sábado, 22 de fevereiro de 2025

Os pontos frágeis e fortes da denúncia contra Bolsonaro por tentativa de golpe de Estado, segundo juristas

ex-presidente Jair Bolsonaro e outros integrantes do seu governo foram denunciados criminalmente na terça-feira (18/2) pela Procuradoria-Geral da República (PGR), acusados de tentar mantê-lo no poder após a derrota na eleição de 2022 para o presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

Bolsonaro nega que tenha liderado um suposto golpe de Estado, comandando os ataques de 8 de janeiro de 2023, e arquitetado um plano para matar Lula no final de 2022.

Apoiadores do presidente questionam as acusações, apontando que não haveria provas de ordens de Bolsonaro para esses crimes.

A BBC News Brasil ouviu juristas sobre como avaliam a consistência da denúncia e suas possíveis fragilidades.

Para os especialistas, o procurador-geral da República, Paulo Gonet, conseguiu construir uma narrativa lógica que implica Bolsonaro como mentor da tentativa golpista — que teria sido iniciada com uma forte campanha para descredibilizar a urna eletrônica e lançar dúvidas sobre o resultado da disputa presidencial, caso se confirmasse sua derrota como sugeriam as pesquisas eleitorais, e culminado nos ataques de 8 de janeiro.

A acusação, ressaltam, também reuniu um amplo conjunto de provas materiais e testemunhais de que havia uma intenção golpista, como minutas para decretar Estado de Sítio e o depoimento do então comandante do Exército, general Freire Gomes, de que se recusou a apoiar o plano de manter Bolsonaro no Poder.

Por outro lado, apontam fragilidades na acusação de que Bolsonaro teria comandado os ataques de 8 de janeiro de 2023, quando bolsonaristas radicais invadiram as sedes dos Três Poderes, ou que seria o mandante de um suposto plano de matar Lula.

Em ambos os casos, a PGR aponta indícios da atuação de Bolsonaro, mas a delação premiada de Mauro Cid, ex-ajudante de ordens do ex-presidente, contraria as acusações.

Entenda melhor a seguir os pontos fortes e as fragilidades da denúncia.

·        Os pontos fortes: conjunto de provas e narrativa lógica

Os especialistas entrevistados consideram que a denúncia traz uma narrativa coerente para acusar Bolsonaro.

Eles explicam que, no direito penal, uma pessoa pode ser processada e mesmo condenada sem que haja uma prova explícita de sua atuação no crime, caso exista um conjunto de indícios fortes que apontem para sua responsabilidade: é a chamada prova indiciária.

O professor de Direito Penal na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) Davi Tangerino afirma que esse tipo de prova é especialmente importante quando se trata de comprovar a atuação de uma liderança com alto poder hierárquico, como seria o caso do ex-presidente, segundo a PGR, pois nesses casos o líder não costuma atuar diretamente na realização prática dos crimes.

Um dos autores por trás dessa teoria jurídica, ressalta, é o alemão Claus Roxin, que "criou o conceito de autor por trás do autor" para se referir ao líder que comanda a estrutura criminosa e está por trás dos autores diretos dos crimes.

"A prova no processo penal não é só vídeo, documento. O Código de Processo Penal também autoriza a dita prova indiciária, quando a conclusão de que o evento aconteceu se dá como decorrência lógica, necessária, inescapável de indícios, de elementos indiretos, mas que, somados, dão corpo a uma probabilidade ou como a única explicação plausível", disse Tangerino.

No caso da denúncia contra Bolsonaro, a PGR reuniu elementos como minutas de decretação de Estado de Sítio, documentos de um suposto plano para matar Lula e mensagens de celular de subordinados próximos a Bolsonaro, além da delação de Mauro Cid e outros depoimentos.

Para o professor, é especialmente forte o testemunho do general Freire Gomes, dizendo que recusou o pedido de Bolsonaro para apoiar o plano golpista. Ele confirmou o depoimento de Mauro Cid de que participou de uma reunião com o então presidente, em que foi apresentada uma minuta para decretar Estado de Sítio no país.

"Fica difícil imaginar que tivesse toda essa movimentação da máquina sem a ciência dele [Bolsonaro]. E ele, na posição de presidente da República na época, não poderia ter assistido isso de camarote e dito 'bom, se acontecer, beleza', ele tinha um dever constitucional de interromper aquilo e observar o resultado das eleições", nota Tangerino.

Para o doutor em Direito Processual Penal e professor da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS) Aury Lopes Jr, a denúncia apresenta "uma narrativa lógica e coerente" para acusar Bolsonaro de liderar uma tentativa de golpe de Estado.

"Nem sempre, no processo penal, você tem o acusado [por tráfico] com a mão na substância entorpecente, por exemplo. O que importa é você ter um conjunto de indícios que vinculem ele àquele núcleo [criminoso], que demonstre que ele tinha o poder de mando, o domínio final", afirma.

"Nesse caso, objetivamente, se lermos o relatório da Polícia Federal, fica muito claro que Bolsonaro tinha consciência, sim, de tudo que estava acontecendo. Não só porque acontecia no entorno dele, no seu grupo forte, como também pelas próprias manifestações públicas que ele fez, a sistemática resistência ao resultado das urnas, a questão das fake news das urnas eletrônicas", acrescentou.

·        Implicação de Bolsonaro no 8 de janeiro é considerada frágil

A PGR sustenta que "as ações progressivas e coordenadas da organização criminosa culminaram no dia 8 de janeiro de 2023, ato final voltado à deposição do governo eleito e à abolição das estruturas democráticas".

Na visão da acusação, aqueles ataques foram resultado de um longo processo iniciado em 2021 e continuado em 2022, em que a organização criminosa liderada por Bolsonaro descredibilizou as urnas eletrônicas, não reconheceu a vitória de Lula e apoiou manifestações em frente a quartéis do Exército pressionando por uma intervenção militar.

Para sustentar essas acusações, a denúncia traz, por exemplo, mensagens entre Mário Fernandes, que era secretário-executivo da Secretaria-Geral da Presidência no governo Bolsonaro, e o caminhoneiro Lucas Rottilli Durlo, que participava do acampamento em frente ao Quartel General do Exército em Brasília, de onde partiram os manifestantes que invadiram as sedes dos Três Poderes.

Em uma delas, de 8 de dezembro de 2022, Durlo manifesta preocupação quanto a uma possível ação de busca e apreensão no acampamento, autorizada pelo ministro do STF Alexandre de Moraes.

Na sequência, Fernandes escreve a Mauro Cid pedindo que acione Bolsonaro. "Se o presidente pudesse dar um input ali pro Ministério da Justiça pra segurar a PF ou para a Defesa alertar o CMP [Comando Militar do Planalto]".

Ao que Cid respondeu: "pode deixar que eu vou comentar com ele".

Além disso, argumenta a PGR, os ataques teriam sido viabilizados pela omissão das forças de segurança do DF — então chefiadas por Anderson Torres, ex-ministro da Justiça de Bolsonaro — na proteção dos Três Poderes.

Para sustentar isso, a denúncia traz mensagens trocadas por integrantes da Secretaria de Segurança do DF, indicando que já era sabido que haveria uma manifestação potencialmente violenta dias antes dos ataques.

A PGR, porém, ignora em sua denúncia o que disse o delator Mauro Cid sobre o 8 de janeiro. Sua fala contraria a ideia de que houve um planejamento para a invasão dos Três Poderes com objetivo de derrubar o governo.

"Ministro, o dia 8 foi uma surpresa para todo mundo. Os militares estavam de férias", afirmou a Moraes em depoimento.

Para Davi Tangerino, professor da UERJ, a argumentação da PGR para implicar Bolsonaro nos atos de 8 de janeiro "é o link mais fraco" da denúncia e seria "questionável" condená-lo por aqueles ataques.

"Nós não temos ali uma prova muito contundente de que ele tenha determinado, ordenado, de alguma forma participado disso", afirmou, lembrando que Bolsonaro já não era mais presidente.

"Ele já não tinha mais o dever de interromper [os supostos crimes em andamento]", afirmou ainda.

Na sua leitura, porém, há elementos para processá-lo e condená-lo por golpe de Estado, como o depoimento de Gomes Freire de que se recusou a embarcar nos planos para manter Bolsonaro no poder.

"A ter uma condenação questionável [de Bolsonaro pelo 8 de janeiro], eu preferia que se centrasse naquilo que é bem forte mesmo", ressaltou.

O professor de Direito Processual Penal da Universidade Federal Fluminense (UFF) João Pedro Pádua também considera "muito fraca" a ligação entre Bolsonaro e o 8 de janeiro apontada pela PGR.

"O general Mário Fernandes, que era chefe de gabinete da Secretaria-Geral da Presidência da República, que era ligado ao presidente Bolsonaro, tinha contato com os manifestantes de 8 de janeiro. Isso é uma ligação bem indireta para condenar alguém por crimes tão graves", afirma.

Na sua visão, a principal força da denúncia está na narrativa lógica criada pela PGR de que foi capaz de conectar desde os ataques públicos de Bolsonaro às urnas eletrônicas até os atos de 8 de janeiro.

"Então, a criação de um enredo que conecte todos esses eventos é uma força de acusação, porque favorece que eventos para os quais já existem muitas provas [como as lives atacando as urnas] se conectem numa linha de coerência que leva ao evento chave de 8 de janeiro 2023, que, por sua vez, tem a morfologia, a forma de uma tentativa clássica de golpe de Estado, que é invasão de prédio público, quebradeira", nota Pádua.

Por outro lado, diz, apoiar a denúncia em uma grande narrativa também pode ser uma fraqueza, na sua visão.

"E qual é a fraqueza? É que, se você não aceita esse enredo como verdadeiro, esses eventos dissociados um dos outros não demonstram o início da execução dos crimes de tentativa de abolição do Estado Democrático de Direito e de golpe de Estado", afirma.

Para Pádua, não está totalmente comprovado que o 8 de janeiro atendeu a comandos claros da suposta organização criminosa denunciada. Ele nota que não há mensagens de lideranças monitorando o que estava acontecendo no dia, por exemplo.

"Acho que acusar os denunciados pelo 8 de janeiro é necessário para fazer jus ao enredo apresentado pela denúncia. Mas talvez seja, num primeiro momento, a parte mais fraca desse enredo", avalia.

·        Bolsonaro mandou matar Lula?

Outro ponto da denúncia que é alvo de controvérsias é a acusação de que Bolsonaro tinha concordado com o plano "Punhal Verde Amarelo", um conjunto de ações que previam o assassinato de Alexandre de Mores, Lula e do vice-presidente, Geraldo Alckmin.

A denúncia cita que, segundo a investigação da Polícia Federal, o general Mário Fernandes, à época secretário-executivo da Secretaria-Geral da Presidência, imprimiu cópias do plano em uma impressora localizada no Palácio do Planalto no dia 9 de novembro de 2022. Isso foi identificado por meio do histórico da impressora.

Já os registros de entrada e saída do Palácio da Alvorada, onde Bolsonaro se recolheu após a derrota eleitoral, indicam que Fernandes esteve lá após a impressão do documento.

Além disso, a PGR aponta como indício de que Bolsonaro tinha ciência do plano uma mensagem de Fernandes para Mauro Cid em 8 de dezembro de 2022, dias antes da diplomação de Lula como presidente no TSE, em 12 de dezembro.

"Durante a conversa que eu tive com o presidente, ele citou que o dia 12, pela diplomação do vagabundo, não seria uma restrição, que isso pode, que qualquer ação nossa pode acontecer até 31 de dezembro e tudo. Mas (…) ai na hora eu disse, pô presidente, mas o quanto antes, a gente já perdeu tantas oportunidades", dizia a mensagem, segundo a denúncia.

Cid, porém, negou em sua delação saber do envolvimento do então presidente no plano Punhal Verde Amarelo.

"Eu não tenho ciência se o presidente sabia ou não do plano que foi tratado", disse à PF em depoimento em 5 de dezembro de 2024.

Ao ser questionado se falava do Punhal Verde Amarelo, ele respondeu: "Do Punhal Verde Amarelo e se o general MÁRIO [Fernandes] levou esse plano para ele ter ciência ou não".

Para João Pedro Pádua, da UFF, apontar que Bolsonaro sabia do plano se encaixa na narrativa de que era o líder da organização criminosa.

No entanto, considera que a falta de uma prova concreta fragiliza essa acusação, já que a denúncia cita uma mensagem de Fernandes a Cid para sustentar que Bolsonaro tinha conhecimento, mas o próprio delator não confirmou isso.

"Seria de se esperar que ele confirmasse. O fato de ele não confirmar, nesse caso específico, é especialmente relevante", destaca.

Davi Tangerino ressalta que o processo, caso seja de fato iniciado, será exatamente o momento em que a defesa poderá questionar a narrativa montada pela acusação.

"Instaurado o processo, a defesa poderá dar outra interpretação, outro contexto, para essas provas, como as mensagens interceptadas. E caberá então ao STF entender qual é a interpretação que está mais escorada nas provas", explica.

 

¨      Vídeos de Cid aumentam credibilidade da delação e prejudicam estratégia de Bolsonaro

A divulgação dos vídeos dos depoimentos de Mauro Cid, ex-ajudante de ordens de Jair Bolsonaro, gerou forte reação entre aliados do ex-presidente.

A avaliação dentro do grupo bolsonarista é que as imagens prejudicam a estratégia de defesa e reforçam a credibilidade da delação premiada de Cid.

Até então, a linha adotada por Bolsonaro e seus aliados era de que Cid estava sob pressão e mudava sua versão conforme as investigações avançavam.

No entanto, a divulgação das gravações trouxe um impacto muito maior do que a versão escrita da delação. Com as imagens e a própria voz de Cid, a percepção de credibilidade sobre seu relato se fortalece, dificultando a contestação da defesa.

Entre os pontos abordados por Cid nos vídeos, estão a suposta pressão de Bolsonaro para que o Ministério da Defesa elaborasse um relatório apontando fraudes nas urnas eletrônicas e detalhes da reunião em que foi apresentada uma minuta de golpe.

Além disso, o ex-ajudante de ordens relata sua percepção de abandono, afirmando que era o mais prejudicado entre os investigados, enquanto outros envolvidos já estavam aposentados ou com carreiras militares encerradas.

A nova fase da investigação também expôs contradições na postura de Cid. Antes das gravações, Bolsonaro e seus aliados usavam o ex-ajudante como uma espécie de ‘arma política’, alegando que ele estava sendo perseguido pelo ministro Alexandre de Moraes.

Entretanto, os vídeos mostram que Cid não apenas confirmou informações que já estavam nos autos, mas também revelou novos elementos após a recuperação de mensagens deletadas por meio de um software da Polícia Federal.

A exposição do conteúdo reforça as acusações da PGR contra Bolsonaro e outros aliados investigados no caso da tentativa de golpe. Para aliados do ex-presidente, as imagens dificultam a narrativa de que Cid teria sido coagido a delatar.

Além disso, reforçam a tese de que ele foi testemunha direta dos fatos e que suas declarações são embasadas em documentos, mensagens e evidências apreendidas pela PF.

A estratégia da defesa de Bolsonaro, que até então apostava na descredibilização da delação, precisará ser ajustada diante do novo cenário. Com os vídeos em circulação, a narrativa de que Cid foi vítima de coação perde força, enquanto a investigação ganha mais um elemento de convencimento perante a opinião pública e o Judiciário.

 

Fonte: BBC News Brasil/g1

 

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