Empresas ligadas à
Enel são acusadas de grilar terras na Bahia para gerar energia eólica
Diana Silva cresceu em Umburanas, um pequeno
município da Bahia, a 450 km de Salvador. Ela passou a infância toda ali com a
família, criando gado e cultivando feijão, mandioca, milho e melancia. Era uma
vida tranquila e modesta. “No tempo que eu fui criada aqui, aqui era isolado,
muito isolado mesmo”, conta.
Poucas décadas depois, sua casa está cercada por
aproximadamente 80 turbinas eólicas, uma delas dentro de sua propriedade. Um
labirinto de estradas liga as torres para que as vans possam circular. Linhas
de transmissão serpenteiam de um canto a outro do campo. Nos últimos anos, a
região deixou de ser uma paisagem isolada e se tornou um grande parque eólico
cujo investimento superou os
R$ 2 bilhões.
No mapa, a casa de Diana é um ponto avermelhado em um mar de turbinas
eólicas brancas que chegam a 150 metros.
O parque é propriedade da Enel, multinacional de
energia italiana com centenas de subsidiárias no Brasil. Diana e mais de uma
dezena de moradores da região alegam que a Enel e uma outra empresa chamada
Maestro Holding de Energia tomaram suas terras para instalar turbinas.
Daniel Carneiro, advogado que representa esses moradores,
diz que as ações das empresas são uma forma de grilagem. A Enel e a Maestro
Holding negam as acusações.
O caso de Diana faz parte de uma tendência muito mais
ampla, que os especialistas denominam “grilagem verde”, um processo pelo qual,
em nome da produção de energia renovável, empresas conseguem obter grandes
extensões de terras públicas. Um estudo da revista
Nature sobre
a apropriação em massa de terras no Brasil revelou que a Enel era a maior
proprietária estrangeira de projetos de energia renovável.
Durante meses, jornalistas da IRPIMedia, do Intercept Brasil e da Mongabay investigaram
essas denúncias. Descobrimos vários possíveis casos de grilagem por parte de
empresas que prestam serviço para a Enel, conhecidas como intermediárias ou
desenvolvedoras.
Com táticas muitas vezes agressivas e que se aproveitam
do fato de muitos agricultores não terem registro oficial de suas terras, essas
companhias incorporam as terras de pequenos agricultores e, depois, arrendam
essas áreas para a Enel construir seus parques eólicos ou de energia solar – ou
seja, investir em energia verde.
A multinacional parece não estar diretamente envolvida
nessas práticas, mas o fato de suas operações dependerem diretamente dessas
negociações despertaria dúvidas sobre sua cumplicidade, segundo
especialistas.
Durante nossa investigação, identificamos vários
processos judiciais, tanto movidos por cidadãos contra incorporadoras que
buscam terras para arrendar para a Enel, quanto alguns iniciados pela própria
multinacional italiana contra moradores das áreas afetadas por seus projetos.
Questionado, o escritório da Enel no Brasil afirmou, em
nota enviada ao Intercept, que “segue rigorosamente as determinações legais, a
regulação do setor e obedece a todos os requisitos ambientais”. A multinacional
italiana disse ainda que “não realiza aquisição de terras no Brasil, de acordo
com as leis brasileiras” e que “as áreas onde instala aerogeradores ou painéis
solares são propriedades privadas com a devida comprovação de regularidade do
ponto de vista fundiário”. Leia aqui a resposta da empresa na
íntegra.
Uma advogada que trabalhou para a Enel como consultora
jurídica durante quase cinco anos – e que não será identificada por questões de
segurança –, afirma que as intermediárias compartilhavam apenas parte das
informações sobre como trabalham com a Enel e que, apesar de todas as empresas
envolvidas terem a responsabilidade de verificar se as áreas não apresentam
problemas fundiários, na prática, isso às vezes não acontecia.
“A Enel sabe perfeitamente bem o que está acontecendo
e, na verdade, trabalha com essas intermediárias para delegar o trabalho sujo”,
disse um funcionário da Enel que prefere não ser identificado.
Em sua resposta à reportagem, a empresa afirmou que
“antes de concluir a aquisição ou co-desenvolvimento de projetos, a companhia
realiza uma due dilligence, abrangendo todos os aspectos relacionados aos
direitos de propriedade, incluindo a comprovação da titularidade por meio da
atualização dos registros oficiais”.
Embora não esteja em questão a importância das energias
renováveis no combate à emergência climática, especialistas, lideranças dos
povos originários e autoridades ouvidos na reportagem concordaram que sua
implantação deve considerar as realidades sociais e políticas das pessoas que
moram nessas áreas.
“Não somos contra o desenvolvimento. Mas a gente quer o
desenvolvimento com envolvimento, onde o povo seja escutado, o povo participe.
Esse é desenvolvimento que a gente defende”, disse uma liderança quilombola do
Piauí.
·
Privatização e a crise do apagão
A Enel foi alvo de críticas generalizadas após uma
sequência de falhas no fornecimento de energia em várias cidades da Grande São
Paulo nos últimos meses. Em outubro, um enorme apagão atingiu 3 milhões de habitantes, e milhares
ficaram sem energia – alguns por quase uma semana.
A extensão do apagão e a demora no retorno do
fornecimento de energia fez alguns políticos chegarem a pedir a cassação da
concessão da distribuidora. O Tribunal de Contas de São Paulo,
identificou “graves falhas” no
cumprimento de metas de investimento e na qualidade do atendimento da Enel,
sugerindo uma auditoria externa.
A Eletropaulo, antiga distribuidora de energia de São
Paulo, começou a ser privatizada em 1998, quando foi
adquirida por um consórcio de empresas nacionais e internacionais. Em 2001, a
empresa foi novamente a leilão e foi comprada pela Enel.
A empresa então consolidou sua posição como uma das
maiores no setor de energia solar e eólica do
Brasil. Em 2023, a Enel Américas anunciou seu plano estratégico para o
continente, prevendo um aumento dos investimentos no Brasil para US$3,7 bilhões
(R$ 21 bilhões), 45% a mais que o previsto anteriormente.
E as áreas na Bahia e no Piauí visitadas pela
reportagem estão entre os focos dessa expansão. “Até onde se sabe, a região
Nordeste apresenta o melhor vento do mundo para a produção de energia eólica”,
afirma Elbia Gannoum, diretora executiva da Associação Brasileira de Energia
Eólica, ABEEólica.
·
Além da luta pela regularização, uma nova pressão
Muitas dessas áreas, no entanto, se sobrepõem a terras
públicas ocupadas por pequenos agricultores como Diana. “Existe um conflito de
interesse”, diz Michael Klinger, autor do estudo da Nature e pesquisador de
desenvolvimento econômico sustentável na Universidade BOKU de Viena.
“Há comunidades tradicionais que estão lutando há
décadas para terem a posse sobre suas terras regularizadas, e agora enfrentam
essa nova pressão das empresas de energia eólica.”
Uma das áreas onde essa pressão vem sendo mais sentida é
o parque eólico de Aroeira, na Bahia,
justamente onde está a propriedade de Diana. O parque tem capacidade de gerar
energia suficiente para atender quase 850 mil residências, evitando a
emissão de quase um milhão de toneladas de CO2 anualmente.
O projeto promete muitos benefícios, mas Diana, seu
marido, e outros moradores locais dizem que a construção aconteceu às custas de
seus meios de subsistência. Nos processos, ela e outros moradores da região,
que não possuem documentos que comprovam seu direito à terra, alegam serem os
“possuidores” legítimos, porque, como posseiros, vivem na área e a utilizam há
décadas.
O Código Civil brasileiro
reconhece esse direito, ao afirmar que “considera-se possuidor todo aquele que
tem de fato o exercício, pleno ou não, de algum dos poderes inerentes à
propriedade”.
Mas a Maestro alega que as terras foram adquiridas e
arrendadas para elas antes e acusam os agricultores de “desapropriação”.
·
‘A gente pensando que ele era amigo’
A disputa remonta ao início dos anos 2000, quando a
Maestro entrou em contato com a comunidade pela primeira vez. Um funcionário da
empresa passava tempo com os moradores, segundo Diana, os tranquilizava no
sentido de que continuariam donos de suas casas. “Aí ele chegava aqui,
conversava mais a gente, tomava café. E a gente pensando que ele era amigo da
gente mesmo”, contou.
A Maestro conseguiu se apropriar de várias áreas e,
quando as construções começaram, Diana conta que um funcionário da Enel pediu
que ela fizesse o mapeamento de seu território. “Eles me disseram: faça um mapa
da sua terra para gente localizar tudo certinho.’”
Diana contratou um topógrafo e repassou as informações.
Hoje, uma turbina eólica de 150 metros de altura se ergue dentro dos limites do
mapa que ela fez, segundo as coordenadas que ela compartilhou com a equipe de
investigação.
A multinacional italiana afirmou que “no parque eólico
Aroeira, a Enel foi envolvida em apenas uma ação, que questiona a posse de um
dos imóveis onde o parque foi construído, mas que está relacionada à empresa
desenvolvedora do projeto, que também é proprietária do terreno.”
A empresa informou ainda que “sobre as ações judiciais
em curso envolvendo as empresas de geração da Enel, 75% foram propostas pela
própria companhia e não envolvem questões fundiárias. Já os litígios em que a
companhia foi acionada se referem a temas variados, mas que não possuem
qualquer relação com apropriação ilegal de terras.”
Antes que o projeto no Aroeira fosse concluído, vários
moradores protestaram, impedindo o acesso dos funcionários da Enel aos
principais canteiros de obras com carros, motocicletas e tratores. Maestro e
Enel, por meio de uma subsidiária local, entraram com ações de reintegração de
posse da área, afirmando que “mais de 2 bilhões de reais já foram investidos na
geração de energia eólica”, e que esses bloqueios haviam causado “danos
incalculáveis”.
De acordo com Carneiro, o advogado dos moradores, e com
o José Silva, marido de Diana, a polícia militar interveio para impedir o
protesto, e a Maestro contratou seguranças particulares para limitar o acesso
dos moradores às terras em disputa por mais de dois meses. Nesse período, Diana
e outros agricultores perderam várias cabeças de gado. Os moradores conseguiram
reverter a decisão e recuperar o acesso, mas os seguranças continuaram a
controlar a entrada por mais de um ano, ainda segundo Carneiro e Silva.
A Maestro e a Enel entraram com ações separadas contra
os moradores, afirmando que adquiriram o direito sobre as terras em questão.
Carneiro, advogado dos produtores rurais, contesta essa alegação, e afirma que
ela se baseia em práticas enganosas que envolvem georreferenciamento. Esse
mapeamento – que chega a custar R$ 15 mil – é usado pelas empresas para se
apropriar ilicitamente de terrenos, segundo o advogado.
“Às vezes, elas compram uma área de 40 hectares e, com
georreferenciamento, a transformam em um terreno de milhares de hectares. E
fazem isso inserindo imóveis vizinhos, já que sabem que a maioria não é
georreferenciada”, explica Carneiro.
A prática afeta inclusive os moradores que têm todas as
documentações de titularidade de suas terras. É o caso de Joaquim Alves,
agricultor de Umburanas. Quando ele finalmente conseguiu meios para fazer esse
mapeamento especializado, não foi possível porque ela já estava listada dentro
dos limites de outra área, chamada Fazenda Montevidéu. Sem ele saber, a Maestro
georreferenciou sua propriedade a inseriu em um território do qual era
proprietária, conforme explicou Carneiro.
Para resolver a questão, a Maestro ofereceu R$ 1 milhão
pela propriedade. Alves inicialmente se recusou, mas acabou aceitando o acordo
por um valor não revelado. A Enel, então, arrendou a área da Maestro e instalou
cinco turbinas eólicas no local, disse Carneiro.
·
Grilagem de terras do século 21
A Maestro não é a única empresa ligada à Enel que usa
georreferenciamento. A Casa dos Ventos, uma das primeiras empresas a se
envolver na regularização de terras no país, também usa esse tipo de mapeamento
para adquirir terras, segundo um ex-funcionário que prefere permanecer anônimo
por temer represálias. Eles então arrendam ou vendem essas áreas para as
empresas que investem parques eólicos ou solares, incluindo um de seus
parceiros, a Enel.
Esse mesmo ex-funcionário conta que quando os moradores
se recusam a arrendar vender suas propriedades, a Casa Dos Ventos recorreria a
um processo de “regularização forçada”, em que encontrava uma matrícula antiga
da área e fazia um georreferenciamento ampliando seu perímetro ao absorver
áreas vizinhas. “Assim, uma propriedade que há 60 anos era registrada como
tendo cerca de 20 hectares passa a ter 200 graças ao novo georreferenciamento»,
diz.
O primeiro passo envolve enviar funcionários para
prospectar áreas com potencial eólico ou solar e tentar fechar contratos de
arrendamento com essas pessoas. “Eu ia visitar aquelas áreas como um desses
vendedores que batem de porta em porta. Conversava com um por um para tentar
fechar contratos de arrendamento”, conta outro ex-funcionário da Casa Dos
Ventos.
Se os moradores diziam não, ele insistia. “A
empresa não desistia facilmente”, conta o ex-funcionário. Quando as pessoas não
tinham registro, a Casa dos Ventos assinava um contrato preliminar para
garantir o direito de uso da terra, e então cuidava de toda a burocracia,
reunindo documentos ou contas de luz, fazendo o georreferenciamento e até
protocolando a documentação nos órgãos competentes.
Segundo Fernando Joaquim Ferreira Maia, professor de
Ciências Jurídicas na Universidade Federal da Paraíba, cuja equipe realiza
pesquisas de campo em comunidades afetadas, a Casa dos Ventos e outras empresas
de regularização fundiária usariam táticas agressivas para tentar fechar
contrato com as pessoas.
O professor conta que, em suas pesquisas, ouviram
relatos de agricultores contando que esses representantes algumas vezes cooptam
pessoas da própria comunidade para ajudar, abordam moradores em bares e até
fazem ameaças veladas, dizendo que [as turbinas] serão instaladas em suas
terras de qualquer jeito, então não teria por que se recusar a assinar.
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Contratos de 40 anos
Os contratos que essas empresas celebram são sigilosos
e frequentemente têm uma cláusula que proíbe a divulgação de informações. Ao
longo da investigação, acessamos oitos desses contratos, dois deles da Casa dos
Ventos.
Alguns dos contratos tinham vigência de mais de 40 anos
e renovação automática por décadas, o que, na prática, concede às empresas
acesso à terra por várias gerações. Os valores pagos são baixos: a Casa dos
Ventos paga entre R$ 100 e R$ 500 por mês antes do início da operação da
turbina eólica, e, posteriormente, 1,5% das receitas geradas, deduzido de
impostos. Na Espanha, o valor chega a ser mais que o dobro, segundo Maia, o
professor de Direito.
Ainda assim, muitos moradores locais são atraídos pela
perspectiva de uma renda adicional, e assinam de qualquer forma. Muitos também
têm escolaridade precária, o que dificulta a compreensão dos contratos.
Não foram encontrados contratos entre a Enel e
indivíduos durante essa investigação. Mas a maioria dos contratos obtidos —
incluindo aqueles ligados à Casa dos Ventos — incluem uma cláusula que
efetivamente transfere todos os direitos relacionados ao contratante para quem acabar
arrendando ou adquirindo a terra. A advogada que já prestou serviços para a
gigante italiana explica que essa cláusula é uma exigência típica da Enel.
·
A vida dentro de um parque eólico
Com ou sem contrato, dezenas de pessoas que vivem nas
proximidades das turbinas eólicas da Enel relatam que sua qualidade de vida
piorou em decorrência das construções, algumas localizadas a poucas centenas de
metros das residências, de acordo com uma imagens de satélite.
Muitos moradores reclamam do barulho incessante das
turbinas. “A gente pensa que é um caminhão que tá chegando. Quando venta, o
barulho é muito grande. E às vezes a gente ouve também uns estrondos”, diz uma
trabalhadora rural de Queimada Nova.
Um estudo recente com mais de
100 pessoas que vivem perto de parques eólicos descobriu que muitas sofrem com
uma série de sintomas, incluindo dores de cabeça,
ansiedade, insônia e irritabilidade.
Vários agricultores relatam que o ruído também afeta a
saúde dos animais. “O desenquieto dos animais. Isso é o que mais deixa a gente
triste”, conta uma liderança indígena da região.
Outros enfrentam problemas com a grande quantidade de
poeira levantada pelos veículos que transportam equipamentos pesados. “Minha
mulher limpa a casa duas ou três vezes por dia”, conta um quilombola que cria
cabras.
As comunidades também não se sentem ouvidas. Muitas
lideranças indígenas e quilombolas disseram que nunca foram convidadas para
reuniões relacionadas aos projetos de energia renovável.
A liderança indígena afirma que a Enel jamais se reuniu
com sua comunidade. Ela conta que uma reunião foi realizada quando as empresas
chegaram à região, mas que nenhuma das comunidades indígenas ou quilombolas foi
convidada, violando a Convenção
169 da
Organização Internacional do Trabalho, OIT. Já uma liderança rural em
Queimada Nova conta que eles precisavam insistir para realizar uma consulta.
A Enel afirmou que “atua ativamente na identificação de
comunidades tradicionais próximas aos seus empreendimentos, seguindo
rigorosamente a legislação ambiental brasileira e que “as comunidades
localizadas no raio de até 8 km a partir do local do empreendimento são
envolvidas em estudos participativos para avaliação dos riscos e impactos
gerados pelas obras. A partir desses estudos, são construídos planos conjuntos
de ação”.
À medida que a Enel continua a se expandir para novos
territórios — com mais de 100 turbinas eólicas em construção— o futuro dessas
comunidades parece sombrio.
Tentando se preparar para isso, muitas comunidades se
uniram para resistir. Uma comunidade protestou em frente a uma torre de medição
e conseguiu que ela fosse removida. Outras registraram oficialmente suas terras
para se protegerem contra tentativas de grilagem. Algumas realizaram oficinas
para discutir as experiências de cada uma e se informarem sobre seus direitos.
O objetivo, segundo a liderança quilombola, não é
impedir uma transição para as energias renováveis, mas orientá-la para
beneficiar a todos, não apenas as empresas de energia.
Procuradas, a Maestro Holding e a Casa dos Ventos não
responderam.
Fonte: Por Jonathan Moens e Thomas
Bauer
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