Canetada
de deputados do Maranhão pode riscar felino do mapa
À
primeira vista, parece uma boa ideia. O projeto de lei do deputado Eric Costa
(PSD), da Assembléia Legislativa do Maranhão, propõe uma alteração nos limites
do Parque Estadual do Mirador de modo a aumentar a área de proteção dos atuais
500.842 hectares para 502.334 hectares. “Ao ampliar o Parque do Mirador,
estaremos fortalecendo a fiscalização e inibindo atividades predatórias que
ameaçam a integridade ambiental da região”, afirmou o parlamentar em setembro do
ano passado.
Segundo
ambientalistas e acadêmicos, no entanto, há uma pegadinha. Áreas de Cerrado
preservadas pelo parque, eles dizem, seriam substituídas por outras ocupadas
por lavouras e pastagens. “[o projeto] vai tirar área boa para a biodiversidade
e botar área que não é minimamente equivalente”, afirma Tadeu Gomes,
coordenador do Laboratório de Conservação e Ecologia da Vida Silvestre do
Departamento de Biologia da Universidade Estadual do Maranhão (Uema). Ao lado
de outros 13 pesquisadores da universidade, ele assinou uma manifestação técnica contra o PL 280/2024.
Apresentado
em junho do ano passado, o projeto perdeu força após críticas da sociedade
civil e da Secretaria Estadual de Meio Ambiente e Recursos Naturais (Sema), que
publicou uma nota técnica classificando a
proposta como “frágil e intempestiva”. Neste ano, o projeto voltou à pauta da
Assembleia, onde aguarda votação na Comissão de Constituição e Justiça.
Criado
em 1980, o Parque Estadual do Mirador é a quarta maior unidade de conservação
do Cerrado brasileiro, abrangendo os municípios de Formosa da Serra Negra,
Fernando Falcão e Mirador. Somado às terras indígenas vizinhas, o parque forma
o segundo maior bloco de área protegida do Cerrado, com cerca de 945.900
hectares.
A área
se torna ainda mais relevante diante do avanço do agronegócio sobre o bioma,
especialmente na região conhecida como Matopiba, que abrange parte
dos estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia. “O Cerrado é o que chamamos
de zona de sacrifício”, afirma Patrícia Silva, assessora de advocacy do Instituto Sociedade, População e Natureza (ISPN), organização da
sociedade civil que apoia projetos comunitários sustentáveis. “Para a gente
preservar a Amazônia, o Cerrado acaba sendo a porta para a expansão do
agronegócio.”
Além de
proteger o bioma brasileiro mais pressionado pelo desmatamento, o Mirador é, nas
palavras de Tadeu, a “apólice de seguro” de uma espécie de felino ameaçada de extinção no Brasil e no
mundo.
O
gato-do-mato (Leopardus
tigrinus), conhecido em outras partes do Brasil como
gato-do-mato-pequeno, pintadinho ou gato-macambira, tem porte parecido ao de um
gato doméstico e alimenta-se sobretudo de pequenos mamíferos, lagartos, ovos e
aves. Presente em áreas de floresta e matagais de países como
Bolívia, Colômbia, Equador e Costa Rica, o felino encontra no Mirador o único
lugar do mundo onde sua população é viável no longo prazo, em um horizonte de
mil anos.
“O
parque é chave para a biodiversidade do Brasil e do mundo, porque é a única
unidade de conservação que protege uma espécie em perigo de extinção em nível
mundial”, explica Tadeu, que estuda os felinos do Mirador desde a década de
1990. A aprovação do PL, no entanto, atingiria em cheio essa população. “A área
que o projeto está tirando [do parque] é ambiente de primeira para o gato, e a
área que está colocando não serve, porque está toda antropizada”, diz Tadeu.
O
Parque Estadual do Mirador abriga sete espécies de felinos, conhecidos como “os
sete do Mirador”. A partir do alto, à esquerda: Leopardus wiedii (gato-peludo,
gato-maracajá); Leopardus pardalis (jaguatirica); Leopardus braccatus
(gato-palheiro); Leopardus tigrinus (gato-do-mato, gato-macambira); Panthera
onca (onça-pintada); Herpailurus yagouaroundi (jaguarundi, gato-mourisco); Puma
concolor (suçuarana, onça-parda). Foto: Programa de Conservação Gatos do Mato
Brasil-Américas.
O
pesquisador refez as simulações de viabilidade populacional do gato-do-mato
utilizando a nova área do parque proposta pelo projeto de lei, e concluiu que
haveria 98% de chances de a espécie ser extinta dentro dos próximos mil anos.
Além do gato-do-mato, existem outras seis espécies de felinos no parque do
Mirador, um número recorde entre as unidades de conservação das Américas.
O
parque também abriga o gato-palheiro (Leopardus braccatus, conhecido em
Mirador como gato-preto), o gato-maracajá ou jaguatirica (Leopardus pardalis),
o gato-peludo (Leopardus wiedii), o gato-mourisco ou jaguarundi (Herpailurus
yagouaroundi), a suçuarana ou onça-parda (Puma concolor) e a
onça-pintada (Panthera onca). Um total de setenta espécies de mamíferos
vivem no parque, incluindo o veado-campeiro e lobo-guará, além de mais de
trezentas espécies de aves.
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Risco de conflitos e desabastecimento
Especialistas
também temem que a alteração do Parque Estadual do Mirador possa gerar novos
conflitos em uma região marcada por violentas disputas de terra — segundo
o último relatório da Comissão
Pastoral da Terra (CPT), o Maranhão foi o estado com maior número de conflitos
deste tipo em 2024, com 363 casos.
No caso
do parque do Mirador, já existem disputas envolvendo o avanço do agronegócio sobre áreas
historicamente utilizadas por comunidades tradicionais. Estas famílias estão
sendo expulsas das áreas mais altas, os chamados chapadões, onde costumam levar
o gado para pastar durante o período chuvoso. Por outro lado, as regras da unidade
de conservação dificultam o pastoreio dos animais na beira dos rios durante o
período seco, afirma um estudo de 2020
produzido pela CPT e pelo Núcleo de Estudos e Pesquisas em Questões Agrárias
da Universidade Federal do Maranhão (Nera/UFMA).
“A
mudança dos limites do parque, da forma como está posta – de cima para baixo,
sem participação e sem critérios técnicos – tende a agravar muito os conflitos
na região”, afirma Vitor Hugo Moraes, analista de advocacy do ISPN. “Vai
alterar as áreas disponíveis para uso, tanto pelas comunidades, quanto as áreas
disponíveis para o desmatamento.”
O
receio é corroborado pela Sema, que informou em sua manifestação técnica que a
inclusão de novas áreas “causaria inúmeras disputas territoriais, a
interrupção de atividades produtivas, assim como a necessidade de
recuperação de diversas áreas degradadas”.
O
Parque Estadual do Mirador também é alvo de especulação imobiliária, como
revelou um levantamento do Nera/UFMA
que analisou dados fundiários de novembro de 2020. Os pesquisadores
identificaram 61 propriedades registradas sobre a unidade de conservação, em
nome de empresas agropecuárias e de investimentos, além de empresários
paranaenses e catarinenses do ramo da soja e da cana-de-açúcar.
“As
maiores parcelas cadastradas variam entre 1.000 e 43.000 hectares de terras
públicas destinadas à conservação, mas utilizadas para especulação no
mercado de terras e também para cumprimento de legislação ambiental,
conforme permitido pelo Código Florestal”, afirma o documento, referindo-se à
prática da grilagem verde. Nestes casos, fazendeiros que desmataram mais do que
o permitido em suas propriedades ocupam ilegalmente áreas públicas com
vegetação nativa, como forma de compensar seu déficit de reserva legal.
“Quando
a gente analisa as propriedades que se sobrepõem àquele território, inclusive a
titularidade dessas propriedades, fica ainda mais estranho o cenário dessa
proposta de lei, já que muitas propriedades se beneficiariam”, diz Vitor.
“Acaba sendo um favorecimento à grilagem de terras e um prejuízo imensurável
aos recursos hídricos do Estado.”
O
parque foi criado para proteger os rios Itapecuru e Alpercatas, que abastecem 1 milhão de
maranhenses na capital São Luís, além de outros municípios, terras indígenas,
indústrias e a própria atividade agropecuária. Segundo a nota técnica da Sema,
no entanto, o projeto de lei e o consequente avanço do desmatamento “poderá resultar
em uma menor capacidade de recarga hídrica, assim como aumento de processos
erosivos e de assoreamento dos rios”.
Em
entrevista à Mongabay, o deputado Eric Costa afirmou que o novo traçado aumenta
a proteção sobre as nascentes destes rios, além de corrigir uma divergência
documental: o parque apresenta tamanhos diferentes no decreto de criação da
unidade de conservação e no Memorial Descritivo Georreferenciado da Secretaria
Estadual de Meio Ambiente e Recursos Naturais (Sema). O parlamentar também
afirmou que está disposto a rever o projeto de lei. “Não é uma proposta
engessada, eu quero resolver o problema”, afirmou.
Fonte:
Mongabay

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