quarta-feira, 26 de fevereiro de 2025

Violência no futebol: entre os padrões e as excepcionalidades

Em 2018, a Torcida Jovem do Sport invadiu a sede da Inferno Coral, no bairro do Arruda, levando todas as bandeiras e faixas que conseguiram guardar dentro de um caminhão. Sete anos depois, na noite do dia 30 de janeiro, integrantes da Inferno Coral furtaram uma faixa e dez instrumentos de percussão que estavam guardados na casa de um integrante da Torcida Jovem do Sport. Esses materiais, no universo moral das torcidas organizadas, são troféus: cuidar, recuperar e vingá-los é uma obrigação.

Conhecendo esse simples antecedente — e ainda citando uma longa lista de emboscadas, músicas, lideranças, punições, alianças e mortes —, podemos inferir que as cenas de violência entre torcedores do Sport e do Santa Cruz nas ruas do Recife, no dia 1º de fevereiro de 2025, foram tão previsíveis quanto evitáveis. Ao longo de toda a semana, ocorreram provocações entre as torcidas, assim como o contato com as autoridades competentes, por meio da solicitação de escolta por parte de uma das organizadas do Esporte e da notificação, em ofício, do trajeto feito por uma das organizadas do Santa Cruz. Porém, nada adiantou. Ambas as torcidas brigaram ferozmente na Rua Real da Torre, no bairro da Madalena, na zona norte da capital pernambucana, cerca de cinco quilômetros do Arruda, antes do clássico Santa Cruz x Sport, às 16h30. Há vídeos com registros de espancamento, bombas, correria, depredação e agressão sexual a um torcedor do Sport. As imagens de violência física e do ato de violência sexual em uma pessoa vulnerável circularam pela internet e foram divulgadas em diferentes jornais e programas esportivos — é necessário pontuar que, neste texto, optamos por utilizar a classificação de violência sexual devido ao fato de termos apenas um vídeo curto da cena e por escolha consciente de não imputar um crime antes da morte averiguação e do processo legal. O pânico moral voltou à cena e uma fingida surpresa invadiu a mídia. Nesta matéria, vamos tentar distinguir as novidades e os padrões de repetição, entre a particularidade do caso e o usual das complexas dinâmicas de violências que predominam no futebol brasileiro.

As imagens viralizadas são tristes, impactantes e surpreendentes. Porém, o ocorrido no em Recife, representa o tipo de confronto mais comum entre as dinâmicas de violência física ligadas ao futebol profissional masculino. Assim indicam os estudos feitos pelo Observatório Social do Futebol, uma iniciativa vinculada ao Laboratório de Estudos em Mídia e Esporte (LEME) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). O interesse do Observatório consiste em produzir um conhecimento científico teoricamente orientado, empiricamente fundamentado e politicamente comprometido com o debate de um fenômeno muito importante no nosso país, como é o futebol.

Segundo o relatório Violências no Futebol Brasileiro[1], produzido pelo Observatório, a maioria das ocorrências registradas em 2023 foram entre torcedores de times diferentes (47%) e de torcedores contra forças de segurança (25%). Muitos desses confrontos entre torcedores são em dia de clássico, como ocorrido no episódio que estamos abordando. Outros dados pertinentes estão ligados aos locais das ocorrências. A maioria delas aconteceram fora dos estádios (70%); apenas 22% ocorreram dentro[2]. Em resumo, a intensa briga entre os torcedores do Santa Cruz e Sport corresponde ao padrão de violência física mais predominante no Brasil:  entre torcedores de clubes diferentes com um denso histórico de rivalidade, fora do estádio, antes do jogo e durante o trânsito das torcidas

Outro elemento explicativo da violência acontecida, tem a ver com o complexo sistema de alianças e inimizades que estruturam as torcidas organizadas brasileiras. Para entender melhor essas redes,  o Observatório criou o Mapa das Alianças entre Torcidas Organizadas. Com um formato interativo e visando atualização permanente, o Mapa apresenta 52 torcidas organizadas agrupadas nas cinco principais redes de alianças de escala nacional: Dedo Pro Alto, Punho Colado, Punho Cruzado, Lado A e Lado B. Nesse mapa é possível ver como as duas torcidas que entraram em confronto em Recife fazem parte de alianças diferentes e de longa rivalidade entre si. Enquanto a organizada do Sport é pertencente ao Punho Cruzado, a organizada do Santa Cruz está dentro de duas uniões, a Dedo Pro Alto e o Lado A.

Para ilustrar melhor a situação da violência no futebol pernambucano, traremos outros dados levantados pelo Observatório. No ano de 2023, conforme o relatório já mencionado, o estado contou com sete ocorrências, figurando em 4% de casos em relação a outros estados brasileiros. O mesmo relatório também apresenta que, em 2023, o torcedor Lucas Gabriel Rosendo faleceu no estado em decorrência de agressões. De acordo com os dados preliminares, que serão apresentados no relatório que será publicado em 2025, em 2024 foram catalogados dez episódios envolvendo violências no futebol em Pernambuco e foram notificadas três mortes. Ainda não temos a porcentagem equivalente em relação aos outros estados; no entanto, é possível notar o aumento da violência no estado no recorte temporal de 2023 e 2024.

Para além do aumento na quantidade de casos no estado de Pernambuco e o fato que a briga entre os torcedores do Santa Cruz e Sport corresponde ao padrão de violência física mais predominante no Brasil, as cenas do dia 01 de fevereiro deste ano trouxeram uma triste novidade: a violência sexual filmada e viralizada a um torcedor do Sport. Não podemos afirmar que é a primeira vez que acontece, mas podemos dizer que não é um tipo de violência comum entre os torcedores de organizadas. Porém, a excepcionalidade da situação não tira o fato de que ela seja possível dentro dos universos morais e emocionais dessas torcidas e do futebol como um todo.

Em primeiro lugar, porque há uma possibilidade sociotecnológica que o permite: todo mundo tem uma câmera no bolso. Além disso, as torcidas organizadas, que em algum momento foram mais reservadas quanto a filmar seu cotidiano, hoje já não são. Com suas próprias contas no Facebook, Instagram e X (antigo Twitter), o mundo digital tornou-se mais um campo de batalha, assim como a pista e a arquibancada. A massificação da interação por meio das telas alimenta o que a autora Paula Sibilia chama de ‘extimidade’[3] (SIBILIA, 2008), isto é, o uso progressivo da tecnologia para exibir nossa intimidade.

Em segundo lugar, está o tipo de masculinidade que muitos componentes das torcidas organizadas constroem. Nesse protótipo de “homem” que valora positivamente a virilidade, a hipersexualidade, a disposição para luta, o machismo, a homofobia e a dominação de aquilo que considera inferior, a utilização da força física e do linchamento aparece como um recurso legitimo de demonstração de força e poder. Vencer ao rival é subjugá-lo, humilhá-lo… violá-lo. Rita Segato, antropóloga e feminista argentina, tem uma análise profunda sobre o estupro, destacando que ele não é apenas um ato sexual, mas, sobretudo, um ato de dominação. Para ela, o estupro não é um crime de desejo; é um crime de poder[4].

Em terceiro lugar, temos que admitir que episódios de violência sexual no futebol tem um histórico que excedem as relações das torcidas organizadas. Ao longo de anos, acompanhamos diferentes episódios de agressão sexual e estupros envolvendo o contexto social do futebol, vimos diversos casos de estupros praticados por jogadores e técnicos, casos que sempre envolveram mulheres, polêmicas e esquecimentos desses atos. Infelizmente, o futebol como um todo, alimentado daquele ethos masculino, é um território fértil para uma cultura do estupro.

É importante refletir que o ato da violência sexual a um torcedor, com o agravante do empalamento e do mesmo estar vulnerável, sem possibilidade de reação, demonstra que a masculinidade reflete o domínio e as reafirmações de poder por meio de diferentes artifícios. Demonstrando que esta face do machismo não afeta somente mulheres e a comunidade LGBT+, os próprios homens héteros podem ser vítimas daqueles valores que defendem. Este caso nos alerta para a necessidade de atenção às diferentes formas de violência que podem existir no ciclo social do futebol e que esse é um tema que deve ser discutido nesse ambiente, incluindo, obviamente, as torcidas organizadas.

A reflexão, em termos comparativos, sobre os padrões e distinções desse caso específico com outros episódios de violência no futebol nos leva a pensarmos em um caminho possível para reduzirmos os episódios violentos nesse ambiente. Como ponto de partida, podemos afirmar que as políticas públicas que as autoridades de Recife e Pernambuco querem implantar não representam uma solução eficaz. Para que autorizar jogos com portões fechados, se a maioria das brigas ocorre fora dos estádios? Por que implementar torcida única, se existem estados que adotam essa política há muito tempo e ainda estão entre os mais violentos, como São Paulo e Paraná? Qual é o sentido de punir torcidas organizadas que apenas mudam de nome e CNPJ, mas continuam existindo? E por que ninguém fala em alterar o modo de atuação da polícia, que foi, no mínimo, inoperante, já que sabia que as duas torcidas planejavam confrontos? A violência surge como consequência de uma cadeia de erros.

Para entender melhor as particularidades do caso, recomendamos a matéria publicada por Adriano Costa, ex-coordenador regional da Associação Nacional das Torcidas Organizadas (Anatorg). Nesta reportagem, o autor detalha o histórico de irresponsabilidades que opera como pano de fundo do acontecido em Recife. Também pontua uma questão fundamental que não foi dado seguimento enquanto política pública: a manutenção de um grupo de trabalho onde havia espaço para a participação, diálogo e construção de uma cultura de convivência entre as torcidas.

Estamos na hora de pensar em ações preventivas e de promoção da convivência cidadã que se apresentam como uma alternativa de construção coletiva muito mais fecunda que as ações impositivas que são tomadas há anos e que não produzem um efeito esperado na diminuição de episódios violentos no futebol.

 

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