sexta-feira, 12 de dezembro de 2025

Jards Macalé, aquele que cantou os medos e horrores da Gotham City chamada Brasil

Entre as mais que merecidas, e ainda assim insuficientes homenagens a vida e trajetória artística de Jards Anet da Silva (1943-2025), o eterno Jards Macalé, lembramos aqui um de seus momentos mais geniais e perigosos de toda a sua trajetória. Mas que consideramos fundamental para se buscar ter uma melhor compreensão do tamanho e importância dela.

Nesse sentido, imaginemos estarmos ouvindo em meio a uma escuridão, a trilha sonora do seriado Batman (1966-1968) executada pela “Banda Veneno” do maestro Erlon Chaves (1933-1974) irrompendo o palco do Maracanãzinho, durante o “IV Festival Internacional da Canção”, de 1969. Composição orquestral sendo executada em alto volume, em ritmo acelerado e repetitivo. Mais alta e urgente, a cada movimento de sons de guitarras e contrabaixo, formando uma onda sonora que vagueia pelos ares do ginásio. Ao mesmo tempo em que se faz perceptível verificar um sentimento de estranheza percorrendo o público no local.

Uma espécie de repúdio que começa a se manifestar por meio de vaias, que se intensificam pouco a pouco, sendo incorporadas ao processo de execução musical, com uma voz aparecendo entre a massaroca sonora. Como que comandando cada (com)passo posto em movimento. Entre guitarras dedilhadas e em escalas dissonantes, uma palavra se faz nítida e em bom som: Batman. O que contribui para aumentar ainda mais, a sensação de desorientação que começava a se instalar naquele ambiente.

Com a “Banda Veneno” que levava a execução do tema orquestral em ritmo frenético, fazendo de súbito por interromper sua performance… Ocorrendo um silêncio de poucos segundos, mas tensos, que parecem uma eternidade. Que acabam preenchidos por um conjunto de vaias ensurdecedoras… Momento de pleno caos, em que ninguém presente entende o que está acontecendo. Até o momento em que vestido com uma bata preta – tendo estampada uma besta fera em meio ao fogo – Jards Macalé berra ao microfone: “1,2,3,4” e solta um grito primal. Seguido por uma sequência de toques das tumbadoras, realizadas por Naná Vasconcelos (1944-2016), sobrepujados pelo balanço ritmado do contrabaixo, seguido e mesclado por riffs amplificados de guitarras distorcidas, abrindo caminho para o declamar-cantar da letra de “Gotham City”, composição em parceria de Jards Macalé com o poeta e letrista José Carlos Capinam.

Aos quinze anos eu nasci em Gotham City

Era um céu alaranjado em Gotham City

Caçavam bruxas nos telhados de Gotham City

No dia da Independência Nacional”

As vaias cessam, como se todos agora estivessem absortos por aquilo que diante de seus olhos, começava a tomar forma! O Brasil começava a ser apresentado a uma de suas mais significativas e corajosas performances artísticas, enquanto expressão da plena liberdade criativa de seus autores. Rompendo todas as normativas de estruturas harmônicas, melódicas e radiofônicas. Alargando o alcance da imagética poética em meio ao cancioneiro popular nacional, radicalizando seu diálogo com a cultura pop internacional, ao brincar e transfigurar as referências ao seriado televisivo do herói urbano dos quadrinhos. De um cruzado vingador em sua atuação de combatente do crime e manutenção da ordem, a revelia das regras e leis da sociedade. Como se fosse ao mesmo tempo vigilante, juiz e executor.

Gotham City nos é apresentada, pelo eu-lírico de Jards Macalé, como uma cidade sitiada, refém de uma força impositiva superiora, autointitulada protetora e mantenedora da ordem social vigente. Em que a figura de um morcego, alusão direta e nada sutil, ao Batman, se faz destacar como elemento repressor central desse aparato de segurança. Tendo o começo da estrofe marcada pelo grito de Macalé, apoiado e repetido pelo coro da banda, realçando um grito de alerta e um aviso, de que se vivia uma época de exceções e perigos. Estabelecendo assim, de maneira singela e simbólica, de que a canção se trata de uma metáfora ao regime ditatorial presente a realidade brasileira desde a data de 31 de março de 1964, que se viu ampliado e radicalizado em sua potência antivida após a promulgação em 13 de dezembro de 1968, do Ato Inconstitucional Nº5.

Cuidado!

Há um morcego na porta principal

Cuidado!

Há um abismo na porta principal”

Ao mesmo tempo em que canta ao público a existência de um abismo que a tudo e a todos pode sugar e fazer por desaparecer. Situando assim que não há de fato segurança ou ordem, mas medo e autoritarismo, que torna todos reféns e prisioneiros de um Sistema que atende aos interesses, serve e protege a poucos.

Um canto rasgado, visceral, carregado de emoção e tensão! Letra gritada, berrada, como se o objetivo fosse se fazer ouvir o mais distante possível. Como se o mundo precisasse prestar atenção as verdades do que de fato ocorria no Brasil! Assim como sarcasticamente, se opunha a discursiva ideológica de que se as pessoas trabalhassem corretamente e ordinariamente, para o desenvolvimento do país, nada de mal lhes iria acontecer. Pretensamente a salvo – e alienados – dos perigos do mundo, em seus quartos vermelhos:

Eu fiz um quarto bem vermelho aqui em Gotham City

Sob os muros altos da tradição de Gotham City

No cinto de utilidades as verdades

Deus ajuda a quem cedo madruga em Gotham City”

O refrão entoado cada vez mais forte, com o coro sendo agora berrado de forma estendida, em urgência:

“Cuidado!

Há um morcego na porta principal

Cuidado!

Há um abismo na porta principal”

No sentido de enfatizar, que violência e brutalidade eram normativas na sociedade brasileira. Sendo perseguições, prisões ilegais, tortura, exílio e morte, fatos comuns a esse Sistema de terror! Em que até mesmo sonhar causava temor…

No céu de Gotham City há um sinal

Sistema elétrico e nervoso contra o mal

Meu amor não dorme, meu amor não sonha

Não se fala mais de amor em Gotham City”

Uma sociedade oficialmente livre e democrática, mas que na prática refletia uma imagem ilusória de realidade. Baseado num aparato de violência estatal repressor.

Cuidado

Há um morcego na porta principal

Cuidado

Há um abismo na porta principal”

Sistema em ruínas, cada vez mais opressor e violento. Moralista e reacionário! Em que nada e ninguém se encontrava a salvo e muito menos em segurança. Sistema que começava a se alimentar de si mesmo e por isso ficando mais virulento e perigoso!  Afinal de contas, quem vigia os vigilantes de um Sistema vigilante? Quem ao final de tudo, pode – ou consegue – controlar o Batman e seus asseclas?

A resposta a essas questões, se fazia berrada e ensurdecedora por uma trupe de músicos em transe, irmanados na construção de um território livre e anárquico, durante o período de maior recrudescimento do regime de exceção civil-militar em nossas terras. Através de um ato de insolência e liberdade artística que não se pode deixar esquecer e pelo qual Macalé ficaria marcado como um dos artistas que direta ou indiretamente, acabou perseguido pelos donos do poder, tendo uma série de shows, turnês e discos cerceados, desfigurados, quando não barrados em sua execução. Uma carreira de constantes improvisos e adaptações ante as adversidades impostas, mas nunca de cooptação ou rendição. Mantendo-se compromissado aos seus valores e ideais artísticos, cidadãos e democráticos. Não se rendendo aos convites e diretivas para amansar seu discurso e postura. Por vezes optando em trilhar caminhos tortuosos, mais longos e desgastantes, mas em harmonia com sua ética tanto pessoal, quanto profissional. Nem que isso significasse – como tão bem retratado pela poesia de Capinam e a qual visceralmente ele eternizou em seu cantar – buscar fugir da mediocridade cotidiana que a todos cercava e sufocava.

Só serei livre se sair de Gotham City

Agora vivo como vivo em Gotham City

Mas vou fugir com meu amor de Gotham City

A saída, a saída, a SAÍDA, é a porta principal

Improvisação total, Macalé como que em transe, repetindo que a saída “é a porta principal”. Entre berros e mais berros, entre execuções musicais que oscilam entre free jazz e solos rocks de guitarra, com os metais da “Banda Veneno” aumentando ainda mais a sensação de caos que se instaurou no palco.

“Cuidado

Há um morcego na porta principal

Cuidado

Há um abismo na porta principal”

Como se todos, não somente no Maracanãzinho, mas em todo país estivessem sendo tragados pelo Sistema que se promulgava infalível e invencível. Mas que ao seu final se alimenta e reproduz com a dor, o medo e a morte de todos que vivem ao seu alcance.

A execução de Gotham City assume, a partir deste instante, a forma provocativa de uma coda, lançada diretamente contra uma população alienada, anestesiada ou colaboracionista diante de um regime assassino. Mas também irrompia em choque com uma parcela que, embora engajada na resistência e no combate aos governos militares e a seus aliados civis, revelava-se incapaz de reconhecer uma forma de oposição – ou de exercício político – que se realizasse fora de seus padrões estéticos e imagéticos de legitimação artística ou de práxis política.

Isso explica a vaia conjunta e aparentemente unilateral de conservadores e progressistas, apoiadores e opositores da ditadura, alienados e críticos do sistema, que se fundiram numa só voz em meio às intempéries e aos xingamentos dirigidos a Jards Macalé e à sua trupe musical. Um vórtice de emoções que se intensificava a cada repetição dos gritos de “a saída é pela porta principal”, frase que parecia radicalizar e inflamar todo o sentimento de descontentamento até então contido – mas que, naquele momento, já não precisava mais ser reprimido.

Uma verdadeira ação de happening cultural, em que o público instigado pelo artista, rompe com as convenções tradicionais daquilo que se espera da plateia como mera espectadora, e não enquanto agente atuante de um processo de criação coletiva. O que leva o evento para caminhos imprevistos e inimagináveis. Em que gritos arfantes, berros guturais de angústia, vão guiando o final da apresentação, diminuindo o volume do acompanhamento instrumental… Não restando nada mais do que os sons de uma ruína que ali se fazia em anunciar! Em meio à euforia ensaiada de sermos o país do futuro que agora iria para frente, Macalé, os Brazões e a Banda Veneno, cantaram a entropia que a tudo consome. Que desmascara a todas as ilusões e mentiras! Revelando o pesadelo ditatorial, com os seus abusos e arbitrariedades, que corroía o país, como sociedade, dia após dia. Ao vivo e jogada diretamente – via rádio e televisão – aos lares de todo território nacional. Assim constituindo uma representação artística política pelo qual o Brasil passava.

Em que Jards incorpora, encarna o papel, a figura do cantante desvairado, do gritador sátiro, de um profeta do caos. Maravilhosamente e livremente radical em interpretação, dando corpo sonoro a uma master piece de 6 minutos e 30 segundos que transformava em farrapos a fantasia de um país feliz e em paz. Mas em realidade, cada vez mais perdido e sem rumo, inseguro, indo em direção a um caos sem fim. Restando duas alternativas ante tal situação, a saída como entrada principal ou ser engolido pelo abismo de apetite insaciável que a tudo e a todos engolia.

Cotidiano nefasto, em que até mesmo os defensores do Sistema, assim como os seus agentes repressores, acabam sugados pela pretensa ordem social ao qual tanto devotavam apoio e empenho! Pois qualquer ditadura se dá enquanto destruidora de toda e qualquer possibilidade de normalidade e tranquilidade social. Se mantendo e se reproduzindo através do medo e da alienação. De opressões e morte. Inclusive daqueles que lhe são os mais fiéis e ardorosos servos!

Realidade a qual Macalé denunciou e enfrentou, através de um canto louco, em libertária destemperança poética… Recebido em meio a animosidades e vaias. Consagradoras, verdadeiras, sinceras…  Libertadoras de todo medo, bálsamo de todas as dores e – naquele momento em questão – mais valiosas do que qualquer prêmio que se poderia almejar! Mas, sempre guiado por uma esperança de que os tempos de Primavera voltariam a florir por estas terras. Na certeza de que um artista se dá pela sua coragem e honestidade em ser verdadeiro consigo, para depois exercer diálogo com seu público. Não necessariamente em acordo com o que este espera ou almeja receber em troca de seu reconhecimento ou idolatria. Ao não se submeter a nenhum tipo de regras ou normas previamente impostas! Apenas em concordância com o seu criar e exercício de plenitude artística!

Sendo essa sua performance, a primeira grande manifestação pública dessa práxis autoral, a qual faria por lapidar e radicalizar ao longo de toda a sua trajetória. Pela qual hoje, através destas mal traçadas linhas, celebramos e honramos a sua memória e legado!

Salve Jards Macalé, aquele que sempre soube e optou, até o final, por desafi(n)ar o coro dos contentes, dessa – por vezes ainda tão inóspita e desumanizada – Gotham City chamada Brasil.

 

Fonte: Por Christian Ribeiro, no Le Monde

 

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