Economia
e Geopolítica da III Guerra Mundial
A
ascensão de Trump é apocalíptica, no sentido primeiro deste termo, o de
desvelamento. Sua agitação convulsiva tem o grande mérito de mostrar a natureza
do capitalismo, a relação entre a guerra, a política e o lucro, entre o capital
e o Estado, habitualmente velada pela democracia, pelos direitos humanos, pelos
valores e pela missão da civilização ocidental. A mesma hipocrisia está no
centro do discurso construído para legitimar os 840 bilhões de euros de
rearmamento que a UE impõe aos Estados-membros, por meio do recurso ao estado
de exceção. Armar-se não significa, como diz o ex-presidente do Banco Central
Europeu, Mario Draghi, defender «os valores que fundaram a nossa sociedade
europeia» e que «garantiram durante décadas a seus cidadãos a paz, a
solidariedade e, com nosso aliado americano, a segurança, a soberania e a
independência», mas significa salvar o capitalismo financeiro. Nem mesmo são
necessários grandes discursos e análises documentadas para mascarar a
indigência desses relatos: bastou um novo massacre de 400 civis palestinos para
evidenciar a verdade da tagarelice indecente sobre a unicidade e a supremacia
moral e cultural do Ocidente.
Trump
não é um pacifista, ele apenas reconhece a derrota estratégica da OTAN na
guerra da Ucrânia, enquanto as elites europeias recusam a evidência. Para elas,
a paz significaria o retorno ao estado catastrófico ao qual reduziram suas
nações. A guerra deve continuar porque, para elas, assim como para o Partido
Democrata e o Estado profundo norte-americano, ela é o meio de sair da crise
que começou em 2008, como foi o caso da grande crise de 1929. Trump acredita
poder resolvê-la dando prioridade à economia sem renunciar à violência, à
chantagem, à intimidação, à guerra. É muito provável que nem uns nem outros
venham a ter sucesso, pois têm um enorme problema: o capitalismo, em sua forma
financeira, está em crise profunda e é precisamente de seu centro, os EUA, que
chegam os sinais “dramáticos” para as elites que nos governam. Em vez de
convergir para os EUA, os capitais fogem para a Europa. Uma grande novidade,
sintoma de grandes rupturas imprevisíveis que podem agora ser catastróficas.
O
capital financeiro não produz bens, mas bolhas que incham nos EUA e estouram
atingindo o resto do mundo, revelando-se armas de destruição em massa. O
sistema financeiro norte-americano suga valor (os capitais) de todo o mundo,
investe-os numa bolha que mais cedo ou mais tarde estourará, obrigando os povos
do planeta à austeridade, ao sacrifício para pagar seus fracassos. Primeiro a
bolha da internet, depois a bolha dos subprimes que provocou
uma das maiores crises financeiras da história do capitalismo, abrindo a porta
para a guerra. Tentaram também a bolha do capitalismo verde, que nunca decolou,
e finalmente aquela, incomparavelmente maior, das empresas de alta tecnologia.
Para fechar as brechas dos desastres da dívida privada convertida em dívidas
públicas, o Federal Reserve e o Banco Europeu inundaram os mercados com
dinheiro que, em vez de “gotejar” para a economia real, serviu para alimentar a
bolha das altas tecnologias e o desenvolvimento dos mega-fundos de
investimento, conhecidos como “Big Three”: Vanguard, BlackRock e State Street.
São o maior monopólio da história do capitalismo, gerindo 50 trilhões de
dólares, acionista principal de todas as mais importantes sociedades com ações
vendidas em bolsa). Agora, mesmo essa bolha está começando a murchar. Se
dividirmos pela metade a capitalização total da bolsa de Wall Street, ainda
estamos longe do valor real das empresas de alta tecnologia, cujas ações foram
infladas por esses mesmos fundos para manter dividendos altos para seus
“investidores” (os Democratas também contavam substituir o welfare pela
finanças para todos, como antes haviam delirado sobre a casa para todos os
norte-Hoje, o banquete está chegando ao fim. A bolha atingiu seu limite e os
valores despencam com um risco real de colapso. Se acrescentarmos a isso a
incerteza que a política de Trump, representante de uma finança que não é a dos
fundos de investimento, introduz num sistema que estes últimos haviam
conseguido estabilizar com a ajuda dos Democratas, compreendemos os temores dos
“mercados”. O capitalismo ocidental precisa de uma nova bolha porque não
conhece nada além da reprodução do idêntico (a tentativa trumpiana de
reconstruir a indústria nos EUA está fadada a um fracasso certo).
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A identidade perfeita entre “produção” e destruição
A
Europa, que já gasta 60% mais do que a Rússia com armamentos (a OTAN representa
55% dos gastos com armas no mundo; a, Rússia 5%), decidiu-se por um grande
plano de investimento de 800 bilhões de euros para aumentar ainda mais as
despesas militares. A guerra e a Europa, onde ainda estão ativas redes
políticas e econômicas e centros de poder que se suborinam à estratégia
representada por Joe Biden, são a oportunidade para construir uma bolha baseada
no armamento, e com isso compensar as dificuldades crescentes dos “mercados”
norte-americanos. Desde dezembro de 2024, as ações das empresas de armamento
vivem um enorme impuso especulativo. Vão de alta em alta e desempenham o papel
de valor refúgio para os capitais que julgam a situação norte-americana arriscada
demais. No coração da operação, os fundos de investimento, que também estão
entre os maiores acionistas das grandes empresas de armamento. Eles detêm
participações importantes na Boeing, Lockheed Martin e RTX, cuja gestão e
estratégias influenciam. Na Europa, também estão presentes no complexo
militar-industrial: a Rheinmetall, uma empresa alemã que produz os tanques
Leopard e cujo valor das ações aumentou 100% nos últimos meses, tem entre seus
principais acionistas a Blackrock, a Société Générale, a Vanguard e outros
fundos. Maior fabricante de munições da Europa, ela superou a maior montadora
de automóveis do continente, a Volkswagen, em termos de capitalização, último
sinal do apetite crescente dos investidores por valores ligados à Defesa.
A União
Europeia quer captar e canalizar a poupança do continente para o armamento, com
consequências catastróficas para o proletariado e uma nova divisão do bloco. A
corrida armamentista não poderá funcionar como um «keynesianismo de guerra»,
porque o investimento em armas se dá numa economia financeirizada e não mais
industrial. Construída com dinheiro público, beneficiará uma pequena minoria de
particulares, ao mesmo tempo que agravará as condições de vida da grande
maioria da população. A bolha do armamento reproduzirá os mesmos efeitos que a
bolha da alta tecnologia norte-americana. Após 2008, as somas de dinheiro
captadas para investimento na bolha de high-tech nunca
“gotejaram” para o proletariado norte-americano. Ao contrário, produziram uma
desindustrialização crescente, empregos desqualificados e precários, baixos
salários, pobreza endêmica, a destruição do pouco de welfare herdado
do New Deal e a privatização de todos os serviços que se seguiu. A bolha
financeira europeia não deixará de produzir o mesmo na Europa. A
financeirização levará não apenas à destruição completa do Estado-providência e
à privatização definitiva dos serviços, mas também à continuação da
fragmentação política do que resta da União Europeia. As dívidas, contraídas
por cada Estado separadamente, terão de ser reembolsadas e haverá enormes
diferenças entre os Estados europeus quanto à sua capacidade de honrar os
compromissos. O verdadeiro perigo não são os russos, mas os alemães, com seus
500 bilhões de euros para rearmamento e outros 500 bilhões para
infraestruturas, financiamentos decisivos na construção da bolha. A última vez
que se rearmaram, engendraram catástrofes mundiais (25 milhões de mortos na
única Rússia soviética, “a solução final” para os judeus, etc.). À espera dos
novos avanços do nacionalismo e da extrema-direita (já com apoio de 21% do
eleitorado), que o slogan «Deutschland ist zurück» [A Alemanha está de volta]
não deixará de produzir, a Alemanha imporá aos outros países europeus sua
habitual hegemonia imperialista. Os alemães abandonaram rapidamente o credo
ordo-liberal, que não tinha base econômica, mas apenas política, para abraçar
de boca cheia a financeirização anglo-norte-americana, mas com o mesmo
objetivo: dominar e explorar a Europa. O Financial Times fala
de uma decisão tomada pelo chanceler Friedrich Merz, o homem da Blackrock, e
Kukies, o ministro do Tesouro vindo do Goldman Sachs, com a anuência dos
partidos de “esquerda” SPD e Die Linke, que, como seus predecessores em 1914,
assumem mais uma vez a responsabilidade pelos carnificinas que virão.
De tudo
isso, que por enquanto permanece um projeto, apenas o financiamento alemão
parece crível; quanto aos outros países, veremos quem terá a coragem de reduzir
ainda mais radicalmente as aposentadorias, a saúde, a educação, etc., por causa
de uma ameaça-fantasma. Enquanto o imperialismo interno alemão anterior
fundamentava-se na austeridade, no mercantilismo das exportações, no
congelamento dos salários e na destruição do Estado-providência, este se
fundamentará na gestão de uma economia de guerra europeia, hierarquizada
segundo os diferenciais de taxas de juros a pagar para reembolsar a dívida
contraída.
Os
países já pesadamente endividados (Itália, França, etc.) terão de encontrar
quem compre os papéis emitidos para pagar sua dívida, num “mercado” europeu
cada vez mais competitivo. Os investidores terão interesse em comprar
obrigações alemãs, obrigações emitidas por empresas de armamento sobre as quais
a especulação em alta atuará, e títulos da dívida pública europeia, certamente
mais seguros e rentáveis do que as obrigações dos países superendividados. O
famoso “spread” voltará a desempenhar seu papel, como em 2011. Os
bilhões necessários para pagar os mercados não estarão disponíveis para o
Estado-providência. O objetivo estratégico de todos os governos e oligarquias
há cinquenta anos – a destruição das despesas sociais para a reprodução do
proletariado e sua privatização – será alcançado. 27 egoísmos nacionais se
confrontarão sem propósito, porque a história, da qual «somos os únicos que
sabemos o que é», nos colocou com as costas contra a parede, tornados inúteis e
insignificantes após séculos de colonialismo, de guerras e de genocídios. A
corrida armamentista é acompanhada de uma justificação incansavelmente repetida
– «estamos em guerra» contra todos (Rússia, China, Coreia do Norte, Irã,
BRICS). Ela não pode ser abandonada há risco real de que se concretize, porque
a quantidade delirante de armas adquiridas precisa de algum modo «ser
consumida».
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A lição de Rosa Luxemburg, Kalecki, Baran e Sweezy
Só os
desinformados podem se surpreender com o que está acontecendo. Tudo se repete,
mas no quadro de um capitalismo financeiro, e não mais industrial como no
século XX. A guerra e o armamento estão no centro da economia e da política
desde que o capitalismo se tornou imperialista. Estão também no cerne do
processo de reprodução do capital e do proletariado, em feroz concorrência um
com o outro. Reconstituamos rapidamente o quadro teórico fornecido por Rosa
Luxemburg, Kalecki, Baran e Sweezy, solidamente ancorado, ao contrário das
inúteis teorias críticas contemporâneas, nas categorias de imperialismo,
monopólio e guerra, que nos oferecem um espelho da situação contemporânea.
Comecemos
pela crise de 1929, que tem sua origem na Primeira Guerra Mundial e na
tentativa de sair dela ativando os gastos públicos pela intervenção do Estado.
Segundo Baran e Sweezy (doravante B&S), o problema dos gastos públicos nos
anos 1930 era seu volume, incapaz de contrarrestar as forças depressivas da
economia privada. Foi só com a Segunda
Guerra Mundial que ela acabou: « Depois veio a guerra, e com a guerra veio a
salvação (…) os gastos militares fizeram o que os gastos sociais não haviam
conseguido fazer », porque os gastos públicos passaram de 17,5 bilhões de
dólares para US$ 103,1 bilhões. B&S mostram que os gastos públicos não
deram os mesmos resultados que os gastos militares porque eram limitados por um
problema político ainda atual. Por que o New Deal e seus gastos não alcançaram
um objetivo que « estava ao alcance da mão, como a guerra provou posteriormente
»? Porque a luta de classes se desencadeia sobre a natureza e a composição dos
gastos públicos — ou seja, a reprodução do sistema e a do proletariado.
Os
gastos sociais concorreram com as empresas e oligarquias, ou as prejudicaram,
privando-as de seu poder econômico e político. « Uma vez que os interesses
privados controlam o poder político, os limites dos gastos públicos são fixados
de maneira rígida, sem se importar com as necessidades sociais, por mais
flagrantes que sejam. E esses limites se aplicavam igualmente aos gastos com
saúde e educação, que na época, diferentemente de hoje, não estavam em
concorrência direta com os interesses privados das oligarquias. Já a corrida
armamentista permite aumentar os gastos públicos do Estado sem que isso se
traduza num aumento dos salários e do consumo do proletariado. Como o dinheiro
público pode ser gasto para evitar a depressão econômica que o monopólio
acarreta, evitando ao mesmo tempo o fortalecimento do proletariado?
Michael
Kalecki, trabalhando sobre o mesmo período mas para examinar a Alemanha
nazista, consegue elucidar outros aspectos do problema. Contra todo
economicismo, que sempre ameaça a compreensão do capitalismo mesmo por teorias
críticas marxistas, ele destaca a natureza política do ciclo do capital: « A
disciplina nas fábricas e a estabilidade política são mais importantes para os
capitalistas do que os lucros correntes. O ciclo político do capital, que só
pode ser garantido pela intervenção do Estado, precisou recorrer aos gastos com
armamento e ao fascismo. Para Kalecki, o problema político se manifesta também
na «orientação e nos objetivos dos gastos públicos». A aversão pelo «subsídio
ao consumo de massa» é motivada pela destruição «do fundamento da ética
capitalista: “ganharás o pão com o suor do teu rosto” (a menos que vivas das
rendas do capital). Como garantir que os gastos do Estado não se transformem em
aumento do emprego, do consumo e dos salários, e portanto em força política do
proletariado? A desvantagem para as oligarquias é superada com o fascismo, pois
a máquina estatal fica então sob o controle do grande capital e da direção
fascista, com «a concentração dos gastos do Estado no armamento», enquanto «a
disciplina de fábrica e a estabilidade política são asseguradas pela dissolução
dos sindicatos e pelos campos de concentração. A pressão política substitui
aqui a pressão econômica do desemprego. Daí o imenso sucesso dos nazistas junto
à maioria dos liberais, tanto britânicos quanto norte-americanos.
A
guerra e os gastos com armamento estão no cerne da política norte-americana
mesmo após o fim da Segunda Guerra Mundial, pois uma estrutura política sem
força armada, ou seja, sem o monopólio de seu exercício, é inconcebível. O
volume do aparato militar de uma nação depende de sua posição na hierarquia
mundial da exploração. «As nações mais importantes terão sempre as necessidades
mais importantes, e a amplitude de suas necessidades (em forças armadas)
variará conforme uma luta acirrada pelo primeiro lugar se desenrolará ou não
entre elas. Os gastos militares, portanto, continuaram a crescer no centro do
imperialismo. Kalecki destaca que em
1966, mais da metade do crescimento da renda nacional provém do crescimento dos
gastos militares.
Após a
guerra, o capitalismo não podia mais contar com o fascismo para controlar os
gastos sociais. O economista polonês, “aluno” de Rosa Luxemburg, destaca: «Uma
das funções fundamentais do hitlerismo foi superar a aversão do grande capital
por uma política anticíclica em grande escala. A grande burguesia dera seu
acordo para o abandono do laissez-faire e para o aumento
radical do papel do Estado na economia nacional, desde que o aparato estatal
estivesse sob o controle direto de sua aliança com a direção fascista» e que a
destinação e o conteúdo dos gastos públicos fossem determinados pelo armamento.
Nos Trinta Anos Gloriosos, sem que o fascismo assegurasse a orientação dos
gastos públicos, os Estados e os capitalistas são obrigados ao compromisso
político. As relações de força determinadas pelo século das revoluções obrigam
o Estado e os capitalistas a fazer concessões que, de qualquer modo, são
compatíveis com lucros alcançando taxas de crescimento até então desconhecidas.
Mas até mesmo esse compromisso é excessivo, pois, apesar dos lucros
importantes, «os trabalhadores se tornam então ‘recalcitrantes’ e os ‘capitães
da indústria’ estão preocupados em “lhes dar uma lição”».
A
contrarrevolução, que se desenvolveu a partir do final dos anos 1960, tinha
como centro a destruição dos gastos sociais e a vontade feroz de orientar os
gastos públicos para os únicos e exclusivos interesses das oligarquias. O
problema, desde a República de Weimar, nunca foi uma intervenção genérica do
Estado na economia, mas o fato de que o Estado fora investido pela luta de
classes e fora obrigado a ceder às exigências das lutas operárias e
proletárias. Nos tempos “pacíficos” da guerra fria, sem a ajuda do fascismo, a
explosão dos gastos militares precisa de uma legitimação, assegurada por uma
propaganda capaz de evocar continuamente a ameaça de uma guerra iminente, de um
inimigo às portas, pronto para destruir os valores ocidentais: «Os criadores
oficiais e oficiosos da opinião pública têm a resposta pronta: os EUA devem
defender o mundo livre contra a ameaça de uma agressão soviética (ou chinesa)».
Kalecki, em relação ao mesmo período, esclarece: «Os jornais, o cinema, as
estações de rádio e de televisão trabalhando sob a égide da classe dirigente
criam uma atmosfera que favorece a militarização da economia». Os gastos com
armamento não têm apenas uma função econômica, mas também uma função de
produção de subjetividades subjugadas. Exaltando a subordinação e o comando, a
guerra «contribui para a criação de uma mentalidade conservadora. Enquanto os
gastos públicos maciços em educação e da proteção social tendem a minar a
posição privilegiada da oligarquia, os gastos militares fazem o contrário. A
militarização favorece todas as forças reacionárias, (…) um respeito cego à
autoridade é determinado; uma conduta de conformidade e de submissão é ensinada
e imposta; e a opinião contrária é considerada antipatriótica, quando não como
uma traição».
O
capitalismo produz um capitalista que, precisamente devido à forma política de
seu ciclo, é um semeador de morte e destruição, mais do que um promotor de
progresso. Richard B. Russell, senador conservador do Sul dos EUA nos anos
1960, citado por B&S, nos diz: «Há algo nos preparativos de destruição que
leva os homens a gastar o dinheiro mais acriticamente do que se fosse destinado
a fins construtivos. Não sei por que isso acontece, mas nos 30 anos que atuo no
Senado, percebi que, ao comprar armas para matar, destruir, riscar cidades da
superfície da Terra e eliminar grandes sistemas de transporte, há algo que faz
com que os homens não calculem as despesas tão cuidadosamente quanto o fazem
quando se trata de pensar numa moradia decente e em cuidados de saúde para os
seres humanos». A reprodução do capital e do proletariado se politizou através
das revoluções do século XX. A luta de classes também gerou uma oposição
radical entre a reprodução da vida e a reprodução de sua destruição, que não
cessou de se aprofundar desde os anos 1930.
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Como funciona o capitalismo
A
guerra e o armamento, praticamente excluídos de todas as teorias críticas do
capitalismo, funcionam como elementos discriminantes na análise do capital e do
Estado. É muito difícil definir o capitalismo como um “modo de produção”, como
fez Marx, porque a economia, a guerra, a política, o Estado, a tecnologia são
elementos estreitamente ligados e inseparáveis. A “crítica da economia” não
basta para produzir uma teoria revolucionária. Desde o advento do imperialismo,
ocorreu uma mudança radical no funcionamento do capitalismo e do Estado, posta
em evidência por Rosa Luxemburgo, para quem a acumulação tem dois aspectos. O
primeiro «diz respeito à produção da mais-valia – na fábrica, na mina, na
exploração agrícola – e à circulação das mercadorias no mercado. Vista sob este
ângulo, a acumulação é um processo econômico cuja fase mais importante é uma
transação entre o capitalista e o assalariado». O segundo aspecto tem por palco
o mundo inteiro, uma dimensão mundial irredutível ao conceito de “mercado” e às
suas leis econômicas. «Aqui, os métodos empregados são a política colonial, o
sistema dos empréstimos internacionais, a política das áreas de influência, a
guerra. A violência, o engano, a opressão, a predação se desenvolvem
abertamente, sem máscara, e é difícil reconhecer as leis estritas do processo
econômico no emaranhado da violência econômica e da brutalidade política.
A
guerra não é uma continuação da política, mas sempre coexistiu com ela, como
mostra o funcionamento do mercado mundial. Aqui, onde a guerra, a fraude e a
predação coexistem com a economia, a lei do valor nunca funcionou de verdade. O
mercado mundial é muito diferente daquele esboçado por Marx. Suas considerações
parecem não mais se aplicar, ou antes, devem ser precisadas: é apenas no
mercado mundial que o dinheiro e o trabalho se tornariam adequados ao seu
conceito, fazendo frutificar sua abstração e sua universalidade. Ao contrário,
constata-se que a moeda, forma mais abstrata e mais universal do capital, é
sempre a moeda de um Estado. O dólar é a moeda dos EUA e só reina enquanto tal.
A abstração da moeda e sua universalidade (e seus automatismos) são apropriadas
por uma “força subjetiva” e são geridas segundo uma estratégia que não está
contida na moeda. Mesmo a finança, como a tecnologia, parece ser objeto de uma
apropriação por forças subjetivas “nacionais”, muito pouco universais. No
mercado mundial, nem mesmo o trabalho abstrato triunfa enquanto tal, mas
encontra outras formas radicalmente diferentes de trabalho (trabalho servil,
trabalho de escravo, etc.) e é objeto de estratégias.
A ação
de Trump, tendo feito cair o véu hipócrita do capitalismo democrático, nos
revela o segredo da economia: ela só pode funcionar a partir de uma divisão
internacional da produção e da reprodução definida e imposta politicamente, ou
seja, pelo uso da força, o que implica também a guerra. A vontade de explorar e
dominar, gerindo simultaneamente as relações políticas, econômicas e militares,
constrói uma totalidade que nunca pode se fechar sobre si mesma, mas que
permanece sempre aberta, cindida pelos conflitos, pelas guerras, pelas
predações. Nessa totalidade fragmentada, todas as relações de força convergem e
se governam a si mesmas. Trump intervém no uso das palavras, mas também nas
teorias de gênero, ao mesmo tempo em que gostaria de impor um novo posicionamento
mundial, tanto político quanto econômico, dos EUA. Do micro ao macro, uma ação
política à qual os movimentos contemporâneos estão longe sequer de pensar.
A
construção da bolha financeira, processo que podemos acompanhar passo a passo,
se desenrola da mesma maneira. Os atores envolvidos em sua produção são
numerosos: a União Europeia, os Estados que devem se endividar, o Banco Europeu
de Investimento, os partidos políticos, a mídia e a opinião pública, os grandes
fundos de investimento (todos norte-americanos) que organizam o movimento dos
capitais de uma bolsa à outra, as grandes empresas. É só após o veredito do
confronto/cooperação entre esses centros de poder que a bolha econômica e seus
automatismos poderão funcionar. Há toda uma ideologia do automatismo a ser
desmontada. O “piloto automático”, sobretudo no nível financeiro, só existe e
funciona após ter sido politicamente colocado em prática. Ele não existiu nos
anos 1930 porque foi decidido politicamente; funciona desde o final dos anos
1970 por uma vontade política explícita. Essa multiplicidade de atores que se
agitam há meses é cimentada por uma estratégia. Há, portanto, um elemento
subjetivo que intervém de maneira fundamental. Na verdade, há dois. Do ponto de
vista capitalista, há uma luta feroz entre o “fator subjetivo” Trump e o “fator
subjetivo” das elites que foram derrotadas na eleição presidencial, mas que
ainda têm fortes presenças nos centros de poder nos EUA e na Europa. Mas para
que o capitalismo funcione, é preciso também levar em conta um fator proletário
subjetivo. Ele desempenha um papel decisivo, pois ou se tornará o portador
passivo do novo processo de produção/reprodução do capital, ou tenderá a
rejeitá-lo e destruí-lo. Tendo em vista a incapacidade do proletariado
contemporâneo — o mais fraco, o mais desorientado, o menos autônomo e
independente da história do capitalismo — a primeira opção parece a mais
provável. Mas se ele não conseguir opor sua própria estratégia às inovações
estratégicas permanentes do inimigo, capazes de se renovar sem cessar, cairemos
numa assimetria das relações de força que nos reconduzirá ao tempo anterior à
Revolução Francesa, a um “Antigo Regime” novo / déjà vu.
Fonte: Por
Maurizio Lazzarato | Tradução: Antonio Martins, em Outras Palavras

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