
Vermelho (CV).
O tema
ganhou impulso após a megaoperação policial em favelas no
Rio de Janeiro no final de outubro — que resultou em 121 mortes e é
considerada uma das mais letais da história da cidade e considerada uma chacina
por organizações de defesa dos direitos humanos, o que autoridades negam.
Críticos,
porém, argumentam que ampliar o conceito de terrorismo no Brasil pode abrir as
portas para intervenções estrangeiras e até sanções econômicas.
Miklaucic
afirma que a medida poderia, de fato, aumentar as chances de envolvimentos
dos Estados Unidos na luta
brasileira contra o crime organizado, como ocorre neste momento na América
Latina, onde o presidente Donald Trump vem expandindo a presença militar
americana em águas internacionais e prometendo o início de operações em terra
em breve.
Mas,
segundo o professor, que no passado serviu como subsecretário do Departamento
de Estado para Assuntos de Crimes de Guerra, qualquer ingerência americana,
seja por meio de sanções ou forças de segurança, seria um erro.
"Não
devemos permitir que a redesignação de organizações criminosas transnacionais
como organizações terroristas se torne um pomo da discórdia entre nós",
diz Miklaucic.
"Ou
seja, existem riscos envolvidos, mas o país está ameaçado e, para mitigar a
situação, é preciso arriscar."
Em
entrevista à BBC News Brasil, Miklaucic também comentou o PL Antifacção atualmente em
discussão no Senado. O projeto propõe, entre outras coisas, a ampliação das
penas para crimes cometidos por facções classificadas como
"ultraviolentas".
"O
ataque à soberania e o custo humano são graves, portanto as penalidades
correspondentes têm que ser graves. Mas elas têm que ser administradas de forma
equitativa em todo o espectro da criminalidade, não apenas aos criminosos de
baixo nível nas ruas, mas também aos chefões."
O
pesquisador, que hoje é também professor da Universidade de Chicago, disse
ainda enxergar a possibilidade da atual tensão entre Venezuela e
Estados Unidos escalar para um conflito direto.
"É
possível, mas eu não acho provável – acredito que ainda há muita encenação e
posicionamento em curso."
·
A segurança pública e o combate às facções criminosas
estão no centro do debate público no Brasil atualmente. Na sua opinião, quais
são as lacunas mais significativas na estratégia brasileira?
Michael
Miklaucic - O
Brasil é um país continental com uma diversidade dramática, seja ela
tipográfica, étnica, linguística, cultural, etc. Assim, à sua maneira, a luta
do Brasil contra o crime organizado transnacional é diferente de qualquer outra
que o mundo já tenha visto. Suas lacunas existem porque não há precedentes a
partir dos quais se possa trabalhar.
No caso
do Brasil, acho que a maior lacuna não é exclusivamente brasileira. É a lacuna
entre vários países diferentes, ligada à necessidade de cooperação
transnacional e assistência jurídica além das fronteiras, que está atrasada em
relação à capacidade das organizações criminosas transnacionais de operar dessa
forma.
Além
disso, sendo um país tão grande com tantas jurisdições diferentes — municipais,
provinciais e federais —, existem lacunas entre as diversas unidades de
inteligência e as unidades de aplicação da lei. Essas lacunas estão sendo
preenchidas de forma gradual e lenta, mas é por elas que o crime organizado
transnacional consegue se infiltrar.
·
Como o Brasil pode proteger mais suas fronteiras e
combater de forma mais eficaz os braços internacionais de suas facções
criminosas e suas conexões com organizações criminosas estrangeiras?
Miklaucic
- A
primeira coisa é entrar em contato com esses outros países e estabelecer o
diálogo mais honesto possível. Isso já está acontecendo, ainda que de forma
limitada. Mas é preciso encontrar maneiras de colaborar, apesar as estruturas
legais diferentes. As leis variam de país para país, e essas diferenças são os
túneis pelos quais os criminosos transnacionais organizados se infiltram para
operar impunemente além das fronteiras.
·
Na semana passada, a Câmara aprovou um novo projeto de
lei sobre segurança pública que agora será analisado pelo Senado. Um debate
levantado pelo projeto diz respeito a um ponto que o senhor mencionou: a
atuação policial contra facções criminosas e como as responsabilidades devem
ser divididas entre as forças estaduais e federais. Em sua opinião, é melhor
investir em um trabalho mais localizado, em nível estadual, ou garantir que a
Polícia Federal tenha amplo acesso às investigações?
Miklaucic
- Essa
é uma escolha desnecessária. É fundamental que o investimento seja feito em
ambas as pontas do espectro, e a chave é a comunicação entre essas duas pontas.
Mas é
um erro decidir trabalhar no âmbito local em detrimento do federal. É preciso
colaboração central entre os vários segmentos, caso contrário, os agentes
criminosos simplesmente se deslocam. Você resolve o problema no Rio de Janeiro,
mas eles se mudam para São Paulo. Se você resolve o problema em São Paulo, eles
simplesmente se mudam para a Amazônia. Isso não vai funcionar, só vai empurrar
o problema pelo país.
É
preciso haver investimento em ambos os níveis, e isso exige que a liderança
nacional, reconheça que esta é uma prioridade de segurança nacional. Já existem
territórios dentro do Brasil que estão sob controle do crime, e isso é um
ataque à soberania nacional.
·
O projeto de lei em discussão no Congresso também propõe
implementar penas mais severas para os envolvidos no crime organizado. É uma
solução eficaz?
Miklaucic
- Tem
que ser assim. O ataque à soberania e o custo humano são graves, portanto as
penalidades correspondentes têm que ser graves. Mas elas têm que ser
administradas de forma equitativa em todo o espectro da criminalidade, não
apenas aos criminosos de baixo nível nas ruas, mas também aos chefões. E, para
ser bem honesto, também àqueles no governo que facilitam e permitem, por meio
da corrupção, o sucesso do crime organizado transnacional.
Também
devem ser impostas penalidades aos profissionais na zona cinzenta, como
advogados, contadores e especialistas em informática e tecnologia da informação
que são empregados e facilitam o crime organizado transnacional. Lembre-se de
que os lucros ilícitos do crime organizado transnacional têm que ser lavados de
alguma forma.
Em
muitos países, existe uma regra, por exemplo, para banqueiros, de que eles têm
que conhecer seus clientes. Isso também deveria valer para advogados,
contadores e todas as pessoas que trabalham a serviço de organizações
criminosas transnacionais, que, em última análise, são grandes empresas.
·
E há algo mais que, na sua opinião, o Brasil possa fazer
para melhorar o rastreamento e barrar os fluxos financeiros ilícitos que
financiam essas organizações?
Miklaucic
- O
Brasil já faz bastante, na verdade. É um dos países que reconheceu a gravidade
do desafio e está fazendo muito para combatê-lo. Mas o campo da educação
pública, tanto para o público em geral quanto para funcionários públicos, é uma
área realmente crucial em que o Brasil poderia fazer mais.
A
educação no setor público deve envolver funcionários do governo municipal, do
governo estadual e também de toda a força federal. E não se trata apenas de
fazer um curso uma vez na vida — em alguns países os funcionários são obrigados
a fazer cursos anuais de atualização sobre padrões éticos, requisitos legais e
requisitos de relatórios.
E do
outro lado está a conscientização pública: exposição do crime, do dano que está
sendo causado, do dano social, do dano à soberania. A educação pública é sempre
um elemento crítico na resolução ou abordagem de qualquer tipo de problema de
segurança – ou, aliás, qualquer tipo de problema nacional.
·
Outro tema em discussão no Brasil é a possibilidade de
classificar facções criminosas brasileiras como organizações narcoterroristas.
Em sua opinião, qual seria o impacto de tal medida?
Miklaucic
- Essa
é uma questão bastante controversa nesse momento, também para os Estados
Unidos. A vantagem é que proporciona maior liberdade às forças policiais e
outros serviços de segurança para agirem contra essas organizações. Mas há
também aspectos negativos, e esse é um equilíbrio muito delicado.
Não
tenho certeza se já encontramos esse equilíbrio nos Estados Unidos. E o Brasil
e outros países do Hemisfério tentaram usar as Forças Armadas como ferramenta
para combater o crime organizado transnacional ou o tráfico de drogas em
favelas e outros territórios, e também não obtiveram sucesso em alguns casos.
Portanto, acho que é preciso ter cuidado. As lições do passado precisam ser
incorporadas.
Mas, em
última análise, acho que o Estado está ameaçado e em risco. Contanto que se
consiga equilibrar os direitos dos cidadãos com a luta contra o crime
organizado transnacional, todos os elementos da força nacional devem ser
aplicados. Ou seja, existem riscos envolvidos, mas o país está ameaçado e, para
mitigar a situação, é preciso arriscar.
·
Alguns temem que possa abrir caminho para intervenções
estrangeiras, dos Estados Unidos, por exemplo, no Brasil, ou até mesmo aumentar
o risco de sanções econômicas. Esse é um dos riscos?
Miklaucic
- Vamos
separar as sanções econômicas da intervenção das forças americanas. Acredito
que as forças americanas não deveriam se envolver na luta do Brasil contra o
crime organizado transnacional, a menos que sejam convidadas pelas autoridades
brasileiras.
Sobre
as sanções econômicas, diria novamente: não devemos nos envolver em uma guerra
econômica com o Brasil. Se as ferramentas financeiras puderem ser usadas em
conjunto para combater o crime organizado transnacional, esse é o caminho a
seguir. Mas não devemos usar a economia como arma contra autoridades estatais
que já estão profundamente comprometidas com a luta contra o crime organizado
transnacional.
·
Mas, na prática, estaríamos mais sujeitos a ambos os
cenários se passássemos a tratar essas organizações como terroristas?
Miklaucic
- Existe
um risco, mas acredito que seja um risco calculado. Não devemos permitir que a
redesignação de organizações criminosas transnacionais como organizações
terroristas se torne um pomo da discórdia entre nós. Este é um desafio
compartilhado. Ambos estamos em guerra. O Brasil faz parte do núcleo de Estados
democráticos liberais, estados de direito, assim como os Estados Unidos. E
devemos lutar juntos nesta guerra.
·
O controle territorial exercido por facções criminosas em
áreas urbanas é um fenômeno extremamente complexo no Brasil. Como isso deve
moldar ou alterar a resposta do Estado?
Miklaucic
- Geralmente,
os grupos criminosos conseguem exercer controle territorial porque as
autoridades estatais não fazem isso de forma eficaz. Em outras palavras, as
organizações criminosas prosperam no vácuo. Portanto, a única solução para esse
problema é o controle territorial efetivo por parte do Estado. Essa é a única
maneira de manter os criminosos afastados.
·
Operações policiais como a realizada no final de outubro
contra o CV no Rio de Janeiro são a melhor abordagem para isso?
Miklaucic
- Eu
não estava no Brasil quando tudo aconteceu e não acompanhei de perto. Mas eu
diria que aprendemos que o encarceramento em massa não é uma solução eficaz
porque simplesmente superlota as prisões e as transforma em universidades
criminosas. E aprendemos que a pena capital em massa, a decapitação das
lideranças, não é a solução, porque simplesmente abre caminho para que oficiais
subalternos subam na hierarquia dessas organizações criminosas.
Temos
que aprender a não cometer os mesmos erros que foram cometidos em outros
lugares ou mesmo no Brasil e seguir em frente rumo a algo diferente. Na
ciência, dizem que continuar fazendo o mesmo esperando um resultado diferente é
um sinal de irracionalidade. E o mesmo se aplica à governança: tentar as mesmas
coisas esperando um resultado diferente não é uma abordagem racional para
governar.
·
Estamos também testemunhando um momento de tensão no
Caribe, com o aumento da presença militar dos EUA ao redor da Venezuela e das
ameaças de Donald Trump. Em sua opinião, essa tensão poderia escalar para um
conflito direto?
Miklaucic
- Se
aprendemos alguma coisa sobre o presidente Trump é que ele é imprevisível e
toma decisões de uma maneira muito peculiar. Mesmo quando eu estava no governo,
durante o primeiro mandato de Trump, não sabíamos, dia após dia, quais decisões
ele tomaria. Mas ele definitivamente indicou que está disposto a usar a força.
Então, sim, é possível.
Mas eu
não acho provável. Acredito que ainda há muita encenação e posicionamento em
curso. É uma situação um tanto performática no momento: estamos deixando bem
claro que temos a capacidade de infligir danos e sofrimento significativos ao
governo da Venezuela, na esperança de que o comportamento venezuelano mude sem
que cheguemos ao ponto de um conflito armado. Não conheço ninguém nas Forças
Armadas dos EUA que queira se envolver em um conflito armado em terra na
Venezuela.
·
Donald Trump afirma que seu objetivo é combater o tráfico
de drogas, mas alguns acreditam que essas ações são ilegais e argumentam que
sua verdadeira intenção é uma mudança de regime. Qual a sua visão?
Miklaucic
- Há
uma ambiguidade legal muito, muito significativa no que está acontecendo agora.
E muitas pessoas lamentavelmente foram colocadas em uma posição difícil nesse
território ambíguo. Deve ser muito desconfortável para os comandantes e para os
militares envolvidos.
Quais
são as reais intenções? Bem, não tenho como ler a mente de Donald Trump. Mas
acho que a mudança de regime não tem sido uma estratégia particularmente
bem-sucedida para os Estados Unidos neste século. No século passado, a mudança
de regime na área do Pacto de Varsóvia, no Leste Europeu, foi uma estratégia
bem-sucedida. Na União Soviética, menos. Neste século, Iraque, Afeganistão,
Líbia e Iêmen não foram estratégias bem-sucedidas de mudança de regime.
E não
acho que alguém nos Estados Unidos gostaria de ter essa experiência tão perto
em nosso hemisfério. Certamente sei que outros países da América Latina não
querem esse tipo de experiência em suas fronteiras. E para nós, não vejo como
isso poderia ser uma transição absolutamente confortável.
Fonte:
BBC News Brasil

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