Empresas
de festas visam adolescentes e marketing predatório aposta até em porta de
escola
A
promessa era de uma festa exclusiva para adolescentes. Para garantir a entrada,
pais ou responsáveis deveriam assinar um formulário liberando a entrada do
participante se tivessem entre 12 e 14 anos. Em caso dos acima de 15 anos, o
documento já era outro. O cenário da festa seria o terraço do Paço Alfândega,
shopping de classe média alta do bairro do Recife, numa noite de sábado.
“De
repente, abriram as portas e os adultos começaram a entrar. Ninguém foi
revistado. Quando percebi que o espaço não era mais exclusivo, fiquei
apreensiva”, contou uma fisioterapeuta pernambucana, mãe de um garoto de 13
anos que participou do evento. “Fui falar com o organizador, mas ele me ignorou
completamente”, reclamou, dizendo ter acreditado na exclusividade da festa para
adolescentes e na promessa de controle de acesso e segurança.
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Por que isso importa?
• Parte da legislação que trata sobre
proteção de crianças e adolescentes se volta justamente à vulnerabilidade desse
grupo a publicidades e propagandas, especialmente em casos ocorridos sem o
conhecimento de pais ou responsáveis.
A festa
era uma celebração de halloween, realizada no dia 25 de outubro, que tinha como
atração principal o grupo Os Neiff, dono das canções “Menor Indeciso”, “Gostosa
não chora” e “Tua ex é uma delícia”. Quando o show teve início, adultos foram
liberados no espaço que até então era exclusivo para os adolescentes.
Questionada sobre o controle da entrada de bebidas alcoólicas nos eventos, a
administração do Mirante do Poço afirmou à Pública que sua responsabilidade se
limitou à locação do espaço e “quem faz esse controle é o cliente”.
“Minha
filha tem uma medida protetiva contra um homem que assediou ela, e em hipótese
nenhuma deixaria ela ir para uma festa sozinha com adultos e crianças no mesmo
espaço”, disse uma mãe, ouvida sob anonimato, ao lembrar de quando percebeu a
configuração do evento ao buscar a garota de 13 anos, por volta de 1h. “Eu
fiquei dormindo no carro, e quando minha filha me ligou, fui pegar ela. Estavam
todos juntos, adultos e crianças”, reclamou uma coordenadora comercial do
Recife sobre a falta de controle. “Qualquer pessoa poderia ter pego elas. […]
Chegava qualquer um e pegava, sem ao menos ver a pulseira que tínhamos no
braço”.
E a
responsabilidade? Segundo o documento que assinaram para dar acesso ao evento,
totalmente dos pais e responsáveis. O termo de autorização foi um dos
pré-requisitos divulgados pela empresa que promoveu o evento, a pernambucana
Sevag. Procurada pela Agência Pública diversas vezes — por e-mail, mensagens e
perguntas públicas durante transmissões ao vivo — a empresa não respondeu aos
questionamentos da reportagem até o momento.
O
silêncio da empresa encontra respaldo na ausência ou resposta tardia do poder
público. Apenas após o contato da Pública, o Ministério Público de Pernambuco
(MPPE) informou que iniciaria uma análise preliminar do caso para verificação
das informações e possíveis providências. Segundo a assessoria de imprensa do
MPPE, a instituição “até o momento não recebeu qualquer denúncia sobre a
festa”.
A
advogada Cristiane Britto avalia que não apenas a realização das festas, mas a
divulgação delas expõem uma falta de fiscalização do que pode ferir o Estatuto
da Criança e do Adolescente (ECA). “Entre as atribuições do Ministério Público
estão a promoção de ações civis públicas preventivas e a fiscalização de
qualquer atividade que envolva crianças e adolescentes […] o MP pode e deve
atuar, pois trata-se da proteção moral e psicológica dos adolescentes”,
complementa.
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De festas secretas ao vale tudo cotidiano, excessos antecedem eventos
Com o
uniforme da escola, três meninas dançam ao lado de um artista que se
apresentará na festa que promove na ação. O desafio, gravado nas imediações da
unidade de ensino, vale prêmios. De ingressos à chance de conhecer a atração
principal de um show “que todo mundo tem que ir”.
O
vídeo, postado no Instagram, divulgava mais uma festa da Sevag, com as
adolescentes desafiadas servindo de garotas-propaganda no que chama de blitz
das escolas. Nas roupas, lê-se “Colégio Damas”, um dos mais tradicionais da
capital pernambucana. A escola diz não compactuar com a ação. Alguns pais dizem
sequer saber que ela é feita e não conseguem apontar qualquer problema ou erro
na investida da Sevag Produções, responsável pela festa, que escolhe as
calçadas nas imediações de escolas para tornar adolescentes não apenas plateia,
mas conteúdo para os perfis nas redes sociais da empresa.
“A
partir de segunda-feira, tá de volta nossas blitze. Porta de colégio. Na saída
dos colégios, a Sevag tá chegando […] vai ter atrações nas blitze também […]
Tem sorteio de ingresso, de pulseira de camarote, de conhecer a atração, de
tirar foto com o Neiff”, diz um organizador em um dos vídeos.
Segundo
especialistas ouvidos pela Pública, esse é um caso claro em que o desejo de
pertencimento é transformado em ferramenta de marketing e pressão social. Para
a advogada Cristiane Britto, as ações nas imediações de escolas, sem
autorização formal, podem configurar violação à proteção integral e prática
comercial indevida.
“É uma
fase em que o olhar do outro se torna o espelho da própria existência — o
adolescente quer ser visto, aceito e reconhecido. Quando ele percebe que ‘todo
mundo vai’, ocorre o que chamamos de validação social: estar presente significa
existir”, afirma a psicóloga Silva Oliveira.
E é
essa realidade com a qual promotores de eventos do gênero contam. Em uma das
ações de divulgação da Sevag nas redes sociais, a empresa convidou o produtor
de festas conhecido como “Cazelovão” para comentar o apelo social desses
eventos. “Quem não fosse, era: ‘eita, ele não foi pra festa, ele não vai pra
festa’. Ele ia ser o ridicularizado da turma, na verdade, né?”, diz. Em
seguida, completa: “Eu digo a tu que 80% de todas as turmas iam […] Eu já sabia
que eles iam, então vou também”.
Ao lado
das postagens das blitze, os perfis exibem ambientes de balada multicoloridos
com jovens maquiadas, posando nos eventos disputados, um movimento parecido com
o que décadas atrás, em capitais nordestinas remeteria ao antigo Bobflash,
espécie de coluna social digital que fez sucesso nos anos 2000 divulgando
frequentadores de eventos noturnos.
Em
nota, o Colégio Damas afirmou não ter “conhecimento sobre o conteúdo, nem de
qualquer ação comercial realizada pela empresa” e reiterou que “a empresa Sevag
não possui qualquer tipo de parceria” com a instituição. A Sevag não quis
responder aos questionamentos da Pública. O espaço segue aberto para
manifestações.
O
desafio de pais que buscam acompanhar os eventos frequentados pelos filhos
passa longe de restrito ao Recife e há modus operandi que se multiplicam e
inspiram ações de empresas em todo o país. Um deles é o das festas secretas,
cada vez mais comuns.
A aura
é de segredo. A festa da sexta-feira está marcada, ingresso comprado, mas ainda
não se sabe para onde ir. O endereço só é informado pouco antes do evento,
muitas vezes em grupos restritos de WhatsApp. O acesso para poucos dá um ar de
exclusividade e faz parte da estratégia de divulgação e marketing.
Na
prática, o movimento é planejado – e dificulta que o local do evento seja alvo
de fiscalizações, em especial quando há a presença de adolescentes e há venda
de bebidas alcoólicas.
O
advogado e vice-presidente nacional do Observatório Nacional da Advocacia
Criminal (Onac), Arthur Richardisson, aponta outro risco comum em festas
voltadas ao público adolescente: a divulgação tardia do local do evento. Nessas
situações, informações sobre atrações e valores são divulgadas com
antecedência, mas o endereço é revelado apenas no dia ou poucas horas antes.
Richardisson afirma que o “surpresa”, em si, não é ilegal, mas que “o problema
começa quando o sigilo é usado para driblar deveres legais que ganham peso
redobrado quando o público-alvo são crianças e adolescentes”.
“Para
eventos voltados a adolescentes, essa prática é indício de não conformidade e
pode, sim, ser considerada abusiva e/ou irregular quando impede licenciamento,
fiscalização e o cumprimento das salvaguardas do ECA e do CDC [Código de Defesa
do Consumidor]. A atuação preventiva é plenamente cabível: o MP pode requisitar
previamente os documentos (alvará municipal, laudo dos Bombeiros, licenças
sanitárias, classificação indicativa, política de acesso), expedir
recomendação, firmar TAC [Termo de Ajustamento de Conduta] e, na falta de
conformidade, pleitear tutela inibitória e interdição”, explica o advogado.
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Marketing ou assédio? Quando o excesso bate à porta até da escola
Segundo
Richardisson, vice-presidente do Onac, a omissão do Estado em casos como o
registrado no Recife poderia gerar responsabilidade institucional. Em nota, o
MPPE informou que “foi instaurada Notícia de Fato e distribuída à 33ª
Promotoria de Justiça de Defesa da Cidadania da Capital”, mas que “não é
possível dar informações sobre as providências adotadas, uma vez que o
procedimento ainda se encontra sob análise”.
“Porta
de escola não é fronteira livre para marketing agressivo! O artigo 227 da Carta
Magna estabelece com clareza meridiana que é dever da família, da sociedade e
do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o
direito à dignidade, ao respeito, colocando-os a salvo de toda forma de
exploração”, afirma Richardisson.
A
Resolução nº 163/2014 do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do
Adolescente (Conanda) reforça esse entendimento ao classificar como abusiva
toda comunicação mercadológica que se dirija a crianças e adolescente,
incluindo promoções em escolas, distribuição de brindes, sorteios e uso de
linguagem apelativa ou lúdica.
“A
abordagem de adolescentes nas portas das escolas representa verdadeiro assédio
mercadológico, uma violência simbólica que se traveste de entretenimento. Não
nos iludamos, não se trata de mero convite social, mas de estratégia
meticulosamente arquitetada que explora a vulnerabilidade psicológica própria
da adolescência”, complementa o advogado.
“É
crucial questionarmos as campanhas de marketing que exploram intencionalmente
essa vulnerabilidade do desenvolvimento. Estratégias que ativam a pressão do
grupo não estão apenas vendendo um ingresso; estão comercializando a solução
para uma angústia profunda que elas mesmas ajudam a inflamar”, avalia a
psicóloga Raphaela Oliveira de Faria.
Segundo
a advogada especialista em direito da criança e do adolescente Andrea Quadros,
no caso da Sevag, que promoveu um evento destinado exclusivamente a
adolescentes de 12 a 16 anos, a responsabilidade pela filtragem do artista e
pela adequação do conteúdo era integralmente da produtora. “O artista está
cumprindo contrato. Os responsáveis são os contratantes se estão ofertando
conteúdo inapropriado para crianças e adolescentes”, afirma Quadros, reforçando
que o ECA não proíbe shows de funk, mas exige que a classificação etária seja
compatível com o ambiente, especialmente quando há letras com teor sexual,
violência ou referência a drogas.
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Presença de adolescentes em festa com Neiff na PB virou caso de polícia
A
presença de crianças e adolescentes motivou o Ministério Público da Paraíba
(MPPB) a abrir um inquérito civil para investigar a responsabilidade dos
organizadores do 35º Super Motocross de Cubati (PB), município de 7,5 mil
habitantes, localizado no Seridó paraibano.
Em
julho de 2025, uma menina de apenas 11 anos subiu ao palco do grupo Os Neiffs
para dançar. Os registros da interação geraram controvérsia nas redes sociais
devido à temática das canções dos artistas e inspirou discussões sobre
responsabilização e sexualização de crianças e adolescentes no mundo do
entretenimento. A festa, um evento público, promovido pela prefeitura, foi
encerrada após registros de briga que resultaram na morte de um adolescente de
17 anos, além de outros dois feridos.
À
Pública, o MPPB informou que a investigação ainda não avançou, à espera do
cumprimento de uma carta enviada à Polícia Civil de Pernambuco, para ouvir um
dos investigados. Em relação ao homicídio, o órgão ofereceu denúncia contra o
suspeito e o processo segue em fase de instrução e julgamento.
Segundo
o MPPB, a Prefeitura de Cubati informou que o contrato firmado previa
responsabilidade exclusiva dos artistas e seus representantes a partir do
momento em que subiam ao palco para “a condução do espetáculo artístico”.
Fonte:
Por Guilherme Cavalcanti, da Agencia Pública

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