sexta-feira, 12 de dezembro de 2025

Canetada de deputados do Maranhão pode riscar felino do mapa

À primeira vista, parece uma boa ideia. O projeto de lei do deputado Eric Costa (PSD), da Assembléia Legislativa do Maranhão, propõe uma alteração nos limites do Parque Estadual do Mirador de modo a aumentar a área de proteção dos atuais 500.842 hectares para 502.334 hectares. “Ao ampliar o Parque do Mirador, estaremos fortalecendo a fiscalização e inibindo atividades predatórias que ameaçam a integridade ambiental da região”, afirmou o parlamentar em setembro do ano passado.

Segundo ambientalistas e acadêmicos, no entanto, há uma pegadinha. Áreas de Cerrado preservadas pelo parque, eles dizem, seriam substituídas por outras ocupadas por lavouras e pastagens. “[o projeto] vai tirar área boa para a biodiversidade e botar área que não é minimamente equivalente”, afirma Tadeu Gomes, coordenador do Laboratório de Conservação e Ecologia da Vida Silvestre do Departamento de Biologia da Universidade Estadual do Maranhão (Uema). Ao lado de outros 13 pesquisadores da universidade, ele assinou uma manifestação técnica contra o PL 280/2024.

Apresentado em junho do ano passado, o projeto perdeu força após críticas da sociedade civil e da Secretaria Estadual de Meio Ambiente e Recursos Naturais (Sema), que publicou uma nota técnica classificando a proposta como “frágil e intempestiva”. Neste ano, o projeto voltou à pauta da Assembleia, onde aguarda votação na Comissão de Constituição e Justiça.

Criado em 1980, o Parque Estadual do Mirador é a quarta maior unidade de conservação do Cerrado brasileiro, abrangendo os municípios de Formosa da Serra Negra, Fernando Falcão e Mirador. Somado às terras indígenas vizinhas, o parque forma o segundo maior bloco de área protegida do Cerrado, com cerca de 945.900 hectares.

A área se torna ainda mais relevante diante do avanço do agronegócio sobre o bioma, especialmente na região conhecida como Matopiba, que abrange parte dos estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia. “O Cerrado é o que chamamos de zona de sacrifício”, afirma Patrícia Silva, assessora de advocacy do Instituto Sociedade, População e Natureza (ISPN), organização da sociedade civil que apoia projetos comunitários sustentáveis. “Para a gente preservar a Amazônia, o Cerrado acaba sendo a porta para a expansão do agronegócio.”

Além de proteger o bioma brasileiro mais pressionado pelo desmatamento, o Mirador é, nas palavras de Tadeu, a “apólice de seguro” de uma espécie de felino ameaçada de extinção no Brasil e no mundo.

O gato-do-mato (Leopardus tigrinus), conhecido em outras partes do Brasil como gato-do-mato-pequeno, pintadinho ou gato-macambira, tem porte parecido ao de um gato doméstico e alimenta-se sobretudo de pequenos mamíferos, lagartos, ovos e aves. Presente em áreas de floresta e matagais de países como Bolívia, Colômbia, Equador e Costa Rica, o felino encontra no Mirador o único lugar do mundo onde sua população é viável no longo prazo, em um horizonte de mil anos.

“O parque é chave para a biodiversidade do Brasil e do mundo, porque é a única unidade de conservação que protege uma espécie em perigo de extinção em nível mundial”, explica Tadeu, que estuda os felinos do Mirador desde a década de 1990. A aprovação do PL, no entanto, atingiria em cheio essa população. “A área que o projeto está tirando [do parque] é ambiente de primeira para o gato, e a área que está colocando não serve, porque está toda antropizada”, diz Tadeu.

O Parque Estadual do Mirador abriga sete espécies de felinos, conhecidos como “os sete do Mirador”. A partir do alto, à esquerda: Leopardus wiedii (gato-peludo, gato-maracajá); Leopardus pardalis (jaguatirica); Leopardus braccatus (gato-palheiro); Leopardus tigrinus (gato-do-mato, gato-macambira); Panthera onca (onça-pintada); Herpailurus yagouaroundi (jaguarundi, gato-mourisco); Puma concolor (suçuarana, onça-parda). Foto: Programa de Conservação Gatos do Mato Brasil-Américas.

O pesquisador refez as simulações de viabilidade populacional do gato-do-mato utilizando a nova área do parque proposta pelo projeto de lei, e concluiu que haveria 98% de chances de a espécie ser extinta dentro dos próximos mil anos. Além do gato-do-mato, existem outras seis espécies de felinos no parque do Mirador, um número recorde entre as unidades de conservação das Américas.

O parque também abriga o gato-palheiro (Leopardus braccatus, conhecido em Mirador como gato-preto), o gato-maracajá ou jaguatirica (Leopardus pardalis), o gato-peludo (Leopardus wiedii), o gato-mourisco ou jaguarundi (Herpailurus yagouaroundi), a suçuarana ou onça-parda (Puma concolor) e a onça-pintada (Panthera onca). Um total de setenta espécies de mamíferos vivem no parque, incluindo o veado-campeiro e lobo-guará, além de mais de trezentas espécies de aves.

<><> Risco de conflitos e desabastecimento

Especialistas também temem que a alteração do Parque Estadual do Mirador possa gerar novos conflitos em uma região marcada por violentas disputas de terra — segundo o último relatório da Comissão Pastoral da Terra (CPT), o Maranhão foi o estado com maior número de conflitos deste tipo em 2024, com 363 casos.

No caso do parque do Mirador, já existem disputas envolvendo o avanço do agronegócio sobre áreas historicamente utilizadas por comunidades tradicionais. Estas famílias estão sendo expulsas das áreas mais altas, os chamados chapadões, onde costumam levar o gado para pastar durante o período chuvoso. Por outro lado, as regras da unidade de conservação dificultam o pastoreio dos animais na beira dos rios durante o período seco, afirma um estudo de 2020 produzido pela CPT e pelo Núcleo de Estudos e Pesquisas em Questões Agrárias da Universidade Federal do Maranhão (Nera/UFMA).

“A mudança dos limites do parque, da forma como está posta – de cima para baixo, sem participação e sem critérios técnicos – tende a agravar muito os conflitos na região”, afirma Vitor Hugo Moraes, analista de advocacy do ISPN. “Vai alterar as áreas disponíveis para uso, tanto pelas comunidades, quanto as áreas disponíveis para o desmatamento.”

O receio é corroborado pela Sema, que informou em sua manifestação técnica que a inclusão de novas áreas “causaria inúmeras disputas territoriais, a interrupção de atividades produtivas, assim como a necessidade de recuperação de diversas áreas degradadas”.

O Parque Estadual do Mirador também é alvo de especulação imobiliária, como revelou um levantamento do Nera/UFMA que analisou dados fundiários de novembro de 2020. Os pesquisadores identificaram 61 propriedades registradas sobre a unidade de conservação, em nome de empresas agropecuárias e de investimentos, além de empresários paranaenses e catarinenses do ramo da soja e da cana-de-açúcar.

“As maiores parcelas cadastradas variam entre 1.000 e 43.000 hectares de terras públicas destinadas à conservação, mas utilizadas para especulação no mercado de terras e também para cumprimento de legislação ambiental, conforme permitido pelo Código Florestal”, afirma o documento, referindo-se à prática da grilagem verde. Nestes casos, fazendeiros que desmataram mais do que o permitido em suas propriedades ocupam ilegalmente áreas públicas com vegetação nativa, como forma de compensar seu déficit de reserva legal.

“Quando a gente analisa as propriedades que se sobrepõem àquele território, inclusive a titularidade dessas propriedades, fica ainda mais estranho o cenário dessa proposta de lei, já que muitas propriedades se beneficiariam”, diz Vitor. “Acaba sendo um favorecimento à grilagem de terras e um prejuízo imensurável aos recursos hídricos do Estado.”

O parque foi criado para proteger os rios Itapecuru e Alpercatas, que abastecem 1 milhão de maranhenses na capital São Luís, além de outros municípios, terras indígenas, indústrias e a própria atividade agropecuária. Segundo a nota técnica da Sema, no entanto, o projeto de lei e o consequente avanço do desmatamento “poderá resultar em uma menor capacidade de recarga hídrica, assim como aumento de processos erosivos e de assoreamento dos rios”.

Em entrevista à Mongabay, o deputado Eric Costa afirmou que o novo traçado aumenta a proteção sobre as nascentes destes rios, além de corrigir uma divergência documental: o parque apresenta tamanhos diferentes no decreto de criação da unidade de conservação e no Memorial Descritivo Georreferenciado da Secretaria Estadual de Meio Ambiente e Recursos Naturais (Sema). O parlamentar também afirmou que está disposto a rever o projeto de lei. “Não é uma proposta engessada, eu quero resolver o problema”, afirmou.

 

Fonte: Mongabay

 

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