“Eldorado
do lítio” brasileiro não entrega riqueza prometida
Há um
ano, Nelson Santos foi obrigado a deixar a casa que arrendava na zona rural de
Araçuaí, no norte de Minas Gerais. O artesão de 64 anos lamenta a mudança, que
atribui à extração de lítio na região onde ficam as maiores reservas brasileiras
do metal. O material se tornou símbolo para a transição energética mundial e é
usado, entre outras aplicações, para fabricar baterias recarregáveis para
carros elétricos.
Santos
diz não ter visto a esperança de riqueza se converter em prosperidade para a
população local. Em vez disso, a chegada de empresas brasileiras, estrangeiras
e terceirizadas com centenas de funcionários acabou expulsando o artesão do
lugar onde morava.
“Eu
morava na comunidade São Marcos fazia sete anos quando chegou o pessoal do lítio;
aí eles foram comprando as terras, tirando o pessoal das propriedades, algumas
casas mesmo já iam cedendo com as explosões… até que o dono do terreno me pediu
a casa para poder vender, e eu tive que sair”, conta, enquanto esculpe uma peça
de madeira no corredor do pequeno imóvel onde mora atualmente com outras quatro
famílias.
A
região do Vale do Jequitinhonha é palco do paradoxo de ser conhecida por estar
entre as áreas mais pobres do país – e, ao mesmo tempo, ser protagonista do
boom da extração de lítio no Brasil.
Segundo
o Ministério de Minas e Energia, o Brasil é o sétimo maior detentor de reservas
de lítio no mundo. O MME ainda alardeia que o país é o quinto maior produtor
mundial do minério.
A
maior parte do lítio brasileiro fica no Vale do Jequitinhonha. As cidades de
Itinga e Araçuaí concentram as maiores reservas e foram as primeiras do país
onde se começou a extrair lítio em larga escala. Os municípios ficam numa
região ecológica de transição entre Caatinga, Cerrado e Mata Atlântica.
A
demanda global por lítio explodiu na última década, acompanhando a produção de
mais carros elétricos, e deve continuar crescendo significativamente nos
próximos anos. Um relatório do Banco Mundial publicado em 2020 projetou que a
demanda global por baterias daquele ano até 2050 só poderia ser atendida se a
produção de minerais como grafite, lítio e cobalto, entre outras, aumentasse
500% no período.
Ao
mesmo tempo, o órgão defende que, “embora as tecnologias de energia limpa
exijam mais minerais, a pegada de carbono de sua produção – da extração ao uso
final – será responsável por apenas 6% das emissões de gases de efeito estufa
geradas pelas tecnologias de combustíveis fósseis”.
Além
disso, o Serviço Geológico do Brasil, subordinado ao MME, destacou num informe
técnico publicado em 2023 que “encara o negócio do lítio como uma oportunidade
de alavancar o desenvolvimento regional do país”.
·
Corrida pelo “ouro branco”
Em
2023, o governador mineiro Romeu Zema lançou o projeto “Lithium Valley” para
atrair empresas para a região. O “Vale do Lítio” é formado por 14 cidades:
Araçuaí, Capelinha, Coronel Murta, Itaobim, Itinga, Malacacheta, Medina, Minas
Novas, Pedra Azul, Virgem da Lapa, Teófilo Otoni, Turmalina, Rubelita e
Salinas.
Logo
em seguida, também em 2023, a mineradora Sigma Lithium começou a operar em
Araçuaí. A empresa tem escritório registrado no Canadá, a diretoria e a
administração são formados, em larga maioria, por brasileiros. Além da Sigma, a
Companhia Brasileira de Lítio (CBL) também explora o chamado “ouro branco” no
município, e mineradoras como a americana Atlas Lithium, a canadense Lithium
Ionic e outras estão prospectando o potencial do lítio para se estabelecer na
região.
A
promessa do lítio no Jequitinhonha atraiu dezenas de mineradoras aventureiras de
primeira viagem, como explica um geólogo, funcionário de uma delas e que
preferiu não se identificar para a reportagem da DW. “No ano em que a extração
começou mesmo, isso aqui estava uma loucura; em todo canto, havia gente
mostrando os resultados da prospecção e estrangeiros dispostos a investir”,
lembra.
Mesmo
que invistam apenas em pesquisa de potencial de extração, a empreitada pode
significar um retorno de milhões de dólares. “A [mineradora americana] Latin
Resources, [em fase de implantação] em Salinas, investiu no máximo US$ 50
milhões e acabou comprada pela australiana Pilbara Minerals por US$ 370
milhões; o sonho de todas que estão aqui é ser incorporada por gigantes”,
garante o geólogo.
O
fluxo balançou a economia de Araçuaí. Segundo o governo de Minas Gerais, um ano
depois do lançamento, o projeto “Vale do Lítio” atraiu R$ 5,5 bilhões em
negócios “para o ‘Vale da Esperança'”, “permitiu a geração de mais de 10 mil
empregos diretos e indiretos” e contribuiu para a arrecadação de R$ 55,1
milhões de Compensação Financeira pela Exploração Mineral (Cfem) paga aos
municípios afetados.
Porém,
em vez de se refletir na renda da população local, vários moradores dizem ver a
inflação tomar conta de produtos, serviços e terrenos da cidade. Um dos setores
mais afetados foi o de moradia. Araçuaienses ouvidos pela reportagem da DW
afirmam que casas pelas quais antes se pagava R$ 500 de aluguel hoje já custam
até R$ 2.000 – uma alta de 400%.
Como
efeito, alguns proprietários de casas no centro estão alugando as residências e
se mudando para a periferia e cidades vizinhas. Ali, constroem novas moradias.
A migração acaba tendo um efeito dominó, pois aumenta o preço do material de
construção e dos terrenos, segundo apurou a reportagem da DW.
“Esse
aquecimento da economia regional, dos serviços, é uma ilusão aparente”, defende
Aline Weber, pesquisadora da UFVJM (Universidade Federal do Vale do
Jequitinhonha e Mucuri) e do grupo Liquit, que estuda impactos da mineração de
lítio na região. “Todo mundo está sendo expulso do centro de Araçuaí, para
áreas mais periféricas, e essa desigualdade vai se acirrar, agravando ainda a
violência urbana, a falta de água, a precarização dos serviços públicos”,
prevê.
Autor
do livro The Rare Metal Wars, o pesquisador francês Guillaume Pitron resume a
situação vivida no Jequitinhonha e outras regiões do planeta. Para ele, é
preciso encarar a transição energética com realismo.
“Essa
visão precisa ser mais bem compreendida. Precisamos da transição energética,
precisamos fazê-la acontecer… quero acreditar que uma era baseada em metais é
melhor do que uma baseada em petróleo, mas a questão é como faremos essa
transição”, observa. “Faremos isso a que custo para o meio ambiente, para as
populações locais, para que homens e mulheres impactados e empregados nas minas
e refinarias sejam tratados com dignidade?”, questiona.
·
Direitos socioambientais atropelados
Para o
geógrafo Klemens Laschefski, da universidade de Heidelberg e membro do grupo
Liquit, a tão necessária transição energética vem servindo de subterfúgio para
atropelar direitos socioambientais.
“Chamo
esse processo de novo colonialismo: temos a mensagem da salvação, que é
desenvolvimento sustentável, transição energética e descarbonização, e usa-se
essas palavras para justificar a invasão das terras indígenas, a invasão nas
terras das populações tradicionais e quilombolas”, critica.
Um dos
casos citados por Laschefski é o do Quilombo Baú: um território de 15 mil
hectares a norte do centro de Araçuaí que iniciou o processo de reconhecimento
em 2008, quando a Fundação Cultural Palmares certificou a região como
remanescente de quilombo. Apenas em 2024 – 16 anos depois – as autoridades
deram o primeiro passo para a regulamentação fundiária, com a publicação, pelo
Incra, do Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID).
Agora,
a comunidade teme perder as terras para a mineração antes mesmo da sua
titulação. Membros do Observatório dos Vales e Semiárido Mineiro, da UFJVM,
disseram ter localizado 71 pedidos minerários – parte deles para a prospecção
de lítio – na área reconhecida pelo Incra.
“Nós
não queremos isso aqui cheio de buracos, virem aqui, apanhar a nossa riqueza e
levar para outro país; as empresas só estão vendo um carro com bateria
elétrica, menos poluição, riquezas para meia dúzia de pessoas, mas não está nem
aí que meu filho morra sem ter um ar para respirar puro”, reclama o líder
comunitário Antônio Cosme Neves, que já recebeu ameaças de morte após a
divulgação do RTID.
Para o
geólogo ouvido pela reportagem, empresas com responsabilidade socioambiental
deveriam focar na mineração subterrânea, de menor impacto. Mas os investimentos
neste tipo de extração são mais caros e demorados, o que acaba levando à
preferência pela mineração a céu aberto.
·
Investigação
Uma
portaria ministerial de 2015 determina que quilombos, terras indígenas e áreas
tombadas pelo Estado tenham uma distância mínima de 8 km de empreendimentos de
mineração. Segundo a legislação, cabe aos órgãos responsáveis garantir a
proteção destes espaços durante o processo de licença ambiental.
Um
inquérito do Ministério Público mineiro de outubro de 2023 aponta que a Sigma
Lithium provocou “lesão a bens tombados pela Constituição Estadual, quais
sejam, a Bacia Hidrográfica do Rio Jequitinhonha e de comunidades
tradicionais”.
A infração
teria ocorrido no complexo de mineração da Grota do Cirilo, de propriedade da
Sigma Lithium. Em 2023, a empresa anunciou que as reservas minerais no complexo
são 27% maiores do que as mapeadas inicialmente. Com isso, segundo dados da
própria companhia, a Grota do Cirilo “se torna o quarto maior complexo mundial
de mineração e beneficiamento industrial pré-químico de lítio em operação”.
Mas,
segundo o inquérito do MPMG, o “Projeto Grota do Cirilo se encontra em área de
influência” da Bacia Hidrográfica do Jequitinhonha.
Para
boa parte dos moradores da comunidade de Poço Dantas, com casas a menos de 200
metros da pilha de rejeitos do complexo da Grota do Cirilo, a remoção seria a
melhor opção diante dos transtornos causados pelas explosões diárias e pelo pó
fino das rochas trituradas.
“A detonação, quando você tá aqui dentro, faz
até medo; faz coisa que a casa sobe e depois desce, olha como é que já rachou
toda… eu já não tenho medo de mais nada, só da casa cair em cima da gente”, diz
a a agricultora Cleunice Gomes, de 55 anos, moradora da comunidade.
Ana
Cabral, diretora executiva da Sigma, esteve em Araçuaí no mesmo período da
reportagem, mas não concedeu entrevista na ocasião. Até o fechamento do texto,
a empresa não havia se posicionado sobre os problemas relatados.
·
Área de Proteção Ambiental ameaçada
Do
outro lado do município, a norte-americana Atlas está em vias de obter a
licença de operação no entorno da APA (Área de Preservação Ambiental) Chapada
do Lagoão, um planalto que abriga nascentes importantes para a região,
incluindo o córrego Piauí. No começo de fevereiro, a Prefeitura de Caraí,
município vizinho de Araçuaí, solicitou uma redução na APA em 5.500 hectares,
ou 23% do território total. Segundo Caraí, a APA ultrapassa os limites de Araçuaí
até Caraí de forma irregular.
“Estamos
em uma região que é tratada como semiárida, e o acesso a nas comunidades rurais
é um processo complexo; reduzir a APA para permitir a mineração é intensificar
a destruição das águas na região semiárida”, contesta Weber, da UFJVM.
Atenta
ao que ocorre com Poço de Dantas, a comunidade de Neves, aos pés da Chapada do
Lagoão e onde a instalação de novas minas está mais avançada, já está
preocupada.
A
professora Ana Maria Batista destaca as reformas feitas nas estradas e na casa
comunitária, mas teme pela saúde do sogro. Aos 98 anos, ele será vizinho da
planta de beneficiamento, que deve ser instalada a cem metros da sua casa. “Nem
ele nem minha sogra estão bem de saúde, ficamos muito preocupados com a poeira
logo ao lado”, explica. No beneficiamento, o espodumênio contendo o lítio é
triturado e moído para separar o concentrado de lítio da rocha bruta.
O
vice-presidente de exploração mineral da americana Atlas Lithium, Areli
Nogueira, disse estar afastado do projeto desde 2022, quando se mudou para
Portugal.
Fonte: DW Brasil
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