Jards
Macalé, aquele que cantou os medos e horrores da Gotham City chamada Brasil
Entre
as mais que merecidas, e ainda assim insuficientes homenagens a vida e
trajetória artística de Jards Anet da Silva (1943-2025), o eterno Jards Macalé,
lembramos aqui um de seus momentos mais geniais e perigosos de toda a sua
trajetória. Mas que consideramos fundamental para se buscar ter uma melhor
compreensão do tamanho e importância dela.
Nesse
sentido, imaginemos estarmos ouvindo em meio a uma escuridão, a trilha sonora
do seriado Batman (1966-1968) executada pela “Banda Veneno” do maestro Erlon
Chaves (1933-1974) irrompendo o palco do Maracanãzinho, durante o “IV Festival
Internacional da Canção”, de 1969. Composição orquestral sendo executada em
alto volume, em ritmo acelerado e repetitivo. Mais alta e urgente, a cada
movimento de sons de guitarras e contrabaixo, formando uma onda sonora que
vagueia pelos ares do ginásio. Ao mesmo tempo em que se faz perceptível
verificar um sentimento de estranheza percorrendo o público no local.
Uma
espécie de repúdio que começa a se manifestar por meio de vaias, que se
intensificam pouco a pouco, sendo incorporadas ao processo de execução musical,
com uma voz aparecendo entre a massaroca sonora. Como que comandando cada
(com)passo posto em movimento. Entre guitarras dedilhadas e em escalas
dissonantes, uma palavra se faz nítida e em bom som: Batman. O que contribui
para aumentar ainda mais, a sensação de desorientação que começava a se
instalar naquele ambiente.
Com a
“Banda Veneno” que levava a execução do tema orquestral em ritmo frenético,
fazendo de súbito por interromper sua performance… Ocorrendo um silêncio de
poucos segundos, mas tensos, que parecem uma eternidade. Que acabam preenchidos
por um conjunto de vaias ensurdecedoras… Momento de pleno caos, em que ninguém
presente entende o que está acontecendo. Até o momento em que vestido com uma
bata preta – tendo estampada uma besta fera em meio ao fogo – Jards Macalé
berra ao microfone: “1,2,3,4” e solta um grito primal. Seguido por uma
sequência de toques das tumbadoras, realizadas por Naná Vasconcelos
(1944-2016), sobrepujados pelo balanço ritmado do contrabaixo, seguido e
mesclado por riffs amplificados de guitarras distorcidas, abrindo caminho para
o declamar-cantar da letra de “Gotham City”, composição em parceria de Jards
Macalé com o poeta e letrista José Carlos Capinam.
Aos
quinze anos eu nasci em Gotham City
Era um
céu alaranjado em Gotham City
Caçavam
bruxas nos telhados de Gotham City
No dia
da Independência Nacional”
As
vaias cessam, como se todos agora estivessem absortos por aquilo que diante de
seus olhos, começava a tomar forma! O Brasil começava a ser apresentado a uma
de suas mais significativas e corajosas performances artísticas, enquanto
expressão da plena liberdade criativa de seus autores. Rompendo todas as
normativas de estruturas harmônicas, melódicas e radiofônicas. Alargando o
alcance da imagética poética em meio ao cancioneiro popular nacional,
radicalizando seu diálogo com a cultura pop internacional, ao brincar e
transfigurar as referências ao seriado televisivo do herói urbano dos
quadrinhos. De um cruzado vingador em sua atuação de combatente do crime e
manutenção da ordem, a revelia das regras e leis da sociedade. Como se fosse ao
mesmo tempo vigilante, juiz e executor.
Gotham
City nos é apresentada, pelo eu-lírico de Jards Macalé, como uma cidade
sitiada, refém de uma força impositiva superiora, autointitulada protetora e
mantenedora da ordem social vigente. Em que a figura de um morcego, alusão
direta e nada sutil, ao Batman, se faz destacar como elemento repressor central
desse aparato de segurança. Tendo o começo da estrofe marcada pelo grito de
Macalé, apoiado e repetido pelo coro da banda, realçando um grito de alerta e
um aviso, de que se vivia uma época de exceções e perigos. Estabelecendo assim,
de maneira singela e simbólica, de que a canção se trata de uma metáfora ao
regime ditatorial presente a realidade brasileira desde a data de 31 de março
de 1964, que se viu ampliado e radicalizado em sua potência antivida após a
promulgação em 13 de dezembro de 1968, do Ato Inconstitucional Nº5.
Cuidado!
Há um
morcego na porta principal
Cuidado!
Há um
abismo na porta principal”
Ao
mesmo tempo em que canta ao público a existência de um abismo que a tudo e a
todos pode sugar e fazer por desaparecer. Situando assim que não há de fato
segurança ou ordem, mas medo e autoritarismo, que torna todos reféns e
prisioneiros de um Sistema que atende aos interesses, serve e protege a poucos.
Um
canto rasgado, visceral, carregado de emoção e tensão! Letra gritada, berrada,
como se o objetivo fosse se fazer ouvir o mais distante possível. Como se o
mundo precisasse prestar atenção as verdades do que de fato ocorria no Brasil!
Assim como sarcasticamente, se opunha a discursiva ideológica de que se as
pessoas trabalhassem corretamente e ordinariamente, para o desenvolvimento do
país, nada de mal lhes iria acontecer. Pretensamente a salvo – e alienados –
dos perigos do mundo, em seus quartos vermelhos:
Eu fiz
um quarto bem vermelho aqui em Gotham City
Sob os
muros altos da tradição de Gotham City
No
cinto de utilidades as verdades
Deus
ajuda a quem cedo madruga em Gotham City”
O
refrão entoado cada vez mais forte, com o coro sendo agora berrado de forma
estendida, em urgência:
“Cuidado!
Há um
morcego na porta principal
Cuidado!
Há um
abismo na porta principal”
No
sentido de enfatizar, que violência e brutalidade eram normativas na sociedade
brasileira. Sendo perseguições, prisões ilegais, tortura, exílio e morte, fatos
comuns a esse Sistema de terror! Em que até mesmo sonhar causava temor…
No céu
de Gotham City há um sinal
Sistema
elétrico e nervoso contra o mal
Meu
amor não dorme, meu amor não sonha
Não se
fala mais de amor em Gotham City”
Uma
sociedade oficialmente livre e democrática, mas que na prática refletia uma
imagem ilusória de realidade. Baseado num aparato de violência estatal
repressor.
Cuidado
Há um
morcego na porta principal
Cuidado
Há um
abismo na porta principal”
Sistema
em ruínas, cada vez mais opressor e violento. Moralista e reacionário! Em que
nada e ninguém se encontrava a salvo e muito menos em segurança. Sistema que
começava a se alimentar de si mesmo e por isso ficando mais virulento e
perigoso! Afinal de contas, quem vigia
os vigilantes de um Sistema vigilante? Quem ao final de tudo, pode – ou
consegue – controlar o Batman e seus asseclas?
A
resposta a essas questões, se fazia berrada e ensurdecedora por uma trupe de
músicos em transe, irmanados na construção de um território livre e anárquico,
durante o período de maior recrudescimento do regime de exceção civil-militar
em nossas terras. Através de um ato de insolência e liberdade artística que não
se pode deixar esquecer e pelo qual Macalé ficaria marcado como um dos artistas
que direta ou indiretamente, acabou perseguido pelos donos do poder, tendo uma
série de shows, turnês e discos cerceados, desfigurados, quando não barrados em
sua execução. Uma carreira de constantes improvisos e adaptações ante as
adversidades impostas, mas nunca de cooptação ou rendição. Mantendo-se
compromissado aos seus valores e ideais artísticos, cidadãos e democráticos.
Não se rendendo aos convites e diretivas para amansar seu discurso e postura.
Por vezes optando em trilhar caminhos tortuosos, mais longos e desgastantes,
mas em harmonia com sua ética tanto pessoal, quanto profissional. Nem que isso
significasse – como tão bem retratado pela poesia de Capinam e a qual
visceralmente ele eternizou em seu cantar – buscar fugir da mediocridade
cotidiana que a todos cercava e sufocava.
Só
serei livre se sair de Gotham City
Agora
vivo como vivo em Gotham City
Mas vou
fugir com meu amor de Gotham City
A
saída, a saída, a SAÍDA, é a porta principal
Improvisação
total, Macalé como que em transe, repetindo que a saída “é a porta principal”.
Entre berros e mais berros, entre execuções musicais que oscilam entre free
jazz e solos rocks de guitarra, com os metais da “Banda Veneno” aumentando
ainda mais a sensação de caos que se instaurou no palco.
“Cuidado
Há um
morcego na porta principal
Cuidado
Há um
abismo na porta principal”
Como se
todos, não somente no Maracanãzinho, mas em todo país estivessem sendo tragados
pelo Sistema que se promulgava infalível e invencível. Mas que ao seu final se
alimenta e reproduz com a dor, o medo e a morte de todos que vivem ao seu
alcance.
A
execução de Gotham City assume, a partir deste instante, a forma provocativa de
uma coda, lançada diretamente contra uma população alienada, anestesiada ou
colaboracionista diante de um regime assassino. Mas também irrompia em choque
com uma parcela que, embora engajada na resistência e no combate aos governos
militares e a seus aliados civis, revelava-se incapaz de reconhecer uma forma
de oposição – ou de exercício político – que se realizasse fora de seus padrões
estéticos e imagéticos de legitimação artística ou de práxis política.
Isso
explica a vaia conjunta e aparentemente unilateral de conservadores e
progressistas, apoiadores e opositores da ditadura, alienados e críticos do
sistema, que se fundiram numa só voz em meio às intempéries e aos xingamentos
dirigidos a Jards Macalé e à sua trupe musical. Um vórtice de emoções que se
intensificava a cada repetição dos gritos de “a saída é pela porta principal”,
frase que parecia radicalizar e inflamar todo o sentimento de descontentamento
até então contido – mas que, naquele momento, já não precisava mais ser
reprimido.
Uma
verdadeira ação de happening cultural, em que o público instigado pelo artista,
rompe com as convenções tradicionais daquilo que se espera da plateia como mera
espectadora, e não enquanto agente atuante de um processo de criação coletiva.
O que leva o evento para caminhos imprevistos e inimagináveis. Em que gritos
arfantes, berros guturais de angústia, vão guiando o final da apresentação,
diminuindo o volume do acompanhamento instrumental… Não restando nada mais do
que os sons de uma ruína que ali se fazia em anunciar! Em meio à euforia
ensaiada de sermos o país do futuro que agora iria para frente, Macalé, os
Brazões e a Banda Veneno, cantaram a entropia que a tudo consome. Que
desmascara a todas as ilusões e mentiras! Revelando o pesadelo ditatorial, com
os seus abusos e arbitrariedades, que corroía o país, como sociedade, dia após
dia. Ao vivo e jogada diretamente – via rádio e televisão – aos lares de todo
território nacional. Assim constituindo uma representação artística política
pelo qual o Brasil passava.
Em que
Jards incorpora, encarna o papel, a figura do cantante desvairado, do gritador
sátiro, de um profeta do caos. Maravilhosamente e livremente radical em
interpretação, dando corpo sonoro a uma master piece de 6 minutos e 30 segundos
que transformava em farrapos a fantasia de um país feliz e em paz. Mas em
realidade, cada vez mais perdido e sem rumo, inseguro, indo em direção a um
caos sem fim. Restando duas alternativas ante tal situação, a saída como
entrada principal ou ser engolido pelo abismo de apetite insaciável que a tudo
e a todos engolia.
Cotidiano
nefasto, em que até mesmo os defensores do Sistema, assim como os seus agentes
repressores, acabam sugados pela pretensa ordem social ao qual tanto devotavam
apoio e empenho! Pois qualquer ditadura se dá enquanto destruidora de toda e
qualquer possibilidade de normalidade e tranquilidade social. Se mantendo e se
reproduzindo através do medo e da alienação. De opressões e morte. Inclusive
daqueles que lhe são os mais fiéis e ardorosos servos!
Realidade
a qual Macalé denunciou e enfrentou, através de um canto louco, em libertária
destemperança poética… Recebido em meio a animosidades e vaias. Consagradoras,
verdadeiras, sinceras… Libertadoras de
todo medo, bálsamo de todas as dores e – naquele momento em questão – mais
valiosas do que qualquer prêmio que se poderia almejar! Mas, sempre guiado por
uma esperança de que os tempos de Primavera voltariam a florir por estas
terras. Na certeza de que um artista se dá pela sua coragem e honestidade em ser
verdadeiro consigo, para depois exercer diálogo com seu público. Não
necessariamente em acordo com o que este espera ou almeja receber em troca de
seu reconhecimento ou idolatria. Ao não se submeter a nenhum tipo de regras ou
normas previamente impostas! Apenas em concordância com o seu criar e exercício
de plenitude artística!
Sendo
essa sua performance, a primeira grande manifestação pública dessa práxis
autoral, a qual faria por lapidar e radicalizar ao longo de toda a sua
trajetória. Pela qual hoje, através destas mal traçadas linhas, celebramos e
honramos a sua memória e legado!
Salve
Jards Macalé, aquele que sempre soube e optou, até o final, por desafi(n)ar o
coro dos contentes, dessa – por vezes ainda tão inóspita e desumanizada –
Gotham City chamada Brasil.
Fonte:
Por Christian Ribeiro, no Le Monde

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