Crônica sobre alienação e autoengano na
esquerda
Ao conversar com um trabalhador terceirizado da
zeladoria do prédio onde trabalho, fui confrontado com uma realidade que muitos
preferem ignorar: o abismo entre os números da economia e a vida real dos
trabalhadores.
Nesses papos informais em que não ultrapassamos os
limites do senso comum, a conversa chegou a uma conclusão unânime: como os
preços dos alimentos estavam altos no supermercado. Neste momento, um dos
terceirizados mencionou que recebe algo em torno de R$ 1.200 mensais e relatou
a dificuldade em fazer esse valor durar até o fim do mês. A conversa acabou,
cada um seguiu seu caminho.
No entanto, fiquei refletindo sobre aquela troca de
palavras. Toda vez que passo por um ponto de ônibus lotado ou vejo longas filas
de espera em hospitais públicos, aquele breve bate-papo retorna à minha
memória. Essa realidade me fez refletir sobre uma aparente contradição: os
números positivos da economia apresentados pelo governo contrastam com a queda
de popularidade do presidente Lula.
Quando aquele trabalhador terceirizado recebe seu
contracheque no fim do mês, com um valor abaixo do salário-mínimo, ele
realmente sente os efeitos do crescimento do PIB? Ou do suposto aumento do
emprego? Para ele, o que pesa é o preço do arroz, do aluguel e da conta de luz
– e não as estatísticas oficiais. Será que, em 2026, ele se sentirá motivado a
votar pensando na defesa da democracia contra a extrema direita, ou sua escolha
será guiada pela frustração cotidiana?
Os números oficiais mostram um desemprego baixo,
mas escondem um mercado de trabalho precário. O CAGED revela alta rotatividade
e salários iniciais baixos, o que significa que muitos trabalhadores não
conseguem estabilidade financeira. Além disso, é necessário considerar a alta
informalidade e a preocupante taxa de desemprego entre jovens de 18 a 24 anos,
que gira em torno de 15%. A informalidade, por sua vez, fomenta a ilusão do
empreendedorismo, que, na prática, muitas vezes se traduz em precarização e
superexploração do trabalho.
Nos dois primeiros anos do governo Lula 3, algumas
categorias de trabalhadores obtiveram ganhos reais em seus salários. No
entanto, a inflação dos combustíveis, dos planos de saúde, do aluguel e,
principalmente, dos alimentos corrói esse aumento, tornando-o quase
imperceptível para a população.
Outro fator alarmante, que contrasta com os
indicadores positivos do governo, é o grau de endividamento das famílias. Segundo
a Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC), 2024
terminou com 77% das famílias brasileiras endividadas. Esse cenário de
endividamento é acompanhado pelos sucessivos recordes de lucro dos bancos, que
continuam drenando a renda dos trabalhadores.
Diante desse cenário, percebe-se uma sociedade
dividida, tomada por um certo ar de desconfiança e desalento. Mesmo com os
esforços do governo para melhorar sua comunicação, quem convive com o “chão de
fábrica” nota a ausência de entusiasmo em relação à atual gestão. No fim das
contas, para se comunicar melhor, é preciso ter o que comunicar.
Lula venceu em 2022 ao unir diferentes forças
políticas contra a extrema direita. Agora, essa mesma aliança limita suas
ações, pois depende de um Congresso majoritariamente conservador e de um setor
financeiro que pressiona por austeridade. Ainda assim, há espaço para medidas
progressistas que não dependem exclusivamente do Legislativo, como o
fortalecimento de bancos públicos, Petrobras e políticas de valorização
salarial.
Essa insatisfação difusa na sociedade pode ser
explicada apenas como um problema de comunicação ou pelos limites da
governabilidade? Ou há algo mais profundo?
Desde 2003, os governos petistas não romperam com
os dogmas neoliberais do Consenso de Washington – câmbio flutuante, meta de
inflação e superávit primário. Pelo contrário, a gestão petista reafirma sua fé
na sustentabilidade do Novo Arcabouço Fiscal (NAF) e na manutenção da
independência do Banco Central. Em quase quinze anos de governo, o Partido dos
Trabalhadores não alterou as estruturas do capitalismo rentista brasileiro e o
nosso papel na divisão internacional do trabalho.
A austeridade imposta pelo NAF, sob a gestão do
ministro Fernando Haddad, impede investimentos na melhoria e expansão dos
serviços públicos. Em contrapartida, a lógica neoliberal viabiliza a
transferência desses serviços ao setor privado. O BNDES do governo Lula 3 dá
continuidade ao programa “Ponte para o Futuro” inaugurado no governo Michel
Temer. Uma das políticas desse programa são as Parcerias Público-Privadas
(PPPs), que destinam dinheiro público para concessões de estradas, portos,
parques, escolas e creches. Assim, o grande capital ganha duplamente: primeiro,
pela captura de recursos do orçamento público por meio da dívida pública;
segundo, pela apropriação de bens e serviços estatais via concessões e
privatizações.
Apesar do discurso progressista, não houve, por
parte do atual governo, esforços para reverter o avanço da terceirização no
serviço público e privado. Pelo contrário, a precarização do trabalho tem se
intensificado dia após dia. Um agravante: a terceirização no serviço público
não garante, necessariamente, a redução dos gastos do governo. Em muitos casos,
o custo com contratos de empresas terceirizadas pode ser até maior do que a
manutenção de servidores efetivos, sem contar a perda de qualidade e
estabilidade nos serviços prestados.
Não há qualquer sinal de que privatizações de
empresas estratégicas serão revertidas para que estas atuem no desenvolvimento
do país. Em vez disso, o governo segue apresentando pacotes de ajuste fiscal
que impactam diretamente as camadas mais vulneráveis da população,
beneficiários de programas como Bolsa Família e Benefício de Prestação
Continuada (BPC). São as eternas “reformas” neoliberais.
Pois bem, um espectro ronda a política brasileira:
o espectro das jornadas de junho de 2013. Naquele momento, as lideranças
petistas falharam em perceber que, mais do que um reflexo do patrimonialismo ou
da influência das redes sociais, o que levou milhares de manifestantes às ruas
foi a insatisfação com a baixa qualidade dos serviços públicos. Os grandes
centros urbanos eram verdadeiros barris de pólvora prestes a explodir.
Apesar dos avanços sociais como políticas de combate
à fome, a expansão da rede federal de ensino e um período de crescimento
econômico em decorrência do boom de comodities que
possibilitou a ampliação do investimento público, existia uma crescente
insatisfação entre diferentes extratos da população.
Embora o país tenha experimentado um sentimento de
euforia e otimismo ao longo do segundo mandato do presidente Lula, existia um
déficit de políticas urbanas de transporte, segurança, educação e saúde
públicas. Esse conjunto de insatisfações veio à tona em junho de 2013. O então
prefeito da capital paulista, Fernado Haddad, anunciara um reajuste nas tarifas
de ônibus. Tal medida era considerada importantíssima para o equilíbrio das
contas da prefeitura, porém serviu como estopim para a eclosão de grandes manifestações
que, em menos de vinte dias, se expandiram pelas cidades do país e tomando a
Esplanada dos Ministérios em Brasília.
Como explicar que avanços econômicos e sociais
“nunca antes vistos na história desse país“ se desmancharam pelo ar em questão
de meses? Ou num arco temporal mais amplo, até o golpe de 2016? Existe uma
visão míope que atribui os acontecimentos de 2013 e 2016 a uma revolta da
classe média e ao fenômeno das redes sociais. São explicações que buscam um
fator externo para ofuscar as críticas ao modelo econômico do lulopetismo, que
manteve intactas as estruturas de dominação, acumulação do capital e
superexploração da força de trabalho.
O trabalhador sabe fazer contas. O trabalhador não
precisa ser tutelado. Explicações do tipo “pobre de direita” depositam nos
ombros do trabalhador a responsabilidade por suas mazelas. Criam uma espécie de
vínculo moral ou um certo ar de ingratidão por parte do eleitor que não vota no
Partido dos Trabalhadores – ou nos partidos progressistas. É certo que o mundo
do século XXI tem se mostrado complexo e é notável o avanço da extrema direita,
embalado pela ideologia do empreendedorismo e pela fé da teologia da
prosperidade. Por outro lado, também é certo que a extrema direita encontrou
terreno fértil nas últimas quatro décadas de consolidação do neoliberalismo.
Se há algo que os governos petistas deveriam ter
aprendido com as manifestações de 2013 é que promessas de crescimento econômico
não são suficientes para garantir apoio popular. O trabalhador comum não vive de
indicadores, mas da realidade concreta do seu cotidiano. Esse erro se repetiu
em 2015, quando a então presidente Dilma Rousseff, sob forte pressão do
mercado, nomeou Joaquim Levy como ministro da Fazenda.
Com um viés ortodoxo, Levy adotou uma agenda de austeridade
que incluiu cortes em investimentos públicos e restrições orçamentárias,
resultando em uma queda brusca da economia. O desemprego disparou, o consumo
despencou e o governo perdeu apoio popular, criando um cenário de insatisfação
que facilitou o processo de impeachment em 2016. Estes episódios reforçam a
lição de que números positivos na economia não bastam—é preciso que o
crescimento se traduza em melhorias concretas na vida das pessoas.
Se o governo Lula 3 deseja reverter o cenário de
apatia e desconfiança, precisará ir além da comunicação e enfrentar, de fato,
os entraves estruturais do país. Para isso, é fundamental romper com o
Arcabouço Fiscal, que impõe uma lógica de “austeridade” permanente e sufoca a
capacidade do Estado de investir em infraestrutura, serviços públicos e geração
de empregos. O crescimento econômico sustentável depende de um Estado forte,
capaz de impulsionar a indústria nacional, reduzir desigualdades e garantir que
o desenvolvimento chegue a todos.
A ampliação da CONAB e de políticas de reforma
agrária poderiam contribuir para a estabilidade dos preços dos alimentos,
enquanto o fortalecimento dos bancos públicos e a ampliação do crédito
produtivo permitiriam que pequenos e médios empresários não ficassem reféns das
altas taxas de juros do setor financeiro privado. Acabar com o Arcabouço Fiscal
não significa irresponsabilidade fiscal, mas sim a substituição de um modelo
que estrangula o investimento público por uma política econômica que priorize o
bem-estar social e o fortalecimento do setor produtivo.
Além disso, é essencial que o governo reconstrua
seu vínculo com as bases populares e escute aqueles que vivenciam diariamente
os impactos da política econômica. O distanciamento entre a gestão federal e o
povo trabalhador gera um vácuo que pode ser explorado por discursos
oportunistas da extrema direita.
Se a insatisfação cresce mesmo diante de
indicadores positivos, é porque esses números não se traduzem em melhorias
concretas no cotidiano da maioria. O governo precisa abrir canais reais de
participação popular, fortalecer conselhos e movimentos sociais, e garantir que
suas decisões sejam moldadas pelas necessidades da população. Mais do que
anunciar medidas, é preciso que as pessoas se sintam parte do projeto de
reconstrução do país. Caso contrário, o descontentamento continuará crescendo –
e poderá ser capturado por forças políticas que oferecem respostas ainda mais
regressivas.
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