quinta-feira, 27 de fevereiro de 2025

Entrar ou viver nos EUA em situação irregular é crime?

Desde que Donald Trump voltou à Presidência dos Estados Unidos, em 20 de janeiro, até agora, 292 pessoas já foram deportadas para o Brasil.

Foram 88 num primeiro voo que fez escala em Manaus e foi classificado como "inaceitável" diante das condições a bordo; 110 num segundo com destino a Fortaleza; e 94 na sexta-feira passada (21/2), também com primeiro pouso na capital do Ceará.

Estes brasileiros se tornaram assim parte do que Trump prometeu ser "a maior operação de deportação em massa da história" dos Estados Unidos, uma das suas principais promessas de campanha.

Em meio à campanha, os imigrantes afetados vêm sendo descritos como "criminosos ilegais".

No mês passado, em resposta a perguntas de jornalistas sobre as deportações em curso, a porta-voz da Casa Branca, Karoline Leavitt, disse que "se você é um indivíduo, um cidadão estrangeiro, que entra ilegalmente nos Estados Unidos, você é, por definição, um criminoso".

Diante da pergunta sobre quantas entre as 3,5 mil pessoas até então detidas pelo serviço de imigração sob o novo governo tinham antecedentes criminais em comparação a quantas apenas estavam ilegalmente no país, Leavitt respondeu:

"Todos eles, porque violaram ilegalmente as leis da nossa nação e, portanto, são criminosos, no que diz respeito a este governo", disse.

"Sei que o último governo não via dessa forma, então é uma grande mudança cultural em nossa nação ver alguém que viola nossas leis de imigração como um criminoso. Mas é exatamente isso que eles são."

No entanto, de acordo com a lei nos Estados Unidos, nem todos os imigrantes que estão no país sem autorização estão cometendo um crime.

A mera presença física no território americano sem autorização é considerada uma infração civil e não criminal.

Pode ser punida com pagamento de multa e pode resultar em deportação, mas não é um crime.

Assim, se uma pessoa entrar no país com um visto válido e permanecer após a expiração, ou se violar as condições do visto (como trabalhar com um visto que não inclui esse tipo de autorização), pode ser deportada, mas não pode ser acusada de crime federal somente por causa dessa infração civil.

"Visto expirado não é crime", diz à BBC News Brasil a especialista em imigração Gabrielle Oliveira, professora da Universidade Harvard. "É uma questão de documentação, burocrática."

O advogado de imigração David Wilks, membro do conselho da Associação Americana de Advogados de Imigração (AILA, na sigla em inglês), lembra que cada caso é único.

"Mas se for (apenas) uma violação regulatória, isso não faz de você um criminoso", diz Wilks à BBC News Brasil.

"Se você tem uma infração civil, isso significa que você pode estar violando a lei, mas você não é necessariamente um criminoso, porque a lei que você violou não é de natureza criminal."

Pessoas enfrentando processo de remoção do país como resultado dessa infração civil podem ser detidas, mas isso não significa que sejam alvo de processo criminal. Elas estão sujeitas a uma pena civil, que no caso é a deportação.

·        Quando isso é crime?

A situação é diferente para quem entra nos Estados Unidos sem permissão ou para quem já foi deportado e voltou a ingressar no país, em violação à ordem de deportação. Nesses casos, podem enfrentar acusações criminais.

De acordo com o Título 8 do Código de Leis (que compila a legislação federal do país), Seção 1325, é crime entrar ilegalmente nos Estados Unidos.

Isso se aplica a imigrantes que não entram com a devida inspeção em um porto de entrada.

Vale tanto para os que cruzam a fronteira ilegalmente, fora dos portos oficiais de entrada, quanto para os que de alguma maneira "evitam exame ou inspeção por agentes de imigração" ou fazem declarações falsas ao "entrar ou tentar entrar".

Cometer uma infração desse tipo pela primeira vez é considerado um misdemeanor, que equivale a uma contravenção ou crime mais leve, e pode ser punido "com multa, até seis meses de prisão, ou ambos".

Mas quem reentrar ou tentar reentrar ilegalmente, ou quem for encontrado no país sem autorização após ter sido deportado, ter recebido ordem de remoção ou ter o pedido de admissão negado, estará cometendo felony, que é um crime mais grave do que misdemeanor.

Nesses casos, estará sujeito a pena de até dois anos de prisão. Se a pessoa foi removida anteriormente após ter sido condenada por certos crimes, a pena pode ser ainda mais alta.

Quem teve uma única condenação por felony ou três condenações por misdemeanor envolvendo drogas ou crimes contra uma pessoa pode receber até 10 anos de prisão.

Os que têm uma condenação por aggravated felony, que inclui uma lista de crimes como estupro ou assassinato, entre vários outros, estarão sujeitos a até 20 anos.

"Quando é um crime, a pessoa tem direito a um advogado", ressalta Wilks. "O que historicamente é parte da razão pela qual muitas leis de imigração (nos Estados Unidos) têm natureza civil, para que o direito a um advogado não se aplique."

'Retórica de Trump racionaliza deportações em massa'

Muitas das pessoas sujeitas a deportação nos Estados Unidos não cometeram nenhum crime.

Diante disso, a descrição desses imigrantes como "ilegais" ou até mesmo "criminosos" costuma ser criticada.

Um dos argumentos é o de que o uso do termo "criminoso" acaba igualando meras infrações regulatórias com crimes violentos.

"Pode haver algum tipo de ação criminosa que obrigue uma pessoa a deixar os Estados Unidos", afirma Wilks, citando como exemplo cometer um crime grave contra outro indivíduo.

"Mas, na maioria das vezes, quando vejo alguém que perdeu seu status (de imigração), é porque cometeu algum erro de documentação. Eles violaram a lei, mas não são atos criminais", destaca o advogado.

"Só porque não são criminosos, não significa que não precisem retificar essas violações e garantir que voltem a estar em conformidade", salienta Wilks.

"Mas é preciso ter cuidado com o que chamamos as pessoas."

Para Gabrielle Oliveira, de Harvard, é importante destacar que, mesmo em caso de misdemeanor, não significa que a pessoa cometeu algum crime grave.

"Não é que essas pessoas mataram ou roubaram", salienta.

A professora diz que a retórica do governo Trump, descrevendo todos os imigrantes em situação irregular como "criminosos", pode ser uma maneira de preparar para ações futuras.

"A retórica é o começo de preparar como você racionaliza o movimento de deportações em massa", afirma Oliveira.

·        O que diz a lei do Brasil e de outros países

Nem todos os governos consideram crime a travessia de suas fronteiras sem permissão.

Segundo um levantamento de 162 países publicado em 2019 pela Biblioteca Jurídica do Congresso dos Estados Unidos, 124 deles tratam a entrada ilegal em seu território como crime.

Os outros impõem apenas sanções civis ou administrativas, "normalmente multas ou deportação". O Brasil está incluído neste segundo grupo.

No Brasil, não é crime entrar ou permanecer no país em situação irregular. De acordo com a Lei de Migração, de 2017, que regula a "entrada e estada" de migrantes e visitantes, entre os princípios e diretrizes que regem a política migratória brasileira está o de "não criminalização da migração".

Pessoas que se encontram em situação migratória irregular em território nacional (seja por "entrada irregular, estada irregular ou cancelamento de autorização de residência") recebem notificação e prazo de 60 dias para regularizar a situação ou deixar o país voluntariamente.

Esse prazo pode ser prorrogado por mais 60 dias, dependendo das circunstâncias. Caso a situação não seja resolvida até o prazo final, a pessoa estará sujeita a procedimento administrativo, que inclui a deportação.

Conforme a lei, "entrar em território nacional sem estar autorizado" constitui uma "infração" sujeita à "sanção" de deportação "caso não saia do país ou não regularize a situação migratória no prazo fixado".

Outra infração é "permanecer em território nacional depois de esgotado o prazo legal da documentação migratória".

Nesse caso, a sanção prevista é "multa por dia de excesso e deportação, caso não saia do país ou não regularize a situação migratória no prazo fixado".

"Furtar-se ao controle migratório, na entrada ou saída do território nacional" também é infração, punida com multa.

Segundo a análise da Biblioteca Jurídica do Congresso dos Estados Unidos, há entre os países "uma ampla gama de punições para travessia ilegal de fronteiras, incluindo deportação, multas, detenção, serviço comunitário e prisão de penas variadas".

"Em regra, a duração da pena de prisão, que pode variar de alguns meses a 15 anos, depende das circunstâncias em que ocorreu a entrada."

Entre os países listados pela Biblioteca do Congresso que consideram crime a entrada ilegal de imigrantes está o Reino Unido, onde a pena pode ser de multa, prisão, ou ambos, além de deportação.

Segundo relatório de janeiro deste ano publicado pelo Migration Observatory, projeto de análise de questões relacionadas à imigração ligado à Universidade de Oxford, "no Reino Unido, é considerado crime entrar ou permanecer no país sem autorização", conforme a Lei de Imigração de 1971.

O relatório cita entre as principais maneiras de se tornar um migrante não autorizado no Reino Unido as seguintes:

"Entrar com visto e permanecer além do prazo (incluindo casos em que a autorização de residência é cancelada devido a uma condenação criminal)", "entrar sem autorização ou por meio de fraude, como com documentos falsificados", "não deixar o país após ter pedido de asilo rejeitado e todos os direitos de apelação esgotados", ou "nascer no Reino Unido de pais que são migrantes não autorizados".

Segundo o estudo da Biblioteca do Congresso americano, a maioria dos países "prevê punições mais severas" diante de determinadas circunstâncias agravantes.

Entre os exemplos citados estão os casos de pessoas que tentam cruzar ilegalmente armadas ou com uso de força e os casos em que há danos à propriedade privada.

 

¨      Claudio Katz: Inimigos entrelaçados

Donald Trump procura romper a aliança da Rússia com a China, para minar a rede internacional que seu grande concorrente forjou. Ele tenta aproximar Moscou para enfraquecer Pequim, através de uma estratégia que inverte a sedução implementada pelo Departamento de Estado sob Richard Nixon e Henry Kissinger.

Há vários anos, esta política é apoiada por importantes conselheiros da Casa Branca (Mearsheimer, Kennan), que destacam a impossibilidade de derrotar simultaneamente a Rússia e a China. Defendem a concentração de forças contra o rival econômico, contemporizando com o adversário geopolítico.

Mas esta manobra da Guerra Fria difere do passado devido à grande fraqueza produtiva dos Estados Unidos. A primeira potência não compete com um ator economicamente inferior, como era a União Soviética, mas com uma locomotiva asiática que tende a deslocar o hegemón em declínio.

Por outro lado, a Rússia não tem urgência, ou interesse imediato, em negociar nos termos que Donald Trump imagina. Entrou numa aliança defensiva com a China que começou no plano comercial, se estendeu à economia e agora desponta como salvaguarda militar. As duas potências convergem na resistência contra o mesmo agressor.

A Rússia precisa contrapor o cerco militar, que a OTAN promove instalando mísseis apontados para Moscou. O Pentágono iniciou este acossamento com as “revoluções coloridas”, que instalaram governos títeres dos Estados Unidos na região. Com a mesma intenção, impulsionou a guerra na Ucrânia, ampliou a militarização da Europa e forçou o alinhamento de países tradicionalmente neutros (como a Suécia e a Finlândia).

A China está sob o mesmo cerco, através de novos acordos com Austrália, Índia, Japão, Coreia do Sul, Nova Zelândia e Filipinas, que a Casa Branca forjou para fustigar seu rival. Para aumentar esta tensão, o Departamento de Estado aumenta o fornecimento de armas aos separatistas de Taiwan, pondo em dúvida o princípio de “uma só China”, que articula a integridade territorial do gigante oriental.

A transformação de uma economia asiática marginal na maior potência em ascensão do século XXI está baseada na reversão de sua fratura nacional. Washington sabe que a recuperação de Hong Kong foi um marco nesta mudança e concebe operações para impedir Taiwan de seguir o mesmo caminho. Pequim, por sua vez, reforça uma aliança com Moscou para inclinar a balança deste resultado. Donald Trump aposta na quebra desse acordo, mas tem poucos recursos para conseguir essa ruptura.

O Kremlin não tem urgência econômica para negociar com a Casa Branca. As sanções ocidentais foram um fracasso e a Rússia substituiu a perda do mercado europeu do gás por uma nova e lucrativa demanda asiática. Com estas receitas, manteve seu superávit comercial, preservou a estabilidade do rublo e financiou as despesas bélicas na Ucrânia (Mearsheimer, 2023).

Esta sequência ilustra a fragilidade dos golpes ocidentais contra uma grande economia. Ficou demonstrado que há opções contra o acosso ianque, e que o acossador pode acabar favorecendo o acossado.

·       Infortúnios na Ucrânia

Vladimir Putin também não tem pressa em chegar a um acordo com Donald Trump no plano militar. Após três anos de batalhas sangrentas, está ganhando a guerra na Ucrânia. É verdade que não conseguiu enterrar o governo de Kiev com uma operação relâmpago e teve que recuar para as zonas fronteiriças e travar uma dura guerra de posições. Mas a Ucrânia foi completamente demolida, com 700.000 baixas e uma crise de recrutamento que a impede de substituir tropas.

Kiev também não dispõe de artilharia suficiente para contrapor a saraivada de bombas que recebe, nem consegue manter trincheiras tão extensas, com recursos que são mais facilmente substituídos pelo inimigo.

Volodymyr Zelensky tem tentado compensar estas adversidades com operações aventureiras de entrada e bombardeio ao território russo ou com ataques terroristas, executados por parceiros jihadistas. Mas sua recente contraofensiva fracassada agravou a devastação na Ucrânia e aumentou o desânimo geral em relação ao desenrolar do conflito.

Vladimir Putin tornou críveis suas advertências de respostas mortíferas a uma maior escalada da OTAN. Confrontado com o “risco existencial” que essa ofensiva representa para a Rússia, permitiu o recrutamento de mais tropas caso o conflito se estenda a outros países fronteiriços. Também modificou a doutrina militar para ampliar as opções de utilização de armas atômicas.

Suas advertências adquiriram nova envergadura desde que assegurou sua autoridade interna, dissolvendo o grupo paramilitar liderado por Prigozhin. Esta limpeza trouxe coesão à estrutura do exército, que estava ameaçada pelo protagonismo das milícias privadas.

Com esta consolidação, Vladimir Putin prepara-se para negociar o futuro da Ucrânia nos termos da Doutrina Primakov. Este código pressupõe o reconhecimento ianque da centralidade geopolítica da Rússia e o fim dos mísseis da OTAN na Europa do Leste.

O líder russo não discutirá apenas como a Ucrânia será dividida em dois países, que regiões serão anexadas e quais as garantias de desmilitarização da região, que permaneceria sob proteção ocidental. Exigirá também que o armistício constitua um precedente para outros conflitos não resolvidos no espaço pós-soviético. Exigirá o fim da interferência do Pentágono na Moldávia, Romênia, Geórgia, Armênia e Azerbaijão.

Vladimir Putin também não tem pressa política em obter acordos com Donald Trump. Assegurou seu longo mandato com outra vitória eleitoral, no opaco sistema eleitoral russo, e obteve essa vantagem com maior participação eleitoral do que em disputas anteriores.

O dirigente do Kremlin aproveitou esta convalidação para fortalecer seu perfil autoritário e reforçar a criminalização de qualquer dissidência significativa. Beneficia-se de uma passividade popular continuada, que não foi alterada pela guerra na Ucrânia. Pelo contrário, o oficialismo aproveitou esse conflito para recriar o nacionalismo e recrutar os jovens das zonas empobrecidas. Estes setores mostraram grande disposição para sacrificar suas vidas nas linhas da frente em troca de alguma remuneração e pensões para suas famílias.

Com sua habitual prepotência, Donald Trump prometeu resolver a guerra da Ucrânia em poucas horas, mas negociará com Vladimir Putin, numa posição defensiva. Desde a revolta do Maidan e a miniguerra do Donbas, seus antecessores fracassaram na armadilha que tentaram armar para a Rússia. Presumiram que conseguiriam forçar o mesmo pântano que a União Soviética enfrentou no Afeganistão e, por essa razão, sabotaram todas as tentativas de conter a sangria da Ucrânia. Mas o tiro saiu pela culatra e a Casa Branca agora ficou às custas do Kremlin.

É verdade que Washington submeteu a Europa, expandiu a OTAN, militarizou o Velho Continente e introduziu uma russofobia que alimenta o crescimento da extrema-direita. Mas a vitória de Moscou no campo de batalha coloca os Estados Unidos numa péssima posição em qualquer tratativa.

Nesta discussão, Donald Trump privilegia a obtenção de vantagens no negócio da reconstrução da Ucrânia. Este país tem 70% de sua estrutura econômica completamente demolida. A indústria foi pulverizada, o déficit comercial triplicou e as exportações de grãos colapsaram. Além disso, os capitalistas fugiram do país, esvaziando as reservas bancárias, e o declínio demográfico precedente é acentuado pela perda de jovens nas trincheiras (Roberts, 2023).

Essa hecatombe é uma ótima notícia para os mercadores da morte. A Ucrânia tem sido o celeiro da Europa e tem estado no pódio internacional da produção de cevada, trigo e óleo de girassol. É altamente cobiçada por dez corporações agrícolas, que esperam apropriar-se de um terço das terras férteis do país.

O FMI promove ativamente outras transferências com planos de ajuste, que Volodymyr Zelenski põe em prática demolindo o código de trabalho, proibindo greves e ilegalizando os sindicatos. O país também possui uma grande reserva de terras raras e minerais cobiçados pelos gigantes digitais.

A disposição neoliberal de vender todos estes ativos é abertamente exposta pelos ministros corruptos de Volodymyr Zelenski, que têm Javier Milei como sua principal referência econômica internacional. Esta admiração confirma as inúmeras semelhanças entre a Ucrânia e a prostração da Argentina diante de seus credores (Castiglioni; Cantamutto, 2022).

Kiev sairá totalmente hipotecada da guerra, com dívidas monumentais com os contratantes do Pentágono. Donald Trump quer aproveitar esta subjugação para entregar ao Black Rock (e a outros fundos de investimento) a gestão da reconstrução (Marco del Pont, 2023). Mas estes negócios requerem um cenário favorável, em negociações que estão configurando-se como muito adversas para os Estados Unidos.

 

Fonte: BBC News Brasil/A Terra é Redonda

 

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