quarta-feira, 26 de fevereiro de 2025

Denise Assis: Mauro Cid relata a adesão ao golpe e a busca por recursos para a Copa 22

Quem se deu ao trabalho de ouvir todos os áudios da delação/colaboração do tenente/coronel Mauro Cid, ex-ajudante-de-ordem de Jair Bolsonaro, liberados pelo ministro Alexandre de Moraes há quatro dias (em 20/02), vai deixar de juntar o nome de Cid a qualificações tais como: “a sombra do ex-presidente”; “o carrapato do ex-presidente”. Terá, no mínimo, de mudar para: “a voz do ex-presidente”. “A vontade do ex-presidente”, ou “o chefe da torcida organizada do ex-presidente”.

Não. Mauro Cid não foi apenas o auxiliar que concentrava as informações que saíam ou chegavam. Aderiu, torceu, organizou o golpe. E estava no golpe. O relato, feito pelo próprio, está em um dos vídeos e conta em detalhes como foi que Mauro Cid aderiu ao golpe espontaneamente. Sendo uma pessoa esclarecida, com nível de doutorado na sua formação, não é possível dizer que “foi levado a...”. Fez uma escolha, apesar de conhecer a Constituição e as regras de sua instituição.

Hoje, chora e culpa a mídia por sua desgraça. Diz que não tem mais sossego, que a mulher é fotografada mal coloca o pé fora de casa e que a filha chora sem saber o que vai acontecer com ele. A opção, no entanto, foi apenas do tenente-coronel, que a um passo de se tornar general – bastava completar um curso de formação nos EUA, e na volta estaria apto à promoção.

Os detalhes de como deu uma guinada em sua vida, puxou o freio de mão em suas promoções e embarcou na aventura de rasgar a Carta Magna, para incensar um fascista, perpetuando Bolsonaro à frente do poder de nosso país, estão em um dos blocos de sua colaboração em que descreve a arquitetura da operação “Punhal Verde e Amarelo”. Talvez ele não saiba, mas o símbolo é de inspiração Mussoliniana.

A faca na caveira, remete ao símbolo escolhido pelo pelotão dos Arditi (Itália), que abordavam as trincheiras inimigas, durante a primeira guerra, enquanto elas estavam sendo bombardeadas pela artilharia italiana. Assim, quando a barragem era suspensa eles saltavam para dentro da trincheira e usavam seus punhais para suprimir a resistência inimiga. Essas táticas primitivas eram surpreendentemente eficazes, porém um grupo de Arditi podia perder de 25% a 30% de seus efetivos durante um ataque desse tipo. Seu lema era " O la Vittoria, o tutti accoppati ", cujo significado é: “ou ganhamos, ou todos nós morremos ". A unidade típica tinha 13 oficiais e 400 soldados selecionados em uma base voluntária. Mussolini adotou o símbolo da faca na caveira, para os seus pelotões especiais.

Com uma voz que denotava tensão e saía espremida da garganta, esfiapada, sem chuleio, desafinada, Mauro Cid descreveu como entrou para o núcleo que não só tentaria um golpe, como planejava matar o candidato opositor. Estavam dispostos a tudo, para não ter que descer a rampa, rumo ao ostracismo que os esperava. Nenhum fato positivo. Nada edificante marcava a gestão a que ele serviu. Pelo contrário. Bolsonaro e seus milicos deixavam atrás de si 700 mil mortos pela Covid-19, que ele negou, não acudiu, debochou. Um rombo de cerca de 800 milhões de reais nas contas públicas, um orçamento que não dava para cobrir a folha seguinte de pagamento dos funcionários públicos, e um exército de fanáticos dispostos a não arredar pé das portas dos quartéis. Foi assim, contou, com o seu vocabulário limitado, embora tenhamos pagado para ele cursar até o doutorado:

“(...) Eu fui procurado pelo ‘de Oliveira’ e pelo ‘Ferreira Lima’, que são colegas de trabalho, meu, e... A data foi entre 10 e 11 de novembro (de 2022, acréscimo meu). Nove, 10 ou 11 de novembro, em que eles expressavam a indignação pelo que estava acontecendo no país, que alguma coisa tinha que ser feita... Tinha uma mobilização de massa muito grande... Que o Exército tinha que fazer alguma coisa... Que o presidente não podia se omitir... Que os generais não podiam se omitir, né? E que eles estavam propostos (sic) a fazer alguma ação que gerasse alguma mobilização de massa, né? Que pudesse causar um caos institucional, alguma coisa que pudesse levar a alguma coisa, à decretação de um estado de sítio, e alguma coisa nesse sentido, né? E queria saber, né? E queriam saber o que eu podia fazer. Aí o que eu falei para eles: ‘olha só, eu não tenho contato com manifestantes, eu não tenho contato com liderança nenhuma. Eu não mantenho esses contatos nem com o pessoal de manifestantes’”.

Isso não os preocupou, contou. Queriam a sua participação a qualquer custo. Ele era a peça de encaixe para colocá-los para dentro do palácio.

“E ali sugeriram que eu fosse conversar com o general Braga Netto” (Walter Braga Netto, ex-candidato a vice-presidente, que se encontra preso no âmbito do processo por tentativa de golpe de Estado e abolição do Estado de Direito).

“O general Braga Netto, ele que mantinha o contato aí com os manifestantes e com o pessoal dos acampamentos na frente dos quartéis, que tinha essa ligação mais popular, ligação com o pessoal do agro, ligação com o presidente Bolsonaro. Então, isso foi no dia 10, dia 11. Dia 12, quando eu retornei (contou antes que estava em Goiás), nós fomos na casa do general Braga Netto. Eu estava no Alvorada, expediente normal no sábado. Quando eles chegaram, eles me encontraram ali. Nós marcamos numa banca de jornal, perto da casa do general, nos encontramos e fomos lá”.

Naquele instante, o tenente-coronel Mauro Cid colocou os dois pés dentro do golpe e abraçou a causa com fervor. É o que revela ao prosseguir no relato:

“O de Oliveira parece que já conhecia o general Braga Netto, parece que já tinha servido com ele no Rio, na Intervenção, né? Tinha trabalhado com ele no Forças Especiais – o comando dos Kids Pretos -, tinha uma relação próxima com o general. Próxima não, mas já se conheciam de outros trabalhos. Bom, a conversa foi nesse nível. Nós temos que fazer alguma coisa (para que) haja uma mobilização de massa que haja repercussão, que o Exército tenha que fazer alguma coisa, uma decretação de Estado de Sítio, os generais aceitem a necessidade de o presidente assinar alguma coisa ou não, mas tudo assim, sem saber o que fazer. Nada específico, ainda detalhado, do que se ia fazer, né?”

Segundo Cid, “aí começaram a surgir algumas ideias” práticas, do tipo: “vamos mobilizar os caminhoneiros para parar o país... Não, vamos bloquear as estradas... Então eram ideias que podiam ser feitas para... Quando entrou no nível das ideias, o general Braga Netto interrompeu, dizendo: ‘não, o Cid não pode participar porque ele está muito próximo a Bolsonaro’. E foi aí que eu fiquei.

 (Ficou no ponto onde conversaram e os demais seguiram para a reunião).

“Tanto que a própria Polícia Federal... Eu saí mais cedo, fiquei uns 20 ou trinta minutos com eles inicial (sic). “Eu saí mais cedo, fui para o Alvorada, tá tudo ali registrado, porque tinha uma outra reunião que eu tinha que participar com o presidente. Participar, não. Assessorar ali a parte técnica. E aí a reunião continuou e eu não conversei mais com eles”, contou.

“Dois dias depois, o major de Oliveira me liga e pergunta para mim: ‘alguma novidade’? Como eu não tinha conversado mais nada, eu nem perguntei, era o meu perfil, eu falei: ‘não sei, você é que tem de me dizer’, porque realmente eu não sabia o que eles tinham combinado, falado, que eles iam fazer.

Ele me disse: ‘estamos sem recurso’. Eu falei: ‘tudo bem. Vamos ver se eu consigo’. Aí eu fui procurar o general Braga Netto. Não sabia o que eles tinham planejado, e falei: ‘general, eu não sei o que foi conversado aí, mas eles estão precisando de dinheiro’. Aí o general deu a ideia: ‘peça para eles fazerem a solicitação do que eles precisam e nós vamos ver se o partido consegue bancar alguma coisa, né?’

Já cheio de entusiasmo, passou a contribuir com sugestões:

“Tanto que inicialmente, até pelo início das conversas, eu disse: ‘tem que trazer o pessoal do Rio’. Eu achava que eles queriam encorpar as manifestações. Trazer o pessoal dos motoqueiros, algo assim. Aí ele me manda aquele primeiro documento, que foi aquele Copa 2022 (Operação Punhal Verde e amarelo, que traçava o plano de assassinar Lula, Alckmin e Alexandre de Moraes), que a Polícia Federal não conseguiu abrir. Naquele documento estava descrito que eles precisavam de hotel, carro, passagem aérea, né? Alguns dados... O valor de 100 mil foi eu que falei assim, meio brincando, porque eu não tinha ideia desses gastos e o general Braga Netto me orientou a perguntar se o partido podia custear isso aí.”

A esta altura, Mauro Cid já se sentia dentro do plano:

“Aí eu fui conversar com o coronel lá, que era responsável pelo partido (o PL, do presidente. Sendo que esse dinheiro sai dos cofres públicos, repassado aos partidos). Eu não me recordo o nome dele. Inclusive ele viu o documento. Eu imprimi o documento e mostrei para ele o documento, né, esse documento inicial, que tinha só as relações. Aí ele falou que não poderia... Que o partido não podia trazer manifestantes ou apoiar com esse tipo de material”.

Empenhado, Cid descreve o seu esforço em financiar a operação mais criminosa de toda a trama, embora diga, agora, que não sabia dos detalhes.

“Eu voltei no general Braga Netto e o general Braga Netto disse: ‘não. Vou dar um jeito. Vou tentar conseguir por outros caminhos (o agro). Uma ou duas semanas depois, eu não me lembro muito bem, o general Braga Netto me entrega o dinheiro. Se eu não me engano, foi quando o de Oliveira esteve no Planalto. Ele me entregou um negócio tipo aqueles negocinhos de vinho, assim, com dinheiro. Não contei, estava grampeado e o De Oliveira veio buscar o dinheiro. Eu peguei o dinheiro e passei para o de Oliveira’.

Assim, com poucos recursos verbais, quase se entusiasmando em alguns momentos da descrição, Mauro Cid esmiuçou o seu ingresso no golpe. Sem demonstrar arrependimento, se sentindo salvo diante do acordo que havia firmado – e que quase lhe escorreu pelos dedos -, o tenente-coronel não sabia, mas estava fazendo história. Do pior jeito, mas estava. Nesse dia, o do encontro descrito em seu depoimento, a democracia esteve por um fio, depois de uma conversa de sábado, nas proximidades do Alvorada. 

 

¨      Fuga mirabolante ou “atentado”? Por Fernando Castilho

A denúncia contra Jair Bolsonaro, preparada por Paulo Gonet, é robustíssima – ou melhor, é uma obra-prima de evidências, ainda mais "turbinada" pela exposição dos áudios no Fantástico. Agora, com certeza, será recebida de braços abertos pela Primeira Turma do STF, que, em um gesto de pura generosidade, dará ao ex-presidente uma pena superior a 30 anos. E não só o futuro réu, mas até o pombo que arrulha todas as manhãs no telhado do vizinho sabe disso, não é mesmo?

O capitão, junto com seu filho Eduardo, tenta manter o rebanho unido com a clássica falácia de que Donald Trump vai livrá-lo da cadeia. Porque, claro, é muito realista esperar que o presidente dos EUA consiga interferir na justiça brasileira. Isso está tão distante quanto um pôr do sol num horizonte que sequer existe. Mas tudo bem, a esperança nunca morre, não é?

Mas então, o que fazer? Qual será a saída para o ex-presidente não precisar passar uma temporada de longuíssimo prazo em um lugar que, mesmo com a liberdade condicional, o impossibilitaria de voltar à política? Ele vai se resignar, aceitando a tragédia de sua carreira política?

Claro que não! Bolsonaro fará de tudo para não ser preso, pois não tem a coragem de Lula. Então, o que ele tentará agora? Fuga, claro! A mais cogitada é uma fuga internacional. Seu passaporte pode estar retido, mas, como sempre, nada é impossível. É só se refugiar numa embaixada – que pode ser a da Hungria, super íntima, ou até a dos EUA – e depois seguir para um voo diplomático rumo à liberdade. Ou quem sabe ele parte de carro, jatinho, helicóptero ou até jet-ski, rumo à Argentina de Milei?

Mas como ele vai fugir se está sendo monitorado pela Polícia Federal? Ah, simples! Quem precisa de segredo quando pode sair escondido no porta-malas de um carro? Quem sabe ele se transforma no Houdini da política e faz tudo desaparecer como mágica.

E se a fuga não rolar, quem sabe ele se inspire no clássico truque de sempre: forjar um atentado. A data? 16 de março, quando está prevista uma manifestação no Rio de Janeiro em favor da anistia aos golpistas do 8 de janeiro. Isso, claro, garantiria uma comovente repercussão nacional, no melhor estilo 2018, quando ele foi eleito com o famoso “sentimento de injustiça”. Resta saber se cola desta vez. E, ah, tem mais: o ex-presidente, em vídeo, pediu para ninguém levar faixas ou tocar em outra pauta que não seja a da anistia. Sabe, só para garantir que todo mundo vai seguir esse plano completamente inofensivo. Nada mais suave. É o bonzinho paz e amor. E, claro, é a melhor forma de garantir que a Polícia Federal relaxe no monitoramento.

De qualquer forma, o ex-presidente já conseguiu acumular razões mais que suficientes para uma prisão preventiva. A convocação para o ato de 16 de março é claramente uma incitação à reação contra sua condenação e prisão. O que, como todo bom entendedor sabe, justifica uma prisão preventiva.

Se é para entrar para a história, que seja de vez.

 

¨      O caminhão da mudança que abalou o Alvorada. Por Moisés Mendes

O caminhão da mudança pode ser tão assustador quanto o carro fúnebre. O coronel Mauro Cid sabe o estrago que um caminhão é capaz de provocar em situações politicamente dramáticas.

Cid foi testemunha da reação de Michelle Bolsonaro, quando a então primeira-dama entrou em pânico no momento em que teve de abandonar o Palácio da Alvorada, no final de 2022.

Cid contou em delação diante de Alexandre de Moraes que Michelle se descontrolou ao ver o caminhão que levaria as coisas da família. E, disse ele, Michelle ‘quase pirou’.

Porque o caminhão de mudanças nos põe diante de uma realidade muitas vezes negada: é a hora de ir embora. E quando o que nos atormenta pode ser a vontade incontrolável de ficar.

As trouxas vão sendo enfiadas no caminhão junto com memórias e sonhos adiados, irrealizados ou incompletos, que ficarão ali na casa de onde as trouxas estão saindo.

Michelle via as trouxas sendo enfiadas no caminhão da mudança e, conforme a delação de Mauro Cid, se desesperava e dizia: façam alguma coisa, vocês têm que fazer alguma coisa. 

A coisa a ser feita era o golpe. O marido, derrotado por Lula na eleição, dedicava-se à última chance, na continuação da armação golpista que levaria 5 mil manés à invasão de Brasília. E deu no que deu.

Michelle havia sido convencida pelo núcleo do Planalto, depois de ser vista por Cid como figura ativa na defesa do golpe, de que tudo daria certo. E de que ela nunca mais faria mudanças.

Nas cabeças de Bolsonaro, Michelle, Braga Netto, Augusto Heleno, Mario Fernandes, Anderson Torres, Mauro Cid e seus subalternos no golpe, eles nunca mais sairiam do poder. 

Bolsonaro seria dono do Planalto e Michelle poderia ser a dona vitalícia do Alvorada. Era como a imperatriz Teresa Cristina se sentia no Palácio de São Cristóvão, até ver o marido Pedro II deposto em 1889. 

Mauro Cid conhecia a realidade do Alvorada como poucos. O coronel contou a Moraes, numa das sessões de revisão da delação, que Bolsonaro se deprimiu tanto, depois de perder a eleição para Lula, que os generais temiam por sua saúde mental.

Cid disse que Heleno recomendava vigilância permanente ao lado de Bolsonaro e que até dormisse com ele no Alvorada. Cid, o ajudante agora abandonado pela família, dormia com Bolsonaro no palácio. Porque o sujeito enfrentava o que o coronel define na delação como ‘luto profundo’.

Era preciso dar suporte ao perdedor, enquanto alguns levavam adiante a ideia do golpe. Pois esse Cid, que deu colo a Bolsonaro, que foi durante anos serviçal de Michelle, esse Cid viu o desespero provocado pelo caminhão da mudança.

Cid pode ter sido machista e ressentido quando disse a Moraes que o desespero na cena do caminhão era ‘coisa de mulher’, acentuando o fato de que Michelle achava que o Alvorada seria sua casa para sempre. Mas foi o que ele viu.

E viu Deus falhar com Michelle, como já havia falhado com Teresa Cristina, porque Deus vacila sobre o que fazer com golpes. Tanto pode apoiar como pode condenar golpes.

Teresa Cristina teve de deixar o Palácio de São Cristóvão porque o marido havia sido derrubado por um golpe militar apoiado por Deus. 

Michelle mudou-se do Alvorada porque seu marido tinha sido derrotado por Lula na eleição e fugiria logo depois para os Estados Unidos à espera do resultado de uma tentativa de golpe que teria o apoio de Deus e até de marcianos. Não teve.

Teresa Cristina foi mandada embora do palácio do Rio pela competência dos golpistas liderados por Deodoro da Fonseca, um marechal medíocre. Michelle fez a mudança e não conseguiu retornar ao palácio de Brasília por causa da incompetência de um tenente medíocre que falhou também como golpista. 

E tudo isso não é fofoca, nem intriga, nem banalidade. É parte da micro-história da nova extrema direita brasileira. O caminhão da mudança também ajuda a explicar a situação que vivemos. 

A cena do caminhão no Alvorada, testemunhada por Cid, teria sido mais dramática se o coronel tivesse visto, no alto de uma trouxa, um cachorro com os olhos arregalados. 

Porque a cena clássica de mudança de casa tem um cachorro. Mas, como lembram sempre sobre a passagem da família pelo Alvorada, os Bolsonaros nem cachorro tinham.

 

Fonte: Brasil 247

 

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