Luís
Nassif: Xadrez do jabuti da AGU na negociação da Eletrobras
Acordo
da AGU reacende debate sobre operação que transferiu controle da maior elétrica
do país por valor contestado. O ministro Flávio Dino classificou como
“constrangedor” o acordo negociado pela Advocacia-Geral da União com a
Eletrobras, agora rebatizada Axia. O caso expõe camadas de uma privatização que
gerou perdas bilionárias aos cofres públicos...
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O Estopim: Um “Jabuti do Tamanho de um Elefante”
Em
sessão no Supremo Tribunal Federal na quinta-feira passada, o ministro Flávio
Dino não poupou palavras ao criticar o acordo de acionistas fechado pelo
Advogado-Geral da União, Jorge Messias, com a Axia — novo nome da Eletrobras
após a privatização.
“A mim
é muito constrangedor, como brasileiro, que a Advocacia-Geral da União tenha
feito este acordo”, declarou Dino do plenário do STF. O ministro apontou dois
problemas graves: a inclusão de um “jabuti do tamanho de um elefante” —
permitindo que a Axia vendesse participação na Eletronuclear, tema que não
estava em discussão — e a ausência de audiência com trabalhadores, requisito
constitucional.
O
acordo está sendo julgado pelo STF, com placar atual de 5 a 4 pela homologação.
O voto decisivo do ministro Luiz Fux definirá o desfecho, previsto para 11 de
dezembro.
Mas a
gravidade do episódio vai muito além. Para entender por que o tema mobiliza o
Supremo, é preciso revisitar a operação que, segundo críticos, configurou uma
das maiores transferências de patrimônio público para mãos privadas da história
brasileira.
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Ato I: A Venda Por Preço de Banana
A
privatização da Eletrobras, executada durante a gestão Paulo Guedes-Jair
Bolsonaro em 2022, levantou bandeiras vermelhas desde o início.
O valor
real da empresa era estimado entre R$ 120 bilhões e R$ 150 bilhões.
Considerando o prêmio de controle — a sobretaxa paga por quem assume o comando
de uma companhia —, especialistas calculavam o valor justo em torno de R$ 200
bilhões.
A União
vendeu por R$ 33,7 bilhões.
Pior:
esse dinheiro nem entrou nos cofres do Tesouro. O dinheiro foi captado através
de um aumento de capital. Do valor total, R$ 26 bilhões foram carimbados para
pagar compromissos futuros da própria Eletrobras com a CDE (Conta de
Desenvolvimento Energético).
O
Tribunal de Contas da União identificou uma série de irregularidades na
avaliação:
- Erros de cálculo somando
diferença de R$ 40 bilhões no preço da empresa
- Subavaliação de
Itaipu:
a participação na usina binacional foi contabilizada por apenas R$ 1,2
bilhão, quando o ativo valeria no mínimo R$ 10 bilhões
- Metodologia
equivocada no
cálculo da potência das hidrelétricas, gerando subavaliação “gigantesca”
no valor da outorga
O
ministro-relator Vital do Rêgo calculou que cada erro de R$ 1 bilhão no valor
presente líquido impactava em R$ 0,63 o preço mínimo da ação. Com erros na casa
das dezenas de bilhões, o preço final ficou drasticamente abaixo do potencial
real.
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Ato II: A Mágica do CDE
A
manobra mais engenhosa da operação envolveu a Conta de Desenvolvimento
Energético, fundo pago pelos consumidores através das tarifas de luz para
subsidiar população de baixa renda e regiões remotas.
A CDE
movimenta cerca de R$ 34 bilhões por ano, distribuídos entre diferentes
segmentos do setor elétrico. A Eletrobras, como grande geradora, recolhia
anualmente cerca de R$ 6,8 bilhões ao fundo — dinheiro que saía de seu caixa e
comprimia seus lucros.
Eis o
truque: ao usar R$ 26 bilhões da privatização para quitar antecipadamente as
obrigações da Eletrobras com a CDE, o governo transferiu esses custos
definitivamente para o consumidor. A partir dali, os R$ 6,8 bilhões anuais que
antes iam para o fundo passaram a entrar direto no caixa da empresa
privatizada.
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O Impacto nas Tarifas
A
explosão nas tarifas de energia que se seguiu à privatização ampliou ainda mais
o ganho dos novos controladores. Como a conta do CDE havia sido quitada com
base nos preços baixos anteriores, toda a receita extra com as tarifas elevadas
foi apropriada pela empresa.
Custos
como operação nuclear, segurança nuclear, Angra 3 e passivos jurídicos
históricos — que antes eram responsabilidade da Eletrobras — foram empurrados
para a CDE. O consumidor passou a pagar pela conta de luz os custos que foram
retirados da empresa, permitindo margens de lucro maiores e dividendos
explosivos aos acionistas.
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Ato III: A Festa dos Dividendos
Com o
caixa turbinado e custos transferidos, a Eletrobras privatizada adotou uma
política radical de distribuição de lucros.
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O contraste é brutal:
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Antes da Privatização
- Investimentos
anuais: R$ 9 a 12 bilhões
- Dividendos
anuais: cerca de R$ 1 bilhão
- Payout
(percentual do lucro distribuído): 25%
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Depois da Privatização
- Investimentos
anuais: R$ 3 a 4 bilhões
- Dividendos
anuais: R$ 10 a 27 bilhões
- Payout: 80% a
95%
A ação,
vendida a R$ 42 na privatização, valorizou 28% em poucos meses. O ganho ficou
com os novos acionistas.
E a
União? Apesar de manter 43% do capital social, ficou limitada a apenas 10% dos
votos por uma cláusula polêmica. Resultado: seus dividendos anuais caíram de
R$ 1,5 bilhão para R$ 840 milhões.
A
analogia é precisa: o Estado vendeu a “carne” — as hidrelétricas amortizadas
que geram caixa — sem cobrar o prêmio de quem passa a mandar no açougue, e
ficou com o “osso” — as usinas nucleares deficitárias e os passivos ambientais.
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Ato IV: O Problema Nuclear
Para
viabilizar a privatização, o governo precisou resolver o que fazer com a
Eletronuclear, subsidiária responsável pelas usinas Angra 1, 2 e 3. O programa
nuclear brasileiro, estratégico para energia e defesa nacional, exige décadas
de investimentos e acumula passivos bilionários.
A
solução foi criar a ENBPar em 2021, empresa pública 100% da União, que ficou
com:
- As usinas Angra
1, 2 e 3
- Gestão da
segurança nuclear
- Obrigações
internacionais do setor
- Participação
brasileira em Itaipu
- Dívidas e
contenciosos judiciais
- Custos pesados
de manutenção
- Programas
socioambientais
Enquanto
isso, a Eletrobras privatizada ficou com as usinas rentáveis, linhas de
transmissão lucrativas e caixa limpo para distribuir dividendos bilionários.
Há um
detalhe perverso: embora tenha se livrado da obrigação de construir Angra 3, a
Eletrobras não se livrou completamente da garantia aos passivos da
Eletronuclear. Se a estatal nuclear quebrar, a Eletrobras ainda pode ser
chamada a pagar dívidas antigas.
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Ato V: O Acordo Polêmico
O
acordo negociado pela AGU buscava encerrar litígios sobre a privatização,
especialmente dois pontos: o limite de 10% de votos por acionista (que impede a
União de exercer poder proporcional aos seus 43% do capital) e a alegada
subavaliação da companhia. Aí começaram a entrar os “jabutis”.
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O que a União conseguiu:
- Uma cadeira
adicional no Conselho de Administração
- Uma cadeira
adicional no Conselho Fiscal
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O que a União não conseguiu:
- Compensação
financeira
- Revisão do preço
da privatização
- Aumento de poder
de voto proporcional à participação acionária
- Ressarcimento
por prejuízos aos cofres públicos
O
acordo legitimou o teto de votos e incluiu a controvertida cláusula sobre a
Eletronuclear — o tal “jabuti” criticado por Dino.
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As Críticas Jurídicas
Ministros
do STF contrários ao acordo argumentam que ele extrapola os limites de uma
transação judicial. Flávio Dino foi incisivo: “A transação judicial possui
escopo restrito: eliminar litígios concretos e patrimoniais. Não se presta à
criação normativa disfarçada ou à formulação de políticas públicas.”
O
debate toca questões constitucionais sensíveis. Decisões sobre política
energética estatal exigem lei específica e controle parlamentar. Ao validar o
acordo administrativo, argumentam os críticos, o Judiciário estaria chancelando
um atalho institucional que retira do Congresso o debate sobre temas
estruturais.
Outro
ponto levantado: sem o acordo, havia possibilidade de o próprio STF declarar
inconstitucional a cláusula do teto de votos, permitindo à União reassumir o
controle público da empresa. A transação cristalizou por via administrativa uma
situação ainda em aberto, blindando definitivamente os acionistas privados.
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O Placar Final
A
tabela abaixo resume o resultado da operação para cada parte:
|
Indicador |
Estado
(União) |
Acionistas
Privados |
|
Valor
da operação |
R$
33,7 bi (carimbados para fundos/CDE) |
Pagamento
de R$ 42/ação (ativo subavaliado) |
|
Prêmio
de controle |
Zero
(Perda estimada de até R$ 110 bi) |
Não
pagaram ágio para assumir controle difuso |
|
Dividendos |
Reduzidos
(de ~R$ 1,5 bi para ~R$ 840 mi/ano) |
Explosivos
(de ~R$ 1,5 bi para ~R$ 8,4 bi totais) |
|
Passivos |
Ficou
com risco nuclear (Angra 3) |
Livres
de novos aportes em Angra 3 |
|
Preço
da energia |
Perda
de ferramenta de política pública |
Ganho
de margem (+200% no preço do MWh) |
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O Veredito Pendente
Com o
julgamento no STF empatado em 5 a 4, três cenários são possíveis: homologação
integral do acordo, homologação parcial (apenas sobre o limite de votos) ou
rejeição completa da transação.
O voto
de Luiz Fux, esperado para 11 de dezembro, definirá não apenas o futuro da
governança da maior empresa de energia elétrica da América Latina, mas
estabelecerá precedentes importantes sobre os limites da transação judicial em
temas de interesse público estratégico.
Enquanto
isso, consumidores brasileiros seguem pagando na conta de luz os custos de uma
operação que críticos chamam de “arbitragem regulatória”: acionistas privados
compraram ativos subavaliados, tiveram o preço do produto triplicado por lei e
custos de risco repassados para a população.
A União
ficou com uma “golden share” limitada — poder de veto apenas para mudanças no
objeto social, sede da empresa, nome, liquidação e venda de ativos estratégicos
sensíveis. Um consolo magro para quem vendeu a joia da coroa do setor elétrico
brasileiro.
No
futuro, será conhecido como “o golpe da década”.
Fonte:
Jornal GGN

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