Banco
Master: “tudo desemboca na CVM, que não tem feito seu trabalho”, diz advogada
Em
outubro de 2024, mais de um ano antes do escândalo bilionário do banco Master
eclodir, a Fitch Ratings, uma das agências de classificação de risco mais
importantes do mundo, descrevia assim a instituição regida pelo banqueiro
Daniel Vorcaro: “o perfil de negócios e risco do banco, bem como sua estrutura
organizacional, é mais complexo que o de seus pares”. Na ocasião, a Fitch
aumentou uma das principais notas do Master para o nível “A-”, um dos mais
elevados, um fato destacado à época por instituições do mercado financeiro como
a XP Investimentos.
Quem
monitora as atividades de agências como a Fitch no Brasil é a Comissão de
Valores Mobiliários (CVM), que regula e fiscaliza o mercado de capitais, peça
crucial nas engrenagens do esquema de fraude bilionário envolvendo o grupo
Master investigado pela Polícia Federal. Também é a CVM quem autoriza a
captação de recursos e fiscaliza a operação de fundos de investimento – como os
de renda fixa dos tipos Certificados de Depósito Bancário (CDB) e de Direitos
Creditórios (FIDCs), outras peças fundamentais na fraude do Master.
“Há
quem diga que as auditorias têm culpa. Sim, mas quem as regula? Há quem diga
que os fundos têm culpa, mas quem os regula? Tudo desemboca na CVM, que há anos
não tem feito seu trabalho como precisa”, disse em entrevista à Agência Pública
a advogada e doutora em Direito do Estado pela Pontifícia Universidade Católica
de São Paulo (PUC-SP) Lucía Ferrés.
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Por que isso importa?
• Fraudes do banco Master são investigadas
na CPI do INSS em função de créditos consignados a aposentados e pensionistas.
• Já a CVM, autarquia vinculada ao
Ministério da Fazenda, é responsável por regulamentar, disciplinar e fiscalizar
todo o mercado de capitais no país.
A
posição de Ferrés se ancora em sua tese de doutorado, apresentada em 2024 com
foco na regulação do mercado mobiliário e de capitais. Após analisar processos
administrativos, informações da própria CVM e outras evidências, a advogada
aponta que a Comissão sabe da existência de “fissuras” e “falhas sistêmicas”,
nas suas palavras, impedindo a CVM de atuar como um “guardião técnico e
imparcial do interesse público”.
Deficiências
e problemas estruturais que, segundo Ferrés, foram apontados por uma auditoria
do Tribunal de Contas da União (TCU) finalizada ainda em 2020, durante o
governo Bolsonaro.
“Por
exemplo, na CVM, o padrão é a escolha de diretores sem critérios técnicos, sem
conhecimento sobre gestão pública. São ‘amigos do rei’, figuras oriundas de
escritórios de advocacia especializados no mercado mobiliário, que em muitos
processos votam contra relatórios e pareceres técnicos, das áreas mais
estruturadas da CVM”, disse Ferrés.
A
Pública procurou a CVM para responder sobre as críticas da advogada Lucía
Ferrés sobre a estrutura e o trabalho da Comissão. Em referência ao caso do
banco Master, a CVM afirmou que “não comenta casos específicos”, além de dizer
que as nomeações de seus dirigentes “seguem o disposto na Lei n.º 6.385/76”.
Quanto
à auditoria do TCU, a Comissão alega que “mantém Acordo de Cooperação Técnica
junto ao TCU e diálogo permanente para aprimoramento institucional, inclusive
em relação a recomendações formuladas por aquele órgão”. Veja a íntegra do
posicionamento da CVM.
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Confira a seguir os principais trechos da entrevista da advogada e doutora pela
PUC-SP à Pública:
• Por que a senhora acredita que
escândalos recentes envolvendo o mercado financeiro e de capitais tenham, como
pano de fundo, a atuação da Comissão de Valores Mobiliários?
É
evidente que se no mercado financeiro e de capitais estão acontecendo
violações, prejuízos, danos e escândalos reiterados, é porque os reguladores
não estão atuando como deveriam. Há quem diga que as auditorias têm culpa. Sim,
mas quem as regula? Há quem diga que os fundos têm culpa, mas quem os regula?
Tudo desemboca na CVM, que há anos não tem feito seu trabalho como precisa.
Vemos
decisões em série beneficiando conglomerados privados, como no caso do Banco
Master, como nos casos de fundos ligados a alvos da operação Carbono Oculto,
causando prejuízo não só aos players minoritários, mas às regras de
fiscalização em si. Quando você tem toda a cúpula de liderança de um órgão
regulador capturada por interesses políticos ou privados, não é possível
esperar que o órgão atue em defesa da regulação em si.
Junto a
isso, temos um cenário de desorganização interna muito grande, sem uma
governança transparente, sem jurisprudências claras que devem ser seguidas.
Nada disso é disponibilizado para boa parte dos regulados pela CVM e para a
sociedade em si. Ninguém sabe ao certo como ela decide seus processos, é tudo
‘caso a caso’. Às vezes, a regra é aplicada, às vezes não. Para mim, este é o
retrato de hoje da CVM.
Pegue o
caso do Master: as assessorias de investimento, toda a linha de frente que
negociou os CDBs, são regulados e fiscalizados pela CVM. A fiscalização do
trabalho das auditorias e agências de classificação de risco é responsabilidade
da CVM. A operação de FDICs e securitizadoras, estruturas utilizadas pelo Banco
Master para maquiar todo o seu balanço, é regulada pela CVM. Para mim, não
seria possível o Banco Master chegar ao ponto que chegou se a regulação CVM
fosse eficaz.
• Sua pesquisa destaca uma auditoria
conduzida pelo TCU em 2020, que teria apontado uma série de problemas na
estrutura e execução das atividades da CVM. O que foi identificado pelo TCU?
Algo mudou desde então?
O
Tribunal de Contas [da União] é um dos responsáveis pela fiscalização externa
da CVM. Com a conclusão do Processo de Auditoria n.º 027.307/2018-8, sob a
relatoria do ministro Raimundo Carneiro, os problemas foram apontados e
comunicados à CVM. A auditoria apontou a ausência de uma jurisprudência interna
consolidada, falta de transparência nos processos, falta de uma governança que
explique como são as tomadas de decisão internas na autarquia.
Tudo
isso foi concluído em 2020. Estamos em 2025 e nada de substancial foi feito por
parte da Comissão. É o que costumo chamar de ‘teoria da captura’, que nada mais
é do que o órgão de regulação não atender a interesses da administração
pública, mas interesses privados ou políticos.
Neste
contexto do Banco Master, ainda ressalto que desde julho a CVM está ‘acéfala’,
porque seu então presidente, João Pedro Nascimento, renunciou pouco antes do
escândalo vir à tona por “motivos pessoais”. Hoje temos um presidente interino,
faltam diretores. (…) Para mim, só é possível mudar esse panorama se as
lideranças forem trocadas, privilegiando o aspecto técnico ao invés das
conexões políticas e privadas que temos hoje.
A meu
ver, já era previsto que conviveríamos com vários escândalos no mercado
financeiro e de capitais, porque há uma permissividade com reiteradas
infrações. Qual a mensagem que se passa com isso? A ideia de que o crime
compensa.
Não
existe mercado funcionando mal se o regulador trabalha bem, é um dado técnico e
irrefutável. Agora, se ele regula mal, se as estruturas são esvaziadas, se há
uma erosão de estruturas de governança, de processos transparentes de decisão
[, o trabalho não vai bem]. Se isso ocorre por corrupção ou por incompetência,
é o que resta ser averiguado pelas autoridades.
• A senhora destaca o conceito de ‘porta
giratória’ na regulação dos mercados financeiro e de capitais no país. O que
isso significa, e por que se trata de um problema?
Na
prática, uso o conceito de ‘porta giratória’ no seguinte sentido: alguém ocupar
uma função como diretor ou presidente, já antevendo o seu futuro profissional
fora da autarquia. Fora da CVM, dentro da iniciativa privada. E isso já ficava
sugerido na auditoria do TCU em 2020, quando se aponta a existência de
indicações políticas, com pessoas vindas de grandes escritórios de advocacia ou
de companhias reguladas pela CVM, de grandes players no mercado de capitais.
Isso é
tão comum que o diagnóstico do Tribunal de Contas da União sugere mais
indicações de novos diretores vindos de áreas técnicas internas da CVM,
servidores de carreira, com experiência na gestão pública.
A
‘porta giratória’ na escolha de diretores pode gerar decisões da CVM que não
estão atentas a interesses regulatórios, mas a favor de interesses privados. O
próprio TCU indaga porque ex-diretores da Comissão exercem tanta influência nas
decisões da CVM mesmo após deixar suas funções, uma incógnita até agora.
Então,
a ‘porta giratória’ se materializa em nomeações de diretores vindos do mercado,
representando interesses dos regulados. [Eles] ocupam um período como dirigente
na CVM e passada a ‘quarentena’, voltam valorizados ao mercado. Atuam em
futuras defesas de clientes na Comissão com o conhecimento da estrutura
interna, de todo o ‘trânsito’, para influenciar decisões favoráveis aos seus
clientes, sabendo orientá-los como poucos.
• Cunhado de dono do Master pediu R$ 28
milhões ao BRB para imóvel que vale 3 vezes menos
O
empresário Fabiano Zettel, cunhado do dono do Banco Master, Daniel Vorcaro,
pediu R$ 28 milhões ao Banco Regional de Brasília (BRB) para comprar um imóvel
que havia sido vendido um mês antes por R$ 10,2 milhões — ou 2,74 vezes menos.
No mês
passado, Vorcaro e dirigentes do BRB foram alvo da Operação Compliance Zero,
que investiga fraudes financeiras no Banco Master, de propriedade de Vorcaro.
Em março deste ano, o BRB chegou a anunciar a compra do controle acionário do
Master, mas a operação foi barrada pelo Banco Central.
O
empréstimo pretendido por Fabiano Zettel era para financiar a compra de um
apartamento de 516 metros quadrados em Moema, bairro nobre de São Paulo (SP). A
propriedade fica no 4º andar do edifício Palazzo Montalcino, na Rua Inhambú, nº
7.
O valor
de mercado do imóvel é bem menor que a avaliação apresentada no pedido de
Zettel, de R$ 39 milhões. No dia 6 de outubro deste ano, o mesmo apartamento
foi objeto de uma operação de compra e venda por apenas R$ 10,2 milhões.
O
imóvel foi vendido pela empresa CPJ Empresa de Participações LTDA a Cândido
Pinheiro Koren de Lima Júnior. Na prática, foi apenas uma transferência da
pessoa física para a jurídica, pois a CPJ tem Cândido Pinheiro Júnior como
sócio-administrador. Trata-se do filho do dono da operadora de planos de saúde
Hapvida, o médico oncologista Cândido Pinheiro Koren de Lima.
Antes
disso, a CPJ Participações havia comprado o imóvel da dona anterior por R$ 14,2
milhões, em julho de 2017.
A carta
de crédito pedida por Fabiano Zettel correspondia a 71,8% do valor da avaliação
— ou seja, R$ 28 milhões. A avaliação em R$ 39 milhões foi feita pela JCA
Architect & Urban Planner LTDA.
O
pedido de financiamento foi apresentado no dia 14 de novembro deste ano por
meio de um correspondente bancário, a Monetare, o que viabiliza a operação sem
que Zettel precise ter conta no BRB.
Na
noite da segunda-feira, 17 de novembro, a Polícia Federal prendeu Daniel
Vorcaro quando ele tentava embarcar em um jatinho em Guarulhos (SP). Na manhã
seguinte, a PF deflagrou a Operação Compliance Zero, que mirou diversas pessoas
ligadas ao Banco Master, de Vorcaro, e ao BRB.
Além da
prisão de Vorcaro — solto 12 dias depois sob a condição de usar tornozeleira
eletrônica — a investigação resultou no afastamento do então presidente do BRB,
Paulo Henrique Costa.
Apesar
dos indícios de problemas no Master, o BRB iniciou em março deste ano as
tratativas para adquirir o banco de Daniel Vorcaro. No fim daquele mês, o BRB
divulgou fato relevante ao mercado anunciando a compra de 58% do banco.
À
coluna, Zettel confirmou que deu entrada no pedido de financiamento, mas disse
que a solicitação foi negada pelo banco. Em nota, ele também frisou que não é
investigado na Operação Compliance Zero e afirmou não ter “qualquer relação com
a apontada tentativa de aquisição do Banco Master pelo BRB”.
Procurado,
o BRB afirmou que, por força de sigilo bancário, não comenta casos específicos
de clientes. Além disso, “o nome mencionado pela reportagem não é cliente do
BRB”, disse a instituição financeira.
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Quem é Fabiano Zettel
Fabiano
Zettel é fundador e CEO de um fundo de investimentos chamado Moriah Asset. Ele
é também advogado, pastor evangélico da Igreja Lagoinha e palestrante. É casado
com Natalia Vorcaro, irmã de Daniel Vorcaro.
Em
2022, foi o maior doador individual das campanhas de Jair Bolsonaro (PL) à
Presidência da República e de Tarcísio de Freitas (Republicanos) ao governo de
São Paulo.
Fonte:
Entrevista com Lucía Ferrés, para Caio de Freitas, da Agencia Pública | Edição:
Ludmila Pizarro/Metropoles

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