quarta-feira, 26 de fevereiro de 2025

Nikolas Ferreira publicou story sobre professora de artes travesti do MS, gerando onda de ódio e ameaças

Emy Mateus Santos, 25 anos, professora de teatro na rede municipal de Campo Grande, capital do Mato Grosso do Sul, nunca imaginou que uma atividade pedagógica — fantasiar-se para receber alunos no primeiro dia de um ano letivo — a colocaria no alvo de uma onda de ódio.

Formada em teatro e dança, Emy, que se identifica como travesti, foi integrada à rede de educação pública em fevereiro de 2024, após ser aprovada em concurso público. No início de 2025, foi transferida para a Escola Municipal Irmã Irma Zorzi.

Depois de uma semana de planejamento pedagógico, a coordenação da escola propôs que Emy e outras professoras se fantasiassem para receber os alunos para o primeiro dia de aula de 2025. O propósito era simples: acolher crianças de 6 e 7 anos de forma criativa.

A atividade, inclusive, teve o aval da Secretaria Municipal de Educação de Campo Grande, que afirmou em nota enviada ao portal G1 que “o uso de fantasias e caracterizações é um recurso pedagógico adotado por professores” de estudantes que estão matriculados no ensino básico na capital do Mato Grosso do Sul. O Intercept entrou em contato com a secretaria pedindo mais informações sobre o caso, mas não houve resposta até a publicação desta reportagem.

Emy, então, foi vestida de Barbie, com uma peruca rosa, uma saia e uma bota de cano alto. Outras professoras e até a coordenadora da escola escolheram as suas próprias fantasias, baseadas em personagens infantis. “Tinha gente de fada, de princesa, de cozinheira”, diz.

Segundo Emy, sua fantasia inspirou reações animadas e lúdicas das crianças. Por isso, na noite de segunda-feira, 10 de fevereiro de 2025, ela publicou um vídeo em suas redes sociais mostrando a rotina do dia, desde a preparação da fantasia até interações com os alunos.

Mas a cena, que pretendia celebrar a conexão com as crianças, foi deturpada em pouquíssimas horas. No dia seguinte, uma parte do vídeo, editada para remover o contexto pedagógico, viralizou em grupos conservadores da cidade.

Até que, na quarta-feira, 12, entrou em cena o deputado federal Nikolas Ferreira, do PL de Minas Gerais.

Com apenas um story publicado em sua conta no Instagram, Nikolas usou o registro da atividade escolar compartilhado por Emy e escreveu a seguinte legenda.. “Porque [sic] nunca em asilos? Ou para doentes? Ou sem teto? Porque é sempre para crianças?”, escreveu.

A postagem foi o estopim para o caso, que até então estava restrito a Campo Grande, se espalhar pelo país. Além da viralização nas redes sociais, veículos como R7 e Metrópoles repercutiram o vídeo de Emy – mas sem explicar que o episódio não era um ato isolado, que outras professores também se fantasiaram e que a iniciativa havia sido validada pela própria Secretaria Municipal de Educação.

Com a repercussão, Emy virou alvo de uma enxurrada de ameaças. Parlamentares de extrema direita de Campo Grande, como o vereador André Salineiro e o deputado estadual João Henrique Catan, ambos do PL, atacaram a professora até mesmo nos plenários da Câmara Municipal e da Assembleia Legislativa do Mato Grosso do Sul, referindo-se a Emy no masculino e acusando-a de “violar a inocência infantil”. 

Além disso, pais de alguns dos estudantes foram à escola exigir explicações, e Emy precisou se afastar da escola por segurança. “Não posso mais sair de casa sem medo”, desabafa. Apesar de a professora ter registrado boletim de ocorrência na polícia e de a Secretaria Municipal de Educação de Campo Grande ter defendido publicamente o uso de fantasias como recurso pedagógico, a narrativa transfóbica se sobrepôs e reforçou a vulnerabilidade de profissionais trans em ambientes educacionais. 

Em entrevista ao Intercept Brasil, Emy ainda contou que, antes mesmo da polêmica, já havia enfrentado transfobia institucional na escola onde trabalhou no ano anterior: foi orientada usar um banheiro isolado, teve seu nome social desrespeitado e presenciou colegas usando a Bíblia para condenar sua identidade.

Leia a entrevista completa:

·        Me conta um pouco da sua história, sua trajetória como professora, até chegar a esse caso que ganhou repercussão.

Emy Santos – Sou uma mulher travesti. No ano passado, entrei na rede pública. Uma das minhas grandes preocupações, é claro, era ter meu diploma e meu nome devidamente reconhecidos, para que eu minimamente conseguisse ter algum tipo de respeito dentro da instituição. Passei em um processo seletivo da rede municipal e fui chamada para assumir as aulas de artes. Minha linguagem é teatro e dança. Acho importante pontuar esses detalhes porque fazem sentido nessa história de fake news e perseguição.

Desde o primeiro dia na escola que atuei no ano passado, sofri inúmeras violências. Uma das primeiras foi a diretora sugerir que eu usasse um banheiro no fundo da escola, um banheiro sujo, um quartinho, porque ela “não sabia” se eu me sentiria bem ou se as outras pessoas se sentiriam bem com a minha presença no banheiro feminino.

Foram várias violências nessa escola. Meu pronome não era respeitado, e eu sempre precisava me desviar das relações sociais com as outras professoras. Um dos momentos mais delicados foi a minha relação com uma professora que sempre me chamava no masculino. Conversamos sobre isso na coordenação algumas vezes, mas um dia ela levou uma Bíblia para a sala de aula e começou a falar para os alunos sobre orientação sexual e identidade de gênero, dizendo que era errado ser como eu sou.

A partir daí, comecei a passar mal, ter crises de pânico, ansiedade, chorar. Até que falei: “Olha, eu não consigo entrar na sala de aula.” Minha decisão foi mudar de escola.

·        Como foi sua experiência nessa nova escola? E como houve essa confusão logo no primeiro dia de aula?

Cheguei a uma nova escola e fui recebida de forma diferente, acolhida pela diretora e pela coordenadora. Tivemos uma semana pedagógica e ficou combinado que, no primeiro dia de aula, as professoras de artes e a coordenadora iriam fantasiadas para recepcionar as crianças, como uma ferramenta lúdica para acolhê-las.

Eu fui de Barbie. Recebi as crianças, me apresentei em outras salas, falei um pouco do meu trabalho e de como seriam as aulas de teatro e dança. Também gravei um vídeo mostrando um pouco da minha rotina — desde o momento de me preparar até as interações carinhosas das crianças — e postei nas redes.

Na noite de segunda-feira, publiquei o vídeo. Na terça, ele já estava deturpado se espalhando por aí, com falas preconceituosas e distorcidas para gerar pânico moral. O vídeo circulou em diversos meios, de forma manipulada, para alimentar um caos moral na sociedade. E, claro, a imagem chama atenção, porque, aqui, só há eu e mais uma professora trans ou travesti. O fato de estarmos nesse espaço incomoda muita gente.

O post do Nikolas veio na quarta. Desde então, não parei de receber mensagens. Entre elas, ameaças. Pais e mães começaram a ir até a escola. Precisei me afastar por questões de segurança e integridade. Estou muito abalada, porque tudo isso é muito injusto. Meu trabalho, tudo o que venho construindo há um ano, tentando superar essas violências, está sendo destruído por uma onda de ódio.

·        Depois que você postou o vídeo, quando percebeu que começou a haver uma reação muito negativa?

Um dos primeiros vídeos que vi foi o do deputado João Catan, que já era, por si só, muito violento e agressivo. Depois, comecei a ver outros deputados e vereadores da direita postando também, dizendo frases como: “eu irei fazer justiça, eu irei acompanhar”. Meu medo era perder meu trabalho por esse motivo, mesmo estando respaldada pela escola.

Fiquei assustada com a pressão política e com a proporção nacional que isso tomou. Parlamentares de outros estados, como o Nikolas, que é lá de Minas Gerais, começaram a falar sobre o caso sem saber nada, apenas distorcendo os fatos.

A forma como eles agem é muito coletiva: estavam em todas as redes sociais — Instagram, Facebook, TikTok — espalhando esse discurso moralista e transfóbico.

·        Nikolas Ferreira é um dos deputados federais mais influentes nas redes sociais, com vídeos de milhões de visualizações. A onda de ódio cresceu depois da postagem dele?

Sim, totalmente. O Nikolas fez um story, mas colocou aquelas frases absurdas, dizendo que não faço isso em asilos, deturpando completamente o contexto. Ele quis insinuar pedofilia. E, depois disso, as mídias começaram a publicar matérias e a entrar em contato comigo.

·        E você está afastada da escola agora?

Sim, por segurança. Com as ameaças e o momento político delicado que vivemos, nunca se sabe. Pode aparecer um pai armado, um pai que “quer proteger sua filha” e tentar me agredir. Além disso, meu psicológico ficou muito abalado. Cheguei a ir um dia, mas ficava com medo de estar perto dos pais. Então, busquei acompanhamento profissional para lidar com isso.

·        Pessoalmente, como você está agora? Como tem sido esses dias?

Busquei ajuda psicológica e psiquiátrica. No início, a adrenalina me fazia buscar formas de me defender, mas depois bateu um sentimento de angústia e medo. Passei a ter insônia e a sentir essa injustiça de forma muito intensa.

Tenho uma rede de apoio que me acolhe, mas essa violência se instala em um lugar muito profundo. Não é a primeira vez e, infelizmente, sei que não será a última, simplesmente pelo fato de ser quem sou.

Por isso, tento me cuidar, principalmente no aspecto profissional. Sei que, sendo uma pessoa trans, preciso desse acompanhamento constante para não sucumbir, não perder a vontade de viver e trabalhar.

 

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