A
música brasileira que rodou o mundo, foi cantada por Stevie Wonder e virou hino
do Partido Socialista francês
No
final de setembro, o cantor e compositor Antônio Carlos Pinto, da dupla Antônio
Carlos & Jocafi, recebeu em seu apartamento no Rio de Janeiro um pedido
especial da produção do Grammy Latino. A cantora cubano-estadunidense Celia
Cruz (1925-2003) teve seu centenário de nascimento lembrado na entrega do
prêmio em Las Vegas, nos Estados Unidos, em 13 de novembro. Em 1977, Celia
gravou em dueto com Willie Colon a salsa Usted Abusó, versão de Você Abusou
(1970), da dupla soteropolitana. "Como Celia tinha um amor pela gente fora
de conta, eles pediram um depoimento meu e de Jocafi para abrir a cerimônia do
Grammy", diz Antônio Carlos. Com o parceiro impossibilitado de participar
da gravação, Antônio Carlos gravou sozinho a mensagem.
Você
Abusou teve centenas de versões ao redor do mundo, da Argentina ao Sri Lanka.
Além de Celia Cruz, a música foi gravada por Ella Fitzgerald, Sérgio Mendes,
Serge Gainsbourg, Vinicius de Moraes, Toquinho, Maria Creuza, Maysa, Jorge
Aragão, MPB-4, Sivuca, Pauline Croze, Daniela Mercury e Diogo Nogueira, entre
muitos outros nomes celebrados da música nacional e internacional. Também foi
cantarolada por Stevie Wonder em um show com participação de Gilberto Gil no
Rock in Rio 2011, com coro de milhares de pessoas.
Você
Abusou exibe harmonia sofisticada, na qual a linha de baixo (sequência de notas
tocadas pelo instrumento grave, normalmente o contrabaixo) ajuda a criar um
efeito de doce lamento. Em uma época de canções-manifesto destinadas a um
público jovem cada vez mais intelectualizado, a letra despojada ria da própria
simplicidade:
Você
abusou
Tirou
partido de mim, abusou
Tirou
partido de mim, abusou
Tirou
partido de mim, abusou
Mas não
faz mal
É tão
normal ter desamor
É tão
cafona sofrer dor
"Foi
a nossa única parceria em que a música é 100% de Jocafi, e a letra, 100%
minha", afirmou Antônio Carlos, ao lado do parceiro, em entrevista por
videoconferência à BBC News Brasil em 21 de outubro. Normalmente, a dupla cria
letra e música de maneira colaborativa, sem preocupação com a divisão rígida de
papéis.
Na
época, a primeira reação de Jocafi aos versos escritos pelo amigo foi negativa.
"Eu disse: 'É uma melodia tão bonita, e você está botando essas coisas de
que é tão cafona sofrer dor'", relembra Jocafi. Foi o multiartista Edy
Star, amigo dos dois, que convenceu o compositor a mudar de ideia. "Ele
disse: 'Jocafi, isso aí é a coisa mais moderna que eu já vi, ninguém faz letra
dessa forma'", recorda-se o músico, que acabou se rendendo aos versos do
parceiro.
A
canção mais famosa de Antônio Carlos & Jocafi soma-se a uma robusta
produção da dupla, que inclui 16 discos, dezenas de prêmios em festivais,
trilhas sonoras para TV e cinema, shows e turnês por todo o mundo — e nenhum
sinal de aposentadoria à vista. Suas canções já foram interpretadas por Orlando
Silva (Desespero), Luiz Gonzaga (Chuculatera, Cordel), Alcione (Jesuíno Galo
Doido), Emílio Santiago (Recado), Marcelo D2 (Qual é?, releitura de Kabaluerê)
e BaianaSystem (Água, Miçanga), entre muitos outros.
Com 80
anos recém-completos, Antônio Carlos comemora também este ano o 54º aniversário
de Mudei de Ideia (1971). Foi o primeiro álbum com Jocafi, que fará 81 anos em
21 de dezembro.
A
seguir, alguns momentos marcantes da vida e da obra dos baianos, cultuados por
quatro gerações de fãs.
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Berço musical
Antônio
Carlos Marques Pinto conta que cresceu junto com a música. "Meu avô
tocava. Antigamente, na casa de todo mundo na Bahia havia um piano, era normal.
Minha mãe tocava um pouquinho de piano. Geralmente, também tinha acordeão e
violão", relata o artista. O pai do compositor cultivava uma tradição.
"Todo sábado, trazia para casa um disco 78 rotações com canções de
Francisco Alves, Orlando Silva, Nelson Gonçalves".
Antônio
Carlos cresceu no bairro Garcia, em uma casa vizinha à de Carmen Oliveira da
Silva, filha da mãe de santo Menininha do Gantois. Carmen sucedeu a mãe em
2002, assumindo como Mãe Carmem do Gantois. "O batuque,
pa-tá-tim-tum-tum-tum-pá-tá, chega ao ouvido da criança que acaba de nascer, e
antes de falar 'mamãe', todo mundo já sabe fazer ijexá [ritmo de origem
africana bastante presente na Bahia]", diverte-se Antônio Carlos.
Criado
no bairro Cosme de Farias, Jocafi lembra de outra influência comum aos dois
parceiros: o rádio. "Meu pai era um garçom do município de Bonfim, mas
conseguiu juntar dinheiro para comprar um aparelho de rádio", diz. "A
Rádio Nacional foi a grande mentora de todos os compositores de nossa
geração."
Outra
presença constante nos anos 1950 nas ruas de Salvador e de outras cidades
brasileiras eram os serviços de alto-falante, que transmitiam músicas, notícias
e recados. "Quando a gente estava jogando bola na rua, ouvia [pelos
alto-falantes] todos os cantores e compositores famosos da época, como Luiz
Gonzaga e Waldick Soriano, e também música erudita, Bach, Beethoven,
Ravel...", afirma Antônio Carlos. "A plebe rude não tinha rádio, que
era caro, mas tinha alto-falante", comenta Jocafi.
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O encontro da dupla
Quando
foi apresentado a Jocafi, Antônio Carlos já tinha participado, como cantor e
compositor, de festivais na Bahia e do 3º Festival de Música Popular Brasileira
da TV Record, em 1967, em São Paulo. A canção selecionada para este festival,
Festa no Terreiro de Alaketu, foi interpretada no evento por Maria Creuza.
No ano
seguinte, a cantora e Antônio Carlos uniram-se em um casamento de quase duas
décadas que deixou três filhos e um legado inestimável para a música brasileira
por meio de discos, shows e turnês juntos. Aos 81 anos, baiana de Esplanada e
hoje radicada na Argentina, Maria Creuza é uma das maiores cantoras do Brasil,
com repertório que inclui títulos de Tom Jobim, Vinicius de Moraes, Lupicínio
Rodrigues, Nelson Cavaquinho, Chico Buarque e Roberto Carlos, entre outros.
Jocafi
conta que era fã de Antônio Carlos desde o festival de 1967. Quem apresentou a
dupla foi o pianista e compositor Carlos Lacerda (nenhum parentesco com o
homônimo ex-governador do então Estado da Guanabara).
A
oportunidade de parceria surgiu, porém, somente em 1968, por intermédio do
poeta Ildásio Tavares, com quem ambos já tinham trabalhado. "Jocafi tinha
a música do que viria a ser Catendê e queria que Ildásio colocasse letra.
Acabou que fomos lá para casa e aconteceram Catendê, Mercado Modelo e
outras", diz Antônio Carlos.
A
primeira composição da dupla, Catendê, tinha dois coautores: Ildásio e Onias
Camardelli. Em 1969, Catendê foi selecionada para o 5º Festival de Música
Popular Brasileira da TV Record, registrada como composição apenas de Jocafi,
Ildásio Tavares e Onias Camardelli — segundo Antônio Carlos, na época "era
feio quatro parceiros assinarem uma música".
A fim
de acompanhar os intérpretes Maria Creuza e Ruy Felipe à final do festival, a
futura dupla viajou para São Paulo. "Ildásio Tavares era filho de
fazendeiro, e Jocafi e eu, filhos de pobre. Ele pediu à mãe que nos emprestasse
1 milhão de cruzeiros para a viagem. Gastamos 500 mil nas passagens e ficamos
com 500 mil para passar o resto da vida", brinca Antônio Carlos. Catendê
acabou desclassificada por já ter concorrido em um festival regional. Depois de
alguns meses na capital paulista, transferiram-se para o Rio de Janeiro.
Ao
ouvir Maria Creuza interpretar Mirante, de Aldir Blanc e César Costa Filho, no
2º Festival Universitário de Música Popular Brasileira, realizado pela TV Tupi,
Vinicius de Moraes insistiu em conhecer a cantora. Em seguida, foi a vez de
Creuza apresentar Antônio Carlos e Jocafi ao poeta.
Em uma
tarde de sábado, quando os três preparavam-se para ir à casa de Vinicius no
bairro da Gávea, o telefone tocou. "Naquele tempo, usava-se telegrama da
Western [telegrama fonado da companhia Western Union]. Eu atendi, e o cara
falou assim: 'Sua mãe morreu. O enterro é amanhã'", lembra Antônio Carlos.
Consternados, Creuza e Jocafi quiseram cancelar o compromisso, mas Antônio
Carlos se recusou a fazê-lo. "A fortuna da minha mãe era que eu fosse
cantor. Na última vez que ela me viu cantar na TV Itapoan, me disse: 'Meu
filho, você cantou como um artista do Rio'."
Na casa
de Vinicius, o trio encontrou, além do poeta, os compositores Tom Jobim e Dori
Caymmi e o jornalista Nelson Motta, que mantinha uma coluna diária na TV Globo,
exibida antes do Jornal Nacional. "Na segunda-feira, Nelsinho Motta disse
assim: 'Olha, eu estive na casa de Vinicius no sábado e conheci uma dupla de
baianos chamada Antônio Carlos & Jocafi. Se eu fosse produtor, contrataria
eles logo antes de todo mundo'", recorda-se Jocafi. Em poucas semanas, com
a intermediação do produtor Rildo Hora, a dupla assinou contrato com a
gravadora RCA Victor.
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O primeiro álbum
Na
época, era de praxe que artistas estreantes lançassem um ou dois compactos
(discos menores, com apenas duas faixas, uma de cada lado) antes de produzir um
álbum. O primeiro compacto de Antônio Carlos & Jocafi pela RCA tinha um
rock, Roberto, Não Corra, e Por Causa Dela.
A
primeira faixa era uma sátira a Roberto Carlos, que acabara de lançar As Curvas
da Estrada de Santos. "Ele [Roberto Carlos] é gente fina, mas não perdoa a
gente até hoje", diverte-se Jocafi.
O
apresentador Silvio Santos (1930-2024), que na época comandava um programa de
auditório dominical na TV Globo, convidou-os para uma participação. Amigos da
dupla que trabalhavam na emissora alertaram que a real intenção do apresentador
seria ridicularizá-los, em uma espécie de desagravo a Roberto Carlos.
"Silvio Santos queria acabar com a gente", deduz Antônio Carlos.
Semanas
antes, o músico, jornalista e jurado José Fernandes quebrara o compacto da
dupla diante das câmeras. Fernandes tinha fama de rigoroso e não via com bons
olhos a influência estrangeira, especialmente do rock e da guitarra elétrica,
na música brasileira. "Dizia: 'Isso aí é um rock, é um rock!". Os
caras tinham uma ideia errada, porque era um rock muito bem feito",
ironiza Jocafi.
A dupla
compôs então uma canção satírica em forma de recado ao próprio Fernandes para
ser apresentada antes de Roberto, Não Corra. "Fomos aplaudidos de pé pelo
Zé mesmo", diz Antônio Carlos, rindo. A repercussão foi tão grande que o
próprio diretor artístico da RCA Victor na época, Alfredo Corletto, viajou de
São Paulo ao Rio para conhecer os baianos. Assim, surgiu em 1971 o primeiro
álbum, Mudei de Ideia, que trazia Você Abusou, Kabaluere, Conceição da Praia,
Deus o Salve e outras.
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'Versão' francesa
Depois
de uma turnê da dupla pela Europa, Maria Creuza alertou que Você Abusou fazia
sucesso em uma versão francesa, Fais Comme L'oiseau ("Faça como o
pássaro"), de Michel Fugain.
A
versão de Fugain chegou a ser adotada como hino semioficial do Partido
Socialista Francês, do qual o cantor e compositor é simpatizante. O caso
motivou uma ação judicial por plágio contra Fugain nos tribunais franceses. A
dupla brasileira acabou obtendo ganho de causa, com ressarcimento financeiro e
inserção de autoria em todos os registros da obra. "A RCA mobilizou
advogados, e todo o dinheiro que iria para ele [Fugain] veio para nós",
lembra.
Mas
Jocafi reconhece que Fugain é um "grande compositor" e fez uma letra
"sensacional". Antônio Carlos afirma que a versão francesa é mais
famosa que a da dupla soteropolitana. Até hoje, comentam os músicos, a maioria
esmagadora do público na Europa crê que a canção foi composta por um francês.
Em
turnês internacionais, os baianos estão acostumados a ouvir o público cantar
Você Abusou em francês ou espanhol — esta última na versão gravada por Celia
Cruz. "Celia fez uma leitura mais próxima da guaracha cubana [gênero
musical]", diz Jocafi.
Mas,
afinal, o que é que Você Abusou tem para calar tão fundo nos ouvidos e nas
mentes de tantas audiências ao redor do mundo?
Os dois
fornecem uma resposta simples: a canção é um samba de roda, gênero musical
ilustre nascido no Recôncavo Baiano e cultivado por Dorival Caymmi, João
Gilberto, Gilberto Gil e Caetano Veloso, que pode ser ouvido em qualquer
esquina de Salvador."Enquanto eu venho do candomblé, Jocafi vem do samba
de roda", explica Antônio Carlos.
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Praias do futuro
Com
obra reconhecida no mundo inteiro e uma agenda de shows até hoje agitada,
Antônio Carlos & Jocafi continuam sendo os mais célebres intérpretes de
suas próprias canções.Ao longo dos anos, deixaram de lado outros instrumentos —
Antônio Carlos já tocou baixo, e Jocafi, cavaquinho — para se concentrar no
violão, mas assumiram novos papéis como arranjadores e produtores.
Se
parcerias tão longevas são raras no mundo da música, ainda mais insólitas são
duplas que ultrapassem 50 anos de atividade. No caso de Antônio Carlos &
Jocafi, porém, os dois garantem que a parceria não será interrompida enquanto
viverem. "Eu não quero fazer nada sem ele", diz Antônio Carlos.
"Quando falo 'esta música é minha', está sempre subentendido que é minha e
de Jocafi."
Isso
não significa, porém, que não haja espaço para novas colaborações.
Com
modéstia, a dupla credita a mais recente fase — "a penúltima", brinca
Antônio Carlos — de sua longa carreira a dois músicos da nova geração: Marcelo
D2, que realizou em 2003 uma releitura de Kabaluere em Qual é?, e Russo
Passapusso e a banda BaianaSystem, que se tornaram parceiros
recorrentes."Com Russo Passapusso, mudou totalmente a maneira de a gente
compor. É o que eu sempre digo: tem de ter qualidade", explica Jocafi.
Em
2019, o BaianaSystem lançou o álbum O Futuro Não Demora, fortemente marcado
pela temática ambiental, tendo como carro-chefe Água — que tem a dupla entre os
compositores. No ano seguinte, foi a vez de Miçanga, single da banda que ganhou
o Grammy Latino.
Em
2022, Russo Passapusso, Antônio Carlos e Jocafi lançaram Alto da Maravilha,
álbum premiado pela Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA).
Em
2024, nasceu o álbum do BaianaSystem Batukerê, e este ano mais um single, Praia
do Futuro.
O
próximo projeto da dupla é uma trilogia inspirada na obra de Jorge Amado, que
já serviu de mote para o álbum Antônio Carlos & Jocafi cantam Jorge Amado
(1996). No momento da conclusão desta reportagem, a BBC News Brasil enviou
mensagem de texto para Antônio Carlos a fim de checar informações.
"Estamos dentro do estúdio. Vou mandar para você a última música que
gravei", respondeu o compositor.
A faixa
— na qual a dupla se junta a uma cantora de voz majestosa e límpida sobre uma
base de violão, órgão, cordas, percussão e vocais — parece se equilibrar entre
a sonoridade dolente dos primeiros trabalhos e a roupagem visceral da produção
mais recente dos parceiros.
O
repórter transmite sua impressão e pergunta qual é o nome da canção e quem é a
intérprete."Essa música, Ingorossi, foi a primeira música que eu fiz na
minha vida. Com ela que eu comecei tudo. Esse final eu fiz agora com
Jocafi", explica Antônio Carlos em áudio."Quem está cantando com a
gente é Maria Creuza", complementa. "Ela gravou a primeira música
minha e parece que vai gravar a última."
Fonte:
BBC News Brasil

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