Nuno Vasconcellos:
A guerra entre os fatos e as versões
Se alguém ainda
imaginava encontrar um pingo de racionalidade nas atitudes dos estupradores,
infanticidas, sequestradores e terroristas do Hamas, o espetáculo macabro
promovido na quarta-feira passada foi suficiente para deixar claro que o bando
não tem a mínima intenção de pôr um fim a ao conflito com Israel.
Desde que o atual
acordo de cessar-fogo começou a vigorar, no dia 19 de janeiro, e eles começaram
a libertar a conta-gotas os reféns sequestrados no dia 7 de outubro de 2023, em
troca de criminosos que cumpriam penas por terrorismo em prisões de Israel, o
Hamas tem feito provocações sucessivas ao governo do primeiro-ministro Benjamin
Netanyahu e ao povo israelense.
Antes de serem
libertadas pelo Hamas, as vítimas são mantidas sob ameaça de armas e expostas à
humilhação diante de multidões ruidosas. Se as demonstrações de autoritarismo
diante de reféns que dali a pouco estarão em liberdade ao lado de suas famílias
já causam repulsa em qualquer pessoa minimamente civilizada, a cena levada
adiante durante a devolução dos corpos de israelenses assassinados pelos
terroristas no cativeiro, na quarta-feira passada, ultrapassou todos os limites
da estupidez, da barbárie e da bestialidade.
Um dos quatro
caixões pretos, entregues à Cruz Vermelha na cerimônia macabra, continha o
corpo de Oded Lifshitz, de 83 anos. Tratava-se de um militante pacifista que,
antes de ser arrancado à força de sua casa e arrastado sob tortura para as
masmorras do Hamas, integrava a Road to Recovery — ou Estrada para a
Recuperação. A ONG cuidava de transportar crianças palestinas doentes para
tratamento em hospitais de Israel.
Em outros dois
caixões estavam os corpos de Kfir Bibas, de nove meses (isso mesmo! nove
meses!) e de seu irmão Ariel Bibas, de quatro anos. De acordo com a “narrativa”
dos terroristas, as crianças morreram em consequência de bombardeios
israelenses. Mentira!
Conforme revelou o
porta-voz das Forças de Defesa de Israel, Daniel Hagari, na sexta-feira
passada, Ariel e Kfir foram assassinados com requintes de brutalidade ainda em
novembro de 2023. “Os terroristas não atiraram nos dois meninos. Eles os
mataram com as próprias mãos. Depois, cometeram atos horríveis para encobrir
suas atrocidades”, afirmou Hagari com base em informações levantadas pelos
cientistas forenses e pelos serviços de inteligência de Israel.
No quarto caixão,
deveria estar o corpo da mãe dos dois meninos, Shiri Bibas. Os terroristas, no
entanto, em mais uma de suas habituais demonstrações de desrespeito pelas
vítimas, classificadas por Netanyahu como “cinismo inimaginável”, colocaram no
caixão um cadáver anônimo, sem relação com qualquer refém.
Assim que a farsa
foi desmascarada pelos exames de DNA, na sexta-feira, os terroristas, em mais
uma demonstração de escárnio, admitiram “a possibilidade de um erro”. Eles
ainda tentaram impor condições para a devolução dos restos mortais verdadeiros.
Em resposta, Netanyahu ameaçou romper o cessar-fogo e atacar o bando com força
total. Os terroristas, então, recuaram e entregaram o corpo de Shiri à Cruz
Vermelha. O pai de Ariel e Kfir e marido de Shiri, Yarden Bibas, também havia
sido sequestrado no dia 7 de outubro. Mantido longe da família durante o
cativeiro, ele foi libertado no dia 1º de fevereiro, já durante a vigência do
atual cessar-fogo.
A VALENTIA DE
COVARDES
Os simpatizantes do
Hamas, que sempre culpam Israel por tudo de ruim que acontece no Oriente Médio,
em nenhum momento ergueram a voz para condenar esses atos de desrespeito e
covardia. O máximo que se ouviu das vozes habitualmente simpáticas aos
terroristas foi uma manifestação quase envergonhada em que o chefe da seção de
Direitos Humanos das Nações Unidas, Volker Turk, censurou, mas não condenou, o
espetáculo montado pelos terroristas.
De resto, os
apoiadores do Hamas, inclusive a ONU, mantiveram silêncio absoluto diante das
sucessivas demonstrações de descumprimento do cessar-fogo que vêm sendo dadas
pelos assassinos do Hamas. Várias delas foram dadas na quarta-feira.
O cenário armado,
por si só, já demonstrava a disposição dos terroristas de testar o limite da
paciência do adversário. Armado na localidade de Khan Younis, o circo de terror
estava decorado com painéis de extremo mau gosto, que procuravam imputar a
Israel a culpa pelo que vem acontecendo em Gaza há mais de 500 dias.
O maior dos painéis
mostrava uma caricatura de Netanyahu com dentes de vampiro. Uma frase escrita
em árabe, hebraico e inglês responsabilizava Israel pela morte dos quatro. “O
criminoso de guerra Netanyahu e seu exército nazista os mataram com mísseis de
aviões de guerra sionistas”, dizia a frase que insistia na “narrativa”
mentirosa de que os quatro tinham sido vítimas de bombas israelenses.
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As provocações do
Hamas não pararam por aí. Pelo acordo de cessar-fogo, os criminosos postos em
liberdade em troca dos reféns não poderiam retornar a Gaza. Eles teriam que
seguir para países que os aceitassem. Acontece, porém, que uma série deles
mostraram as caras na cerimônia macabra da quarta-feira. O mais conhecido,
Mohamed Abu Wada, estava na cadeia desde 1996 — e cumpria pena de prisão
perpétua por atentados que custaram a vida de 45 cidadãos israelenses.
Cerimônias como
aquela demonstram mais a tentativa de continuidade do que o esforço pelo fim do
conflito. E geram mais dúvidas do que certezas. A primeira é: o que os
terroristas esperam com esses atos e com os espetáculos ridículos que promovem
a cada devolução de reféns? E mais: será que os criminosos com as caras tapadas
por panos pretos, que brandem armas diante de reféns acuados, demonstrariam a
mesma valentia caso estivessem na frente dos bem treinados soldados israelenses
e não contassem com a proteção das crianças e mulheres palestinas que eles
fazem de escudos?
Será que, ao agir
como vêm agindo, eles conseguem atrair simpatia ou apenas aumentam a rejeição à
causa que dizem defender? Será que esse tipo de atitude facilita ou dificulta o
trabalho daqueles que ainda insistem na possibilidade de instalação de um
Estado Palestino ao lado de Israel?
Este é o ponto que
interessa. Levando-se em conta que os estupradores, infanticidas e
sequestradores do Hamas realmente desejam implantar um Estado Palestino na
região — embora seus documentos oficiais mencionem como prioridade a destruição
de Israel e a exterminação do povo judeu —, será que eles estão corretos ao
aproveitar um momento em que o inimigo está impossibilitado de reagir para
exibir uma superioridade e uma coragem que, na verdade, lhes faltam?
A postura dos
terroristas do Hamas causa repulsa — mas, ainda assim, deve ser analisada com
cuidado. Ela é um exemplo extremo de um erro que tem se tornado cada vez mais
frequente em situações de confronto ou até mesmo nos embates políticos que não
envolvem armas de fogo — mas nem por isso deixam de produzir estragos. É
impressionante como, ao redor do mundo — e até mesmo no Brasil —, os líderes
políticos cada vez mais se recusam a assumir a responsabilidade pelos erros que
cometem e, contra todas as evidências, insultam a inteligência da sociedade ao
tentar atribuir aos adversários a culpa por seus atos.
Têm sido cada vez
mais frequentes os casos de disputas em que, ao invés de se buscar uma
composição de interesses que leve a um acordo satisfatório para um lado e
aceitável para o outro, o lado que está em posição de vantagem procura encostar
o adversário conta a parede. A questão — e a história já demonstrou isso mais
de uma vez — é que os tratados impostos pela força podem até surtir efeito por
algum tempo. Mas são rompidos na primeira oportunidade.
Com o passar do
tempo, os ressentimentos emergem, a população se manifesta e sempre aparecem
oportunistas dispostos a se aproveitar da situação e reacender conflito com uma
violência ainda maior do que antes. As condições draconianas impostas pelo
Tratado de Versailles à Alemanha, derrotada pelas forças aliadas na Primeira
Guerra Mundial, por exemplo, estavam entre os argumentos em que Adolf Hitler se
apoiou para rearmar seu país e arrastar a humanidade, vinte anos depois, para a
tragédia da Segunda Guerra Mundial.
“DITADOR” ZELENSKY
Testar os limites
da paciência do interlocutor nunca é uma postura recomendável numa mesa de
negociações. A menos que não se pretenda chegar a um acordo, esse tipo de comportamento
deve ser evitado até mesmo por aqueles que contam com um poderio militar
superior ou dispõem de força política e/ou econômica suficientes para impor seu
ponto de vista sobre o do adversário.
Um exemplo disso
vem acontecendo, neste momento, no âmbito da guerra da Rússia contra a Ucrânia
— e da entrada em cena dos Estados Unidos como uma espécie de fiador da paz no
leste europeu. Sem a intenção de atribuir aos métodos e à postura do governo
dos Estados Unidos neste episódio o mesmo comportamento abjeto, covarde e
absolutamente condenável do Hamas, há de se considerar que há algumas
semelhanças entre as duas situações.
A principal delas
está na construção, nos dois conflitos, de “narrativas” que contrariam as
evidências e desafiam a verdade dos fatos. Assim como os terroristas tentam
atribuir a Israel a culpa pela guerra que eles iniciaram, Trump tem cometido o
exagero indesculpável de responsabilizar a Ucrânia pelo início da guerra com a
Rússia.
Os erros de Trump
na condução desse episódio têm sido gritantes e, no futuro, podem se voltar
contra os interesses dos Estados Unidos. No limite, podem até criar
dificuldades para o relacionamento comercial e geopolítico entre seu país e
seus mais fiéis e poderosos aliados e parceiros comerciais da Europa. Ou, até
mesmo, enfraquecer a posição norte-americana nos diversos contenciosos abertos
por Trump no primeiro mês de seu novo mandato — sem contar os que virão daqui
por diante.
A proximidade
excessiva de Trump com o ditador russo Vladimir Putin é vista com desconfiança
pelo mundo inteiro. No último dia 12 de fevereiro, os dois passaram uma hora e
meia ao telefone. O diálogo marcou, sem incluir a Ucrânia no processo, a
abertura de negociações em torno do fim da guerra no Leste europeu que amanhã,
dia 24 de fevereiro, completa três anos.
Dias depois do
telefonema, delegados russos e norte-americanos se reuniram para tratar do tema
em Riad, na Arábia Saudita, mais uma vez sem a presença de representantes
ucranianos. Na sequência, e depois de responsabilizar Zelensky pelo início do
conflito, Trump chamou o presidente ucraniano de “ditador” — palavra que fica
bem mais apropriada quando utilizada em referência a seu amigo Putin.
Trump não se cansa
de cometer impropriedades a respeito desse assunto. Dias atrás, seu governo
chegou a propor que os Estados Unidos ficassem com 50% dos ricos recursos
minerais e petrolíferos da Ucrânia como “pagamento” pelo apoio fornecido
durante o conflito. Seu secretário de Defesa, Pete Hegseth, já declarou que o
retorno das fronteiras da Ucrânia aos limites anteriores a 2014 é um “objetivo
irrealista” e que tentar recuperar todo o território apenas “prolongaria a
guerra”. Além disso, Hegseth afirmou que, embora a Ucrânia deva receber
“garantias de segurança robustas”, a adesão do país à OTAN não é considerada um
resultado viável em um acordo negociado.
O fato é que, por
mais desejável que seja o fim das hostilidades, não se chegará a qualquer
acordo em torno dos dois conflitos se não houver um mínimo de respeito aos
fatos que os geraram. Assim como o conflito no Oriente Médio só está
acontecendo porque os terroristas, por sua conta e risco, promoveram o atentado
terrorista do dia 7 de outubro de 2023, a guerra no Leste da Europa só eclodiu
porque a Rússia, no dia 24 de fevereiro de 2022, invadiu a Ucrânia, um país
independente, soberano e com representação nos fóruns internacionais. Enquanto
não houver clareza em relação aos fatos que os causaram, os conflitos não terão
um fim nem haverá espaço para uma paz efetiva e duradoura.
HERANÇA MALDITA
É bom insistir
nesse ponto: a solução de conflitos como esses seria muito mais fácil e
tranquila se os fatos fossem respeitados e a culpa atribuída a quem, de fato, a
carrega. Essa postura é importante para que os erros não se repitam e para que
o futuro possa ser construído sem carregar máculas do passado. Isso vale para
situações extremas, como as guerras, mas vale, também, para os fatos mais
corriqueiros da vida de um país. Veja, é claro, o caso do Brasil.
Desde o início de
seu atual mandato, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva tem sofrido com a
redução de sua popularidade e com as dificuldades para obter apoio político.
Por mais que o governo tente atribuir a situação a fatores externos ou à
herança que recebeu do governo anterior, a percepção pública é a de que o
Palácio do Planalto não tem sido eficaz em seu trabalho.
A inflação
persistente corrói o poder de compra da população e o governo, ao invés de
atacar a raiz do problema e tomar providências no sentido de reduzir o custo
exagerado do Estado brasileiro, toma decisões que só ajudam a empurrar a
popularidade do presidente ainda mais para baixo. O fato, porém, é que a
estratégia de se eximir de toda e qualquer responsabilidade sem, no entanto,
fazer a parte que lhe cabe no que diz respeito ao combate à inflação e à
segurança pública — para citar apenas dois dos fatores responsáveis pela erosão
da popularidade do presidente — pode acabar custando muito caro ao governo.
A insistência no
uso de argumentos que contrariam tudo o que a sociedade é capaz de enxergar com
seus próprios olhos pode custar caro a Lula em um futuro próximo. Sua postura
tem impedido, inclusive, que o governo colha os frutos pelo momento favorável
vivido pela economia, que há três anos apresenta números positivos de crescimento,
geração de emprego e investimentos privados.
O governo ganharia
muito mais se todos, a começar pelo presidente, abandonassem a “narrativa” que
tenta jogar nas costas da administração anterior a culpa por tudo de ruim que
acontece no Brasil, reconhecessem as próprias falhas e tomassem providências
para corrigir os problemas reais da sociedade. Se isso acontecer, o Brasil
viverá o melhor dos mundos. Do contrário, poderá se afundar no lodaçal das
narrativas que se tornam mais perigosas na medida em que mais se afastam da
verdade.
Fonte: O Dia
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