Valério Arcary: A teoria
da crise final do capitalismo não foi confirmada
O liberalismo apresentou o capitalismo como o horizonte da
história. O marxismo devolveu o capitalismo à dimensão de um processo
histórico, portanto transitório, com épocas de formação, auge e crise. Anunciou
que o capitalismo podia ser superado por outra forma de organização das
relações sociais. A recessão mundial provocada pela crise de 2007/08 trouxe de
volta alguns temas históricos no movimento socialista.
Entre eles, foi considerada a hipótese de um “novo 1929”, em uma
escala quiçá superior ao maior cataclismo econômico do século passado. Análises
catastrofistas foram feitas, mais de uma vez, sobre o destino do capitalismo. A
tradição socialista debateu o prognóstico de uma hecatombe econômica, atribuída
a Marx por alguns, embora contestada por outros, e conhecida como teoria do
colapso ou do desmoronamento.
·
Um intervalo tão longo exige uma explicação histórica
A longevidade do capital é um tema espinhoso, mas inescapável. Um
período de um pouco mais de 170 anos separa-nos da publicação do Manifesto
Comunista, quando Marx apresentou pela primeira vez, publicamente, suas
conclusões sobre a condição histórica do capitalismo, e deve ser reconhecido
como um intervalo histórico suficiente, pelo menos como indicação de que a
regularidade das crises não deve ser confundida com um estado de coma terminal,
ou antessala de um colapso.
Sem crises econômicas que se desdobrem em crises sociais,
evidentemente seria impossível pensar uma estratégia política de conquista
revolucionária do poder, sustentada no combate organizado dos trabalhadores.
Petrogrado em 1917, Berlim em 1921 e ainda 1923, Madri e Barcelona entre 1930 e
1937 e, depois, a França e a Itália entre 1945 e 1948, a Revolução Cubana, a
revolução portuguesa, enfim, todas as situações revolucionárias do século XX
seriam impensáveis sem o fermento das crises econômicas.
No entanto, por mais severas que tenham sido as turbulências
econômicas do capitalismo, não se abriram situações revolucionárias sem a
disposição de luta dos sujeitos sociais. Não há xeque-mate econômico na luta de
classes. Nunca houve recessão ou mesmo depressão sem saída. Sempre há uma saída
econômica para o capital, se sua dominação não estiver politicamente ameaçada:
descarregará sobre outras classes, e sobre as nações periféricas, de uma ou outra
forma, os custos da recuperação da taxa média de lucro.
As duas metáforas mais comuns nos estudos marxistas sobre a
dinâmica do capital são a sequência internamente direcionada gênese, apogeu e
decadência, e a sequência recorrente, o movimento dos ciclos. A primeira
inspira-se em processos encadeados como infância, vida adulta, velhice e morte,
ou seja, uma curva histórica com uma orientação de ascensão e declínio
definida. A segunda remete a um movimento circular de alternância de fases como
primavera, verão, outono e inverno, que no movimento dos ciclos assume as
formas de expansão e contração. Os dois movimentos descritos não são
incompatíveis, são complementares. Os dois modelos teóricos são úteis, ainda
que sejam inspiradores para temporalidades distintas.
A história econômica do capitalismo foi a história da valorização
do capital. Esta valorização nunca foi homogênea, linear, uniforme: ela flutua,
oscila, balança. Em alguns momentos, acelera; em outros, desacelera. As
analogias, por mais fascinantes que sejam, não precisam ser conclusivas. São
esquemas de interpretação da realidade que buscam regularidades. Exige-se de
uma teoria algo mais: uma lógica irrefutável, a coerência interna de seus
fundamentos e verificações confiáveis, ou seja, os critérios de
comprovação.
No entanto, os dois movimentos que o marxismo sugere para a
compreensão das variações de pulsação do capital nos últimos 200 anos foram
demonstrados com sólida demonstração estatística. A interpretação econômica
achou um nexo coerente nas oscilações entre fases de crescimento e fases de
encolhimento da economia mundial, alternando-se os ciclos. A sincronicidade das
crises recessivas internacionais aumentou com o processo de globalização de
capitais a partir dos anos 70. A interpretação histórica da sequência
direcionada procurou consistência na apreciação da dinâmica político-social do
sistema: os últimos 90 anos foram os mais revolucionários da história da
humanidade.
A partir de 1914, o capitalismo mergulhou o mundo em duas guerras
mundiais e, desde então, a civilização se viu ameaçada pela possibilidade de um
holocausto nuclear, por guerras regionais cada vez mais graves entre os países
centrais e as nações periféricas, e por uma crise ambiental sem precedentes.
Revoluções sacudiram as mais diversas sociedades em todos os continentes.
·
Duas metáforas sobre o destino do capitalismo
Estas duas metáforas nos permitiriam concluir que o marxismo
afirma que o capitalismo caminha de crise em crise até um desmoronamento
econômico? Na verdade, os marxistas polemizaram entre si sobre tudo e em
primeiro lugar sobre o destino do capitalismo. Pioneira na identificação da
natureza destrutiva do capitalismo em sua fase imperialista, a obra de Rosa Luxemburgo permanece uma inspiração para os socialistas do século XXI.
Mas a hipótese da crise final que ela, entre outros, considerou seriamente, não
parece ter passado na prova da história. Não porque tenham faltado crises na
economia capitalista, mas pela capacidade do sistema de superá-las, se não
triunfa a mobilização revolucionária de massas. Vejamos seus argumentos:
“A tendência objetiva da
evolução capitalista para tal desenlace é suficiente para produzir muito antes
uma tal agudização social e política das forças opostas que terá de pôr fim ao
sistema dominante […] Se, pelo contrário, aceitarmos, como os ‘especialistas’, que a
acumulação capitalista pode ser ilimitada, desmorona para o socialismo o solo
granítico da necessidade histórica objetiva. Nós nos perderíamos nas
nebulosidades dos sistemas e escolas pré-marxistas, que queriam deduzir o
socialismo unicamente da injustiça e perversidade do mundo atual e da decisão
revolucionária das classes trabalhadoras” (LUXEMBURGO, 1980, p. 31, tradução
nossa).
A questão teórica, como é óbvio, é decisiva, no seu sentido mais
grave. Em que medida operam as tendências objetivas, estritamente econômicas, à
crise, como um dos fatores estruturais do atual período histórico? A crítica
dos clássicos não é um procedimento simples. No entanto, quando a perspectiva
de uma avaliação histórica se impõe como necessária, os erros de prognóstico
não são incomuns. Os revolucionários socialistas, sem exceção, abraçaram um
projeto que tem pressa. Não será surpresa se foram impacientes e vítimas de
autoengano. Não nos devemos decepcionar se alguns, entre os mais capazes,
acreditaram que o fim do capitalismo era iminente.
O mundo em que nos coube viver é demasiado terrível para que
aceitemos que esta ordem mundial deva se perpetuar ainda por muito tempo. É
razoável que a ansiedade da revolta tenha, involuntariamente, favorecido
hipóteses e prognósticos equivocados. O desejo de abreviar o intervalo da
transição histórica alimentou vaticínios errados. As dores de parto da passagem
pós-capitalista revelaram-se, contudo, muito mais penosas e longas do que se
poderia prever há cem anos atrás. Mandel recupera, com grandeza, a contribuição
de Rosa Luxemburgo:
“Rosa Luxemburgo foi a primeira a tratar de elaborar, sobre uma
base estritamente científica, uma teoria do inevitável colapso do modo
capitalista de produção. Em seu livro A acumulação de capital,
procurou demonstrar que a reprodução ampliada era impossível no capitalismo
‘puro]’. Esse modo de produção tinha, portanto, uma tendência inerente de se
expandir num meio não-capitalista, ou seja, de devorar grandes áreas de pequena
produção de mercadorias que ainda sobrevivem dentro das metrópoles capitalistas
e expandir-se, continuamente, para a periferia não-capitalista: os países
coloniais e semicoloniais” (MANDEL, 1985a, p. 233, tradução nossa).
Um juízo crítico da teoria do desmoronamento econômico parece,
contudo, incontornável, sobretudo para aqueles engajados em um projeto
anticapitalista. Mais do que nunca, a defesa do socialismo exige firmeza na
defesa do que permanece vigente na herança marxista, indissociável, porém, da
disposição de revisar o que se demonstrou unilateral.
·
Hipóteses exploratórias e erros de prognóstico
Não há por que temer o afã revisionista. Todos os grandes
marxistas foram, em algum aspecto, revisionistas do legado que receberam e,
frequentemente, de si próprios. Polemizaram empolgados, até exaltados, sobre
tudo. Inúmeras previsões históricas construídas pelo marxismo não se
confirmaram, sem que esses erros diminuíssem a força da teoria. A construção de
cenários mais prováveis não deve ser confundida com a adivinhação. Procurar
antecipar-se aos acontecimentos, analisando as linhas de força das tendências
em presença, considerando seus movimentos internos, corresponde ao estatuto das
ciências sociais. As aproximações sucessivas foram e serão inevitáveis. Os
equívocos também.
Nesse terreno, não houve marxista que não tenha cometido mais
erros do que acertos, e não poderia ser diferente. Os equívocos não se
reduziram a questões marginais, mas remeteram até ao desenho do projeto
estratégico. Lembremos, a título de exemplo, que o próprio Marx, inspirado pela
experiência de 1848, considerava provável que as primeiras revoluções
proletárias vitoriosas tivessem como cenário a Europa Ocidental, estendendo-se
na forma de vagas ou ondas de um país para outros, e se equivocou. Onde o
capitalismo realizou de forma pioneira a industrialização e onde, portanto, as
condições materiais para iniciar uma transição socialista eram mais favoráveis,
as tentativas revolucionárias foram derrotadas. A Inglaterra permanece um dos
bastiões da contrarrevolução mundial.
Os erros de prognóstico político não diminuem os acertos de método
histórico. Marx errou na escala, porém, acertou na substância. Afirmou que a
revolução anticapitalista seria um processo cada vez mais mundial, com
refrações nacionais. A primeira vaga das revoluções do século XX, entre 1917 e
1923, sacudiu os fundamentos da dominação burguesa em toda a Europa Central,
triunfou no antigo império dos Czares, mas deixou a República dos Sovietes
isolada. Uma segunda vaga, depois da crise de 1929, incendiou a Alemanha e a
Espanha, atingiu a França, mas também foi derrotada. Lênin previu que, quando
chegasse a hora da revolução nas metrópoles imperialistas, soaria a hora da
revolução anticolonial na Ásia e África. Mas, a dinâmica histórica, em grande
medida, foi invertida. Foi a revolução na Argélia que fermentou as condições
para o Maio de 68 francês, foi a guerra colonial em Angola, Guiné e Moçambique
que inflamou as condições para a derrubada da ditadura em Portugal. Foi assim
porque nas três ondas revolucionárias seguintes o epicentro da revolução mundial
deslocou-se para a periferia do sistema.
Em mais de uma oportunidade, portanto, o capitalismo esteve
seriamente ameaçado no século XX. Não faltaram revoluções que desafiaram o
sistema. Na aurora do século XXI, contudo, nem um só país está em transição para
o socialismo. O capital inicia o novo milênio estendendo as relações mercantis
até mesmo aos países em que a propriedade privada tinha sido expropriada, como
China e Vietnã. O destino de Cuba não parece ser, infelizmente, diferente. Uma
conclusão peremptória está colocada para os marxistas: a transição
pró-capitalista demonstrou-se muito mais complexa do que tinha sido,
teoricamente, prevista. As revoluções político-sociais dentro de fronteiras
nacionais encontram pela frente uma força muito mais poderosa: a
contrarrevolução internacional. No entanto, como todos os modos de produção que
o precederam, o capitalismo corresponde a um período histórico e está condenado
a desaparecer. Mas a burguesia não vai cometer suicídio coletivo. Não
renunciará às suas riquezas sem uma luta encarniçada.
Ainda que todos os projetos de transição ao socialismo tenham
encontrado obstáculos insuperáveis em condições de isolamento nacional e
miséria econômica e cultural, como na União Soviética, foi nos países de
desenvolvimento retardatário da periferia que a ruptura anticapitalista ganhou
apoio de massas e revoluções sociais triunfaram. Contrariando as expectativas
das três primeiras gerações marxistas, foi nos países coloniais e semicoloniais
que o capital foi expropriado. No entanto, elaborar hipóteses de trabalho mais
prováveis como antevisões exploratórias correspondia ao método, e permanece uma
necessidade.
Resumindo, nunca existiram nem teóricos nem dirigentes infalíveis.
Os erros dos que nos antecederam não os diminuem diante de suas gigantescas
realizações. Entre marxistas não deveriam existir temas tabus. A causa do
socialismo não precisa do culto à personalidade de ninguém. Apoiamo-nos nos
ombros dos que nos antecederam e nas lições que a história nos legou e, por isso,
podemos e devemos fazer correções e revisões.
A teoria da crise final estava errada.
Fonte: Opera Mundi
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