quinta-feira, 27 de fevereiro de 2025

 A fórmula do fracasso – a democracia sem povo

Nas universidades brasileiras e de vários países chamados “ocidentais”, tornou-se moda falar em um “reducionismo de classe” do marxismo. A ideia básica é que o marxismo reduziria todos os fenômenos sociais ao pertencimento de classe – e às contradições entre as classes –, desconsiderando outros fenômenos e relações do tecido social. De fato, alguns marxistas já incorreram bastante em um reducionismo de classe e em uma relação mecânica entre classe e consciência de classe – como se cada trabalhador, tomado individualmente, fosse um bolchevique em potencial, com a consciência revolucionária pronta a despertar a qualquer momento, dado seu pertencimento de classe. Contudo, no Brasil de hoje, neste 2025 que começa, o nosso problema central nos debates teóricos e políticos não é um suposto reducionismo de classe do marxismo, mas o esquecimento total de que existem classes sociais no Brasil. Um trágico exemplo disso são os debates sobre democracia, defesa das “instituições” e frente ampla. Tudo começa com um engano autoimposto. O candidato Lula, em 2022, não aglutinou em torno de si milhões de votos de trabalhadores que ganham até dois salários mínimos (especialmente na região Nordeste, mas não só) por causa da defesa da democracia contra o autoritarismo de Jair Bolsonaro. O apelo de Lula foi a lembrança de um período econômico em que os salários, o poder de compra e o consumo das famílias eram melhores do que no governo Bolsonaro, e o custo de vida, como o preço da gasolina, do gás de cozinha, dos alimentos e afins, era bem menor.

É óbvio que, para amplos setores da sociedade, frente ao genocídio cometido na pandemia, a questão democrática e o horror ao bolsonarismo foram fatores de atração de votos em Lula. Mas engana-se quem coloca esse fator como elemento central do potencial de votos da Frente Ampla liderada por Lula. Com o governo empossado, a aposta foi simples: isolar o bolsonarismo, mostrando para os diversos setores da burguesia que não era necessário um movimento/governo de extrema-direita para entregar seu programa econômico. Vastos setores do progressismo, inclusive a tendência majoritária do PSOL, liderada por Guilherme Boulos, concordaram com essa premissa: ser funcional para a classe dominante, tornando o bolsonarismo uma força política e eleitoral desnecessária.

Dessa premissa, adotada por praticamente todos os progressistas, embora não dita abertamente, decorrem consequências básicas. Esquecer todas as promessas de campanha de 2022: revogar as contrarreformas trabalhista, previdenciária e do ensino médio, acabar com o teto de gastos, abrasileirar o preço dos combustíveis e retomar as refinarias privatizadas etc. A segunda consequência é continuar, ainda que com um ritmo menos violento, a Ponte para o Futuro, apresentada e posta em prática por Michel Temer no contexto do golpe de 2016 e, a partir de 2019, gerida por Paulo Guedes/Jair Bolsonaro.

Neste quadro, além de tratar números tímidos de melhora como uma espécie de paraíso na Terra, temos cada vez mais uma cortina de mentiras e enganos autoimpostos sobre a forma de tocar a “questão democrática” no âmbito da Frente Ampla. Primeiro, como já falamos, a estória de que, em 2022, a unidade contra o autoritarismo é que foi o fundamental. Em segundo lugar, a tese de que “a economia” não importa mais na definição da avaliação de um governo ou no ânimo do povo trabalhador, e que agora o centro da questão é a “guerra cultural” e as “fake news”. E, por fim, a nova moda da praça: a “tese” de que o governo Lula vai muito bem na economia, mas o povo não o percebe por problemas na comunicação.

Aqui, senhoras e senhores, permitam-me uma consideração que alguns podem achar um “reducionismo de classe”. Todos esses mitos têm uma função teórica clara (além dos objetivos eleitorais de blindar o governo): reforçar um programa pequeno-burguês de orientação sobre a classe trabalhadora. Um programa no qual nossa classe deve abrir mão de defender seus interesses econômicos imediatos (salário, direitos trabalhistas e sociais, condições de trabalho etc.) e subordinar-se a uma tática em que a “defesa da democracia” é feita às suas custas, unindo, com bênçãos liberais, a grande burguesia brasileira, os monopólios estrangeiros, os setores das camadas médias e os grupos sociais de maior renda que, desfrutando de várias franquias do Estado Democrático de Direito, têm interesse objetivo imediato em defendê-lo.

É uma noção de democracia sem povo, sem conflito capital/trabalho, sem luta de classes. Com esse horizonte de mundo, é totalmente coerente tratar o Supremo Tribunal Federal (STF) e Alexandre de Moraes (“Xandão”) como heróis da democracia, ao mesmo tempo em que o STF e “Xandão” estão numa saga para destruir todos os direitos trabalhistas do País (e a Justiça do Trabalho). O Supremo, a maioria dos democratas e defensores da democracia e a extrema-direita concordam com os pontos centrais do programa neoliberal em curso – incluso, é claro, a destruição dos direitos trabalhistas. É a democracia sem povo. Um museu de grandes novidades. De forma que em breve algum grande frasista – Alexandre de Moraes, Fernando Haddad ou Bolsonaro – poderá dizer: “a questão social é caso de polícia” e terminar com um “viva a democracia”. 

 

¨      Que democracia? Por Emir Sader

Assim que Carlos Nelson Coutinho publicou sua obra clássica “A democracia como valor universal”, a esquerda foi obrigada a acertar contas com a democracia. Que democracia? O que é democracia?

Na visão tradicional, classista, a democracia seria a democracia burguesa. Uma concepção formal que afirma a igualdade diante da lei – em todas as suas constituições -, mas contrapõe a isso as profundas desigualdades na realidade concreta.

O Brasil foi sempre o melhor exemplo do paradoxo. Desde que terminou a ditadura, passou a ser considerado uma democracia. Mas que convivia com as maiores desigualdades conhecidas.

Não havia dúvida que o Brasil havia deixado de ser uma ditadura. Os militares haviam ocupado totalmente o Estado, militarizado a instituição. Decidiam, entre eles, quem seria o novo presidente do país, que depois era aprovado pelo Congresso, completamente subordinado às FFAA.

Mas a democratização do Estado e da vida política conviviam com as maiores desigualdades sociais, econômicas e até mesmo políticas. Os que conseguiam ser eleitos para cargos importantes, provinham, praticamente sempre, das elites dominantes.

De onde vem então a concepção de “democracia como valor universal”? Da ideia de que devemos lutar para estender a igualdade jurídica para a igualdade real. De construir um Estado que não apenas afirme a igualdade formal, mas que seja um instrumento para a realização da igualdade real entre as pessoas.

Os governos do PT avançaram no processo de construção da igualdade econômica, social e política entre todos. A própria eleição do Lula e sua reeleição, foi um avanço na democratização do Estado. Pela primeira vez um líder sindical, um operário, um nordestino de origem pobre, chegava à presidência do Brasil.

Mas isso, por si só, não muda a natureza de classe do Estado brasileiro. Isso permitiu a implementação de políticas na contramão dos interesses dominantes. O modelo predominante até ali era o de concentração de renda, de exclusão social, de favorecimento dos interesses do grande capital e, especialmente, do capital financeiro, que se alimenta da mercantilização das relações sociais, da financeirização da economia e da elevada taxa de juros.

A priorização das políticas sociais está na contramão dos interesses e do modelo dominante de hegemonia do capital financeiro. Mas, implementada por apenas alguns anos, com interrupção, não consegue reverter a estrutura econômica e social predominante, que tem o capital especulativo ainda como seu eixo vertebral.

Convivem um governo democrático e anti-neoliberal, com essa estrutura econômica. Por isso é um período contraditório.

Além disso, o governo tem que ter lugar contra o poder conservador nos meios de comunicação, que se opõem fortemente ao Lula, a partir de aspectos absolutamente secundários, sem se enfrentar ao caráter social progressista do governo.

O governo tem que enfrentar a falta de uma maioria no Congresso. O que o obriga a uma política de alianças com setores do centrão, até mesmo da direita, dificultando a implementação de uma política coerentemente democrática e anti-neoliberal.

A democracia é um valor universal hoje no Brasil, E’, como afirmação ideológica do governo do PT. Nesse sentido, Carlos Nelson Coutinho estaria contente, se ainda estivesse entre nós. Mas sua prática se enfrenta tanto a uma estrutura estatal e do próprio sistema político, não democratizada ainda, como a uma estrutura econômica centralizada ainda em torno do capital especulativo, e à ação efetiva dos meios de comunicação.

A democracia vai se tornando um valor universal, conforme os setores predominantes na esquerda brasileira lhe dão a importância que a concepção original de Carlos Nelson Coutinho merece. Mas sua implementação requer uma maioria da esquerda dentro do Estado e a hegemonia da concepção democrática e anti-neoliberal que o PT representa, como hegemônica no conjunto da sociedade.

 

¨      O momento é governista. Por Oliveiros Marques

A luta política é feita de oportunidades. Em um ambiente polarizado, ela funciona como um pêndulo: ora para um lado, ora para o outro, com intervalos que não seguem necessariamente um ritmo cadenciado e compassado. Por isso, aproveitar os momentos é fundamental para construir um posicionamento positivo.

Assim como a oposição já teve seus períodos de oportunidade, alguns bastante recentes, penso que agora se abre uma janela importante de luta para a situação, para os governistas que apoiam Lula. A pauta está repleta de boas notícias que podem ser exploradas e que servem de contraponto, especialmente às fragilidades conjunturais provocadas pela alta dos preços dos alimentos. Claro que não com força suficiente para enterrar esse problema, pois ele está na vida real das pessoas, e só a mudança objetiva e concreta dessa realidade pode reverter essa percepção. Mas há pautas capazes de disputar a atenção dos debates.

São temas que dialogam positivamente com a base social governista, assim como o preço dos alimentos impacta negativamente. O próprio Lula, em pronunciamento em cadeia nacional esta semana, já deu a senha: a poupança para garantir que jovens de famílias inscritas no CadÚnico, matriculados no ensino médio, sigam seus estudos com o Pé-de-Meia, e a gratuidade de 41 medicamentos e outros produtos no Farmácia Popular.

Mas os conteúdos positivos que podem potencializar o discurso governista ganharam novos elementos esta semana. A liberação dos recursos do FGTS para trabalhadores que tiveram seu dinheiro bloqueado pelo saque-aniversário por medidas do governo anterior, a ampliação do crédito consignado para trabalhadores e trabalhadoras, reduzindo o endividamento das camadas mais pobres da população, os dados do Caged mostrando crescimento do emprego na indústria, e o balanço do BNDES, que revela que os financiamentos à indústria superam os concedidos ao agronegócio, evidenciando o dinamismo da economia e o aumento do valor agregado no PIB.

O momento, portanto, é extremamente positivo para quem se dispõe a defender o governo Lula. Além de haver pautas concretas para sustentar esse discurso, a oposição se encontra fragilizada, em grande parte pela denúncia oferecida pela PGR contra Jair Bolsonaro e pela sua inelegibilidade, que gera confusão em suas bases. O enfrentamento do debate é um dos caminhos para reverter a fotografia das pesquisas neste momento. Talvez o melhor caminho.

 

Fonte: Jones Manuel, em Opera Mundi/Brasil 247

 

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